quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Segundo Bloco da Epístola aos Gálatas: Paulo, sua Defesa e seu Chamado


Diego de Astor
Sts Peter and Paul (1608)
Continuando a exposição da Epístola aos Gálatas, leiamos agora o segundo bloco.

1, 11 – 2,21: Chamado de Paulo, Concílio de Jerusalém e Discussão com Pedro

Nesta parte o apóstolo Paulo responde às críticas feitas ao seu apostolado, mostra sua independência e, ao mesmo tempo, apresenta a aprovação dos antigos discípulos de Jesus em relação a sua proposta de evangelho. Para isso, ele relembra sua chamada e o Concílio de Jerusalém, onde tratou exatamente do mesmo problema que estava enfrentando nas igrejas na Galácia.

1, 11-24: para reafirmar o caráter divino da proposta do evangelho, ele afirma tê-lo recebido por intermédio não de algum homem, mas da revelação (apocalýpseos) de Jesus Cristo. Essa expressão está, também, bem presente na tradição judaica apocalíptica, iniciada formalmente no terceiro século a.C e bem popular no período do Segundo Templo, cujas testemunhas literárias apresentam figuras importantes do Judaísmo em viagens celestiais (Enoque, Moisés, Isaías etc.) para receberem revelações dos mistérios divinos. Como mostra Jonas Machado é típico em Paulo empregar o verbo revelar (1 Co 2,10; Rm 1,17; 3,21) para seu evangelho, pois assim compara o conteúdo dos discursos dos visionários da tradição judaica com o dele (cf. MACHADO, Jonas. Indentidade Paulina em Construção. De Saul o Fariseu a Paulo o Apóstolo de Jesus Cristo. In: Indentidades Fluídas no Judaísmo Antigo e no Cristianismo Primitivo, p. 306 ). Com essa linguagem, ele ladeia sua experiência com a dos visionários apocalípticos do Judaísmo.

A mesma interpretação ele faz do seu chamado, pois diz: “quando, porém, bem quis Deus, o que me separou do ventre da minha mãe e chamou através de sua graça, revelar seu filho em mim, para que eu o evangelizasse entre os gentios...” (1,15.16). A expressão apocalýpsai tòn huiòn autoû em emoí (revelar o filho dele em mim) mostra muito bem o caráter apocalíptico, de uma experiência mística, para o seu chamado de pregar a Cristo. Esse evento, que também é narrado de forma bem estilizada por Lucas (At 9,3ss; 22,3ss e 26,9ss), foi fundamental para sua posição com relação a Lei. Koester diz que “se o tempo da salvação começou com a ressurreição de Cristo – a aparição de Cristo a Paulo convenceu-o de que a proposta cristã não era uma mentira – e se ele foi chamado pelo Senhor ressuscitado para levar essa mensagem a todas as nações, então o período de validade da lei deve ter chegado ao fim. De agora em diante, o esforço de cumprir uma lei que Deus impusera a seu povo no passado só podia tornar-se resistência à vontade divina” (cf. Introdução ao Novo Testamento. História e literatura do Cristianismo primitivo, vol. II, p.116).

É importante frisar aqui a expressão "chamado" e não "conversão", como costumamos usar hoje em dia. Paulo, antes dessa revelação de Cristo, era zeloso com as tradições de seus pais (v. 14), esse zelo excessivo era a razão de sua perseguição à Igreja (v. 13). A ideia de chamado é mais coerente para a experiência de Paulo, primeiramente, porque a palavra epistofré, típica para falar da conversão (At 15,3 e 1 Ts 1,9), não está aqui e nunca ele a usa para referir-se a sua experiência. Segundo, ele usa uma forma bem comum para o chamado profético hebreu: “separou-me desde o frente da minha mãe” (v.15). As expressões “separar desde o frente” e “chamar” ecoam as tradições do chamado de Isaías (Is 49, 1.6) e de Jeremias (Jr 1,5). Nesse sentindo, Paulo fez um movimento dentro do Judaísmo, sem na verdade fazer uma mudança de religião, como se houvesse na época um Cristianismo e um Judaísmo como duas religiões distintas. Paulo moveu-se de um Judaísmo que não tinha Jesus como messias, ou judaísmo farisaico, para um judaísmo que aceitava Jesus como o messias de Deus, ou um “judaísmo jesuânico”. Essa mudança de lado seria serviria como grande prova da veracidade de suas palavras e serviu para aumentar a confiança nele (v.23-24). Sua chamada profética de anunciar Jesus Cristo entre os gentios era, na verdade, um conflito judaico interno.
Dessa maneira, ele pugnou-se da primeira acusação dos adversários, que desqualificavam seu chamado e o conteúdo de sua mensagem.

