terça-feira, 23 de julho de 2019

Brasil bolsonariano: como entendê-lo?




É democrático e cívico aceitar o resultado das urnas. Quando Aécio e o PSDB fizeram balburdia com esse papo de fraude pós-derrota em 2014, fui rápido em criticar. Da mesma forma, aceitei as urnas em 2018, a despeito de lamentar. Ou seja, votar no Bolso era direito de qualquer um. Contudo, não é possível entender alguns defenderem ou eufemizarem os absurdos do presidente. O representante da nação teve coragem de relativizar a maior vergonha humana, a fome. Afirmar que não há fome no Brasil é um absurdo tão grande que deveria deixar todo mundo envergonhado. Pior que isso, alguns de seus defensores, para justificarem ou sei lá o quê, publicaram os dados da grande miséria no Brasil e depois, ironicamente, perguntaram: "a fome não tinha acabado?".  Caiam em si, parem de sandices! Exatamente por pessoas passarem fome no Brasil, a fala do presidente é odiosa. E mais, mesmo que retoricamente, qualquer presidente afirmaria em seus projetos lutar contra a fome e nenhum governo em sã consciência desdenharia desse assunto tão grave. A luta contra a fome nunca zerou sua existência e reconhecê-la é o caminho mínimo, primeiro passo óbvio, para demonstração de preocupação e possíveis ações. Dizer que ela não existe é desumano, imoral e grave pecado. Rir da morte, ironizar o desumano e encobrir o que há de pior nas relações sociais é desconsiderar a preocupação divina e sua clara defesa pelos direitos dos miseráveis. E aos pastores e pastoras próximos ao presidente e inseridos em seu governo, por favor, sejam fiéis ao evangelho e aproveitem o lugar no qual estão para, de alguma forma, iluminarem consciências. 

O mesmo presidente da república, sem qualquer reserva, subestimando todo mundo, inclusive seus eleitores e eleitoras, vai às redes sociais e faz uma live e diz que favoreceria seu filho e, mesmo que não votassem mais nele, daria cabo ao projeto de indicar Eduardo Bolsonaro como embaixador em Washington. Isso deveria deixar a todos estupefatos e revoltados, porque representa o mais nítido nepotismo e desrespeito! Mas, pelo contrário, alguns dizem: "mas ele é mito! Ajuda a família e não esconde". Por outro lado, há um silêncio conivente em relação à luta do seu outro filho, Flávio Bolsonaro, contra os avanços da investigação no caso do seu ex-assessor Queiroz (lembrando que ele próprio também empregou vários parentes). Em suma, aberrações brotam no governo e os eleitores do PSL preferem zombar dos críticos e fazem sinal de arminha, "lacrando".

Como se não bastasse, de forma irresponsável, o presidente eleito, sem qualquer averiguação prévia, desmente o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) sobre o desmatamento da Amazônia. Deixando de lado qualquer decoro, ele simplesmente joga à plateia: "o INPE está a serviço de alguma ONG", “tenho convicção que os dados são mentirosos”. Como o Bolso tem coragem de declarar isso!? Vejam, o mundo todo compra e vende, negocia e faz embargos econômicos, levando em consideração o tema da sustentabilidade. Por incrível que pareça, mesmo assim, seus antigos eleitores ovacionam sua resposta. Como em um filme de terror, outras cenas tenebrosas vão jorrando: fala sobre os nordestinos, perseguição ao governador mais bem avaliado em pesquisas atuais (Flavio Dino), suspensão dos contratos com sete grandes laboratórios públicos para produção de 19 remédios de distribuição gratuita pelo SUS (o que prejudicará 30 milhões de dependentes), a ameaça de redução da multa de 40% do saldo do FGTS paga a trabalhadores demitidos sem justa causa etc. E pior, o presidente errou (ou mentiu) ao falar que a multa de 40% do FGTS foi criada pelo ministro Dornelles, no governo FHC, porque tal direito trabalhista foi imposto pela Constituição de 1988! Na verdade, no mandato de FHC foi criado um adicional de 10%. Ainda sobre esse grande equívoco, Bolso diz que por causa dessa multa “o pessoal não emprega mais”. Como isso é possível!? Esse tipo de resposta sobre o desemprego no Brasil seria aceito em grupos do Zap, mas nunca deveria vir de um presidente! E mesmo assim, parte do seu eleitorado continua tratando como se nada estivesse acontecendo ou, pior, corroboram com seus disparