Segundo o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no artigo 4º, é dever, e não opção,
da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público (resumindo:
É responsabilidade de todos/as nós!) assegurar (ou seja: tornar possível, fazer
acontecer, efetivar) à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade (!),
os direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte,
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária. E, ainda, em Parágrafo único,
o ECA determina para todos nós o dever de priorizar a efetivação da proteção e
socorro, em quaisquer circunstâncias, a preferência na formulação e na execução
das políticas sociais públicas e a destinação privilegiada de recursos públicos
relacionados à infância e à juventude. No entanto, esse lindo texto de promoção
de direitos e exigências de deveres não se aplica, na prática, às crianças
pobres e deixadas às margens. Isso ficou bem claro no caso do menino João
Vitor, de apenas 13 anos, morto em Vila Nova Cachoeirinha, em frente de um
Habib’s da zona norte de São Paulo. Esse crime escancara a face mais cruel da
lógica preconceituosa do nosso país. Vitor foi arrastado, agredido, violentado,
desumanizado e morto, no meio da rua, como se fosse um lixo dispensado na
sarjeta. A barbárie é ainda maior, porque João Vitor (e faço questão de repetir
seu nome em todo texto!) estava naquele Habib’s mendigando o que lhe era de
direito: alimentação!
O júri informal e imoral foi
estabelecido imediatamente. Ali, na rua mesmo, o Habib’s e seus funcionários,
usando do princípio do preconceito, decretaram para Vitor a pena máxima – a
mesma que é aplicada diariamente a outras crianças pobres e jovens negros do
nosso país –, o veredito de morte. Qual o crime? – Ser catador de recicláveis,
ser pobre! Nas palavras de seu pai, Marcelo Fernandes de Carvalho: “Ele teve
uma morte que não se faz nem com animal. Meu filho era humilde igual eu,
catador de lixo. Ele pedia, mas não roubava nada de ninguém. O moleque foi
espancado por causa que estava pedindo um real para comer um lanche”.
Depois, tornando o caso ainda
mais trágico e vergonhoso, a informação da Sra. Sílvia Helena, testemunha
ocular, foi desdenhada e desacreditada. Mesmo sabendo detalhes do crime, ela
não foi ouvida. A razão? Ora, a mesma que matou João Vitor: ser catadora de
recicláveis, ser pobre. Neste país, onde se torna culapado/a o violentado/a, se
naturaliza o sistema de má distribuição dos bens, se valoriza o sucesso de
poucos à custa da ocultação do de-sucesso de muitos e se defende a lógica
social darwinista/meritória, catar papel e pedir comida é crime inafiançável e
prova irrefutável de culpa. Então, não venha com conversa fiada! Sim, no
Brasil, o preconceito ainda mata e silencia!
O sacrifício do João Vitor é
símbolo da nojenta, indigna e maligna/diabólica naturalização da discriminação
contra pobre, preto, mulher, índio, nordestino, homossexual e outros grupos
desumanizados, os quais, por vezes, são violentados e mortos por causa de sua
cor, gênero, etnia ou orientação sexual.
Contudo, a fé que anima minha caminhada e ajuda-me interpretar meus dias, é alimentada por narrativas a respeito do Deus que nasce entre excluídos e lançados às margens. Ele é testemunhado por pastores, os mesmos que não teriam voz em um júri romano. Ou seja, o Nazareno recém-nascido foi proclamado por “Silvias”, catadores de resíduos. Nele, silenciados ganham voz. O Mestre, aquele que vigora a esperança e dá vida e razão à experiência pastoral, exige-nos indignação, compaixão e movimentação diante dessa “patologia social”, para que usemos nossa influência, força relacional, articulação política, presença pública e contados na criação de espaços conscientizadores e transformadores, os quais promovam ações preventivas e estruturantes contra a violência, o preconceito e desumanização.
Bem-aventurados são os que têm fome e sede de justiça. Bem-aventurados os que não aceitam passivamente o tenebroso enredo da morte de João Vitor!