Depois ele parte em defesa de sua autonomia, pois afirma que após sua experiência apocalíptica com Cristo foi direto para as regiões da Arábia, em Damasco, antes mesmo de consultar alguém ou pedir permissão a algum grupo ou figura proeminente de Jerusalém (1,16-17). Somente depois de três anos trabalhando naquela região, ele foi à Jerusalém para conhecer Pedro e se encontrar com Tiago (v.18.19; At 9, 26-30), antes do Concílio dos Apóstolos (At 15). Essa informação endossa ainda mais o argumento sobre sua independência. Segundo J. Pilch (cf. Gálatas. In: Comentário Bíblico. Loyola, p. 237), e isso reafirma nossas intuições, um encontro como esse, de acordo com a tradição judaica, seria para exame mútuo e trocas de conhecimento a respeito da Torah entre mestres do mesmo nível. Depois do encontro, ele fala de sua ida à região da Síria e Cilícia (é possível que o centro dessa missão fosse Antioquia da Síria). Quatorze anos depois, ele conta que voltou à cidade de Jerusalém, juntamente com Barnabé e Tito, para falar sobre o trabalho em Antioquia e a respeito de alguns que estavam entrando sorrateiramente na comunidade para espionar a liberdade deles e para escravizar (2,4).

A Igreja em Antioquia, centro de missões de onde Paulo saiu para sua primeira viagem, junto com Barnabé, era composta por muitos membros judeus, mas contava principalmente com gentios incircuncisos que não consideravam a Lei como obrigatória para todos os membros. O grego era a língua falada, e de lá foram enviados missionários para fora de suas regiões. O Concílio em Jerusalém, segundo Ato 15, 1ss e também em Gl 2,4, aconteceu para serem resolvidas exatamente as questões em Antioquia sobre a circuncisão e submissão à Lei mosaica. Ao relembrar o episódio do Concilio dos Apóstolos, mostrou que suas posições, contrárias aos dos intrusos na Galácia, receberam aprovação conciliar.

2, 1-21: nesta parte temos a narrativa paulina da discussão de Jerusalém, a qual Lucas também apresenta com algumas diferenças. Novamente Paulo usa do argumento apocalíptico (revelação), ou seja, sua experiência do Cristo revelado para apresentar a razão que o levou a encontrar os apóstolos em Jerusalém. Ele faz isso por temer ser seu trabalho em vão, pois sem o apoio da Igreja de Jerusalém poderia ser desacreditado por seus companheiros em Antioquia, e aqueles que ensinavam sobre a circuncisão e submissão a Lei teriam mais credito, pois já estavam infiltrados na congregação (v.4). Esses acabariam levando os crentes antioquenos à escravidão sob a lei e destruiriam a liberdade em Cristo, pregada pelo apostolos dos gentios. Pelo que parece, Paulo relatou esse episódio aos gálatas porque fora questionado sobre a opinião dos apóstolos ou dos discípulos mais importantes. Em 2,6-10, ele mostra a pouca importância disso, “porque Deus não faz acepção de pessoas” (v.6). Mas, como serviria para confirmação e repostas aos seus questionadores, Paulo deixa claro que as colunas (Pedro, Tiago e João) não impuseram observações legais sobre o que ensinava, mas designou-os (ele, Barnabé) como responsáveis para pregação aos gentios, enquanto Pedro para os judeus. A única recomendação deixada para Paulo foi sobre a ajuda aos pobres, que pode ser lido como uma indicação aos irmãos de Jerusalém, ou de maneira sociológica, no sentido dos pobres no Império Romano – nos textos de Atos essa ordem não aparece nas recomendações conciliares em At 15,20; 15, 29 (não comer carne sacrificada, sangue das carnes sufocadas e união ilícitas). Com essa apresentação, ele mostrou sua compatibilidade com a igreja em Jerusalém; os intrusos é que estavam em desacordo com os demais líderes da Igreja. Isso não significa que Paulo era submisso a Jerusalém, mas simplesmente que até mesmo eles concordavam com sua posição.

Ainda falando da experiência de Antioquia, Paulo cita o episódio da discussão com Pedro, ocorrido depois do Concílio, quando Céfas estava naquela cidade, antes da segunda viagem de Paulo (Gl 2,11-14). Nesse tempo de estadia em Antioquia, inicialmente Pedro participava da mesa com os gentios sem se preocupar com as questões das regras judaicas de comensalidade. No entanto, com a chegada de alguns vindos de Jerusalém (saídos da parte de Tiago; v. 12) – talvez os mesmos adversários de Paulo citados no Concílio de Jerusalém – houve uma mudança no comportamento de Pedro na relação com gentios antioquenos. O verso usa o verbo no aspecto imperfeito para deixar claro que Pedro "comia junto" (sunésthien, v.12), ou seja, era uma ação comum, repetida e contínua. Isso mudou depois da chegada dos que afirmavam a circuncisão como uma necessidade, pois ele começou a se esquivar e evitava comer com os gentios. Esses da circuncisão, pelo que parece, também estavam preocupados com outros detalhes da lei, como a questão da alimentação e sentar-se à mesa. Para Pedro o problema não estava no comer ou não, mas na presença dos legalistas de Jerusalém. O pior foi que os judeus da comunidade, e até Barnabé, fizeram a mesma coisa, e isso para Paulo era agir hipocritamente (v.13). Essa postura dos judeus com os gentios da comunidade incomodava a Paulo, pois era uma forma de escravidão e tolhimento da liberdade em Cristo (2,4).

Paulo interpreta essa atitude como antievangélica e percebe que isso poderia dar margens para distorções daquilo ensinava como o verdadeiro evangelho. Por isso repreende a Pedro diante de todos: “se tu que és judeu, age como gentil e não como judeu, como compeles os gentios a viverem como judeus?”. Podemos entender isso pelo menos de duas formas. A primeira, como defende autores como J. D. Crossan e J. Reed (cf. Em Busca de Paulo – Como o Apóstolo de Jesus Opôs o Reino de Deus ao Império Romano, p. 202-203), havia se decidido que todos comeriam o Kosher (a comida permitida pela Lei judaica) nas refeições em conjunto, mas Paulo não aceitou isso. No inicio Pedro não se preocupava com o kosher, mas depois da chegada dos cristãos judeus ele poderia ter pressionado os gentios obedecerem a essas regras, isso para Paulo seria hipocrisia. Outra opção, e acho a mais provável, é que os antigos “legalistas” que incomodavam a comunidade antes do Concilio não se sentiam satisfeitos com a decisão tomada para os gentios cristãos. Ao chegarem à comunidade, para não os desagradar, Pedro toma aquela atitude. Fazendo assim, estariam obrigando os não judeus a levarem em consideração as regas alimentares da Lei, coisa que na verdade o próprio Pedro não se importava, pois quando convinha agia como um gentio, a saber, não se preocupava com leis sobre os alimentos e comia na mesa com todos. Não sabemos qual foi a resposta de Pedro, e nem dos demais. No entanto, depois disso Paulo brigara com Barnabé e foi para sua segunda viagem, passando pela Cilícia (At 15,36ss). Com esse episódio o apostolo dos gentios defende sua autoridade, a ponto de poder repreender o próprio Pedro. Essa seria a última cartada para refutar as críticas feitas por seus adversários na Galácia, que como em Antioquia, pregavam uma fé em Cristo ladeada pela observância da Lei.

Depois, nos versos 15-16, ele entra naquilo que será tratado nos posteriores capítulos. No verso 15, falando no plural, ele gera um efeito retórico inclusão em certo grupo - aqui Pedro, os demais judeus e ele - ("nós por natureza [fýsei] judeus e não dos pecadores gentios ” [v.15]). Logo depois afirma aquilo que será tratado nos dois outros capítulos, como uma espécie de conclusão dos dois anteriores. Deixemos o próprio Paulo falar, numa tradução mais literal: “Sabendo, porém, que o homem não é justificado (dikaioûtai, tornado justo) de obras da Lei (nómos), a não ser através da fé de (em) Jesus Cristo, também nós em Cristo Jesus e não das obras da Lei, porque das obras de lei não será justificada toda carne” (2,15-16) (tradução pessoal).

Como bem explicou R. Bultmann (cf. Teologia do Novo Testamento, p. 322), por nómos [lei] (com ou sem artigo) Paulo entende ser o Pentateuco do AT ou todo o AT (em 1 Co 14,21 aparece Is 28,11 como nómos), com exceção de algumas passagens nas quais nómos tem o sentido geral de norma ou obrigação. Desta forma, Paulo ao falar da Lei, referia-se, como diz o grande exegeta alemão supracitado, à totalidade das exigências legais dadas historicamente nos âmbitos ritual, cúltico e ético que exigiam obediência tópica em casos concretos. Podemos colocar nesse grupo a Torah oral, que também tinha peso no judaísmo; no entanto, não podemos afirmar se essa estava na mente paulina quando escreveu a carta.

Paulo coloca lado a lado a possibilidade de ser considerado justo diante de Deus por meio da obediência a essas regras legais e a fé de ou em Jesus Cristo. Segundo o apóstolo, a justificação só seria possível pela segunda opção. Porque pela prática da Lei ninguém é justificado (v.16), pelo contrário, a Lei mostra a incapacidade de agradar ou obedecer a Deus, por isso todos pecaram (Rm 1,18-2,29). Obediência à Lei como sinônimo para justificação é impossível, porque ela, pelo contrário, segundo o apóstolo Paulo, serviu exatamente para mostrar nossa injustiça (Rm 3,19; Rm 7). A justificação pela Lei é sinônimo de autossuficiência, aceitação divina por capacidade própria de fazer ou agradar a Deus. A justificação, então, pela fé é consequência obvia da Lei, pois leva o homem em direção a uma justificação que não dependa dele, mas de Deus (Rm 3, 21-31).

Segundo as novas pesquisas, de autores como Sanders (cf. Paul and Palestinian Judaism: a comparison of patterns of religion), os judeus do primeiro século não acreditavam na aceitação divina por obediência à Lei, ou por méritos, mas pela graciosa iniciativa do Pai em estabelecer uma aliança. Uma vez dentro dessa aliança, obedecia-se às regras para permanência ou como uma reposta a essa ação de Deus. Segundo essa nova perspectiva, o judaísmo não pregava uma obediência para serem aceitos, mas por serem aceitos. Desta forma, a lei seria um sinal de pertencimento e não uma condição de acesso. Sanders chama isso de “nomismo pactual”, pois o judeu do tempo de Paulo sabia que nascera graciosamente dentro da aliança, por isso não praticava a Lei para ser da aliança, mas para manter-se dentro dela. Para a “nova perspectiva” ou Paulo caricaturou o Judaísmo, fazendo acusações indevidas, porque ninguém dizia ser aceito por Deus por obedecer a Lei, ou os leitores de linha reformada, desde Lutero, entenderam equivocadamente o que Paulo disse.

Se a Nova Perspectiva estiver certa, o que Paulo atacou, então, foi a imposição de regras legais veterotestamentárias aos gentios convertidos, mesmo se essa atitude fosse vista como uma maneira de permanecer na aliança e não de pertendecer a ela. Essa crítica paulina parece ser bem clara no capitulo dois verso 16, no qual contrapõe fé e obras, dizendo que somos justificados exatamente pela fé, a única resposta a ação graciosa de Deus. Essa fé além da aceitação da mensagem (Rm 10,9-10) também está relacionada com a vivência Cristã, como disse Kasemann (cf. Perspectivas Paulinas, p.135). Não que a justificação ocorra por causa das práticas, mas agora justificados pela graça de Deus, mediante a fé, a vida toma novos rumos (Gl 5,13-6,10; Rm 6,12-18).

Depois dessa afirmação categórica, o apóstolo nos versos 17-21 apresenta uma radicalização de suas ideias, defendendo a completude da justificação em Cristo: Se ainda depois da fé em Cristo for preciso observar algumas regras da Lei, seja para permanência ou identificação, como diz a Nova Perspectiva, ou para justificação propriamente dita, não estaria Cristo nos levando para o pecado? (v.17). Ou seja, se Lei leva o homem ao pecado, ou mostra sua situação de dependência, então, se depois do sacrifício de Cristo houver a necessidade desse complemento (observar a Lei), estaria Cristo a serviço do pecado. Assim, ele afirma algo drástico. A submissão à Lei para justificação é o mesmo que invalidar ou desvalorizar a morte de Cristo: pois se a justiça é através da Lei, então Cristo morreu em vão (v.21). No entanto isso seria completamente contrário ao que Paulo ensinou, porque ele mesmo disse, numa espécie de antítese, “através da Lei para Lei morri, para que para Deus viva” (v. 18).

O antagonismo Lei e fé, obras da Lei e obras da fé, Paulo trabalhará em todo o bloco seguinte.

sábado, 18 de setembro de 2010

Primeiro Bloco da Epístola aos Gálatas: iniciando as argumentações paulinas



Como prometido, começo neste post uma exposição rápida da Carta aos Gálatas. Antes, quero fazer uma justificação terminológica que não fiz no post anterior. Utilizarei livremente as expressões “carta” e “epístola” não levando em consideração a distinção feita por Deissmann. Como já havia explicado o saudoso exegeta alemão W. G. Kümell, desde 1973, em sua obra EINLEITUNG IN DAS NEUE TESTAMENT (Introdução ao Novo Testamento), “em vista da maneira toda especial de usar a forma epistolar na primitiva missão cristã, as linhas demarcatórias entre cartas propriamente ditas e as epístolas do NT nem sempre podem ser traçadas com precisão”. Por isso e outras questões práticas, ora utilizarei carta ora epístola, mas consciente das pesquisas que me precedem.

Bom, a exposição seguirá a divisão, em blocos e perícopes, extraída da carta no post anterior. Qualquer dúvida, basta voltar ao texto.

1,1-10: Introdução e Proêmio

Paulo começa sua carta com uma saudação, comum às correspondências da antiguidade, identificando o remetente (s) e destinatários (1,1-5). Logo nesse início ele revela algumas preocupações e conceitos que serão expostos e defendidos em toda obra. Outro detalhe do início do texto é que onde, em outras situações, colocaria uma oração de ação de graças (cf. I Ts 1, 2-10), Paulo tece duras críticas à comunidade. Leiamos a introdução e proêmio à luz das perícopes desse primeiro bloco.

1-5: Logo no início a missiva mostra seu caráter polêmico, que é bem nítido em toda obra. Segundo John D. Crossan e J. L. Reed, “a polêmica não tem o propósito de conduzir um debate justo, acurado e objetivo, mas de demolir os oponentes impugnando seus motivos, ridicularizando seus argumentos e caricaturando seus pontos de vista”. Assim, podemos nos aproximar do conteúdo da carta tendo-o como contra-argumentos paulinos, pois procura responder algumas acusações e dialogar polemicamente como o discurso dos seus adversários.

Nos primeiros cinco versos da introdução, o apóstolo faz questão de afirma que seu apostolado não veio da parte de homens nem por intermédio de homem (plural e singular: homens/homem), mas através de Jesus Cristo e Deus Pai. Isso é muito importante para a continuidade de seus argumentos, a ponto de mais adiante gastar um tempo provando, com uma reveladora biografia, sua autoridade e autonomia (2,11-24). Sem essa defesa pessoal os argumentos paulinos morreriam no “ninho”, pois, pelo que parece, os adversários questionavam seu apostolado e diziam ser ele mero missionário subordinado à Antioquia e Jerusalém.

Ao mesmo tempo, Paulo identifica-se de forma coletiva, pois inclui os irmãos que estão com ele (v. 2) como remetentes da carta, isso para dar ainda mais valor ao seu texto, pois concede ao seu argumento valor comunitário.

Depois dessa preliminar defesa, ele deseja a cháris e eiréne (graça e paz), que possuem grande peso teológico tanto na linguagem judaica (comparar com a shalom hebraica) quanto para os conteúdos da Carta aos Gálatas. A graça e a paz vêm “da parte de” (apó) Deus, tratado como Pai, e de Jesus Cristo, visto como Senhor; em relação atributiva, podemos ler as expressões kyríos (senhor) e christós como afirmações teológicas a respeito de Jesus, como Senhor e Ungido. Essas expressões definem a cristologia paulina em Gálatas. Depois disso, usando um verbo no particípio com artigo (toû dóntos), ele identifica Jesus como aquele que se doou, ‘por causa” ou “por” nossos pecados (v. 4). Essa é uma formula cheia de sentidos teológicos, e já antecipa suas argumentações posteriores. E, imediatamente, ele diz que essa entrega (morte) é para nos “tirar” do presente aiônos (mundo/ Era) mau/má. Essa expressão “presente mundo mau” está em diálogo com uma importante tradição judaica, a apocalíptica, na qual a história é dividida escatologicamente em duas Eras, ou aiônes ( como aparece no livro 4 Esdras), uma presente que é má, cheia de demônios (ver o texto apocalíptico de Jubileus 10), que será seguida por um Mundo Porvir, Mundo Novo ou Novo Tempo. Os autores neotestamentários foram muito influenciados por essa cosmovisão apocalíptica. Contudo, leram-na à luz do evento Jesus, pois com sua chegada, morte e ressurreição, mesmo não havendo a irrupção apoteótica de Deus na história, deu-se inicio a esse fim. Aqui Paulo diz que esse novo tempo é vivido em Cristo, que também está ligado a libertação da Lei, como mostra na carta, e das forças dos seres cósmicos desse mundo (Gl 4,3.9).

6-10: onde era de seu costume apresentar uma ação de graças, Paulo revela-se consternado por causa da atitude dos crentes da Galácia nortina. Sua indignação é porque rapidamente eles deram ouvidos a alguns que corrompiam o evangelho. Paulo os critica dizendo: “admiro-me que rapidamente estejais vos transferindo d’Aquele que vos chamou pela graça de Cristo, para outro evangelho” (v.6). Como demonstramos na introdução, transeuntes ou “missionários” de fora estavam perturbando com ensinamentos contrários aos paulinos nas comunidades da Galácia (v. 7). Alguns se deixaram levar e aderiram às suas propostas. Para Paulo isso era o mesmo que deixar o próprio Deus (v.6). Assim, para Paulo havia um movimento de afastamento da chamada pela graça para uma experiência de outro evangelho, de um evangelho diferente. Dentro da própria carta encontramos o conteúdo desse héteron euangélion (outro evangelho), com o qual Paulo dialoga o tempo todo, sempre apresentando diferentes alternativas às suas propostas. Jogando com as palavras héteros e állo (a primeira tem o sentido de outro diferente ou estranho, enquanto a segunda pode ser traduzida também como outro, mas outro com a mesma autoridade, ou outro do mesmo nível), Paulo insinua que estão se mudando para um estranho evangelho, ou seja, um que não é do mesmo nível ou qualidade, incompatível ou diferente, daquele pregado por ele, o que anuncia a chamada de Deus na graça. Ele diz que esse tipo de evangelho deve ser “anatimizado”, excluído, tratado como algo maldito, mesmo que seja anunciado por um anjo ou por ele mesmo (v.8.9). O evangelho que exige a obediência a certas práticas rituais judaicas, juntamente a justificação pela fé, deve ser excluído do conteúdo da vida dos crentes gálatas.

Depois dessas primeiras pinceladas críticas, Paulo faz algumas perguntas retóricas a respeito de suas intenções (v.10). Segundo ele se suas intenções fossem de satisfazer os desejos de outros ele não poderia ser chamado de servo de Jesus (v.10). Esse verso serve exatamente como eixo para o próximo bloco de argumentações, no qual mostrará a idoneidade tanto da sua pregação como de sua própria pessoa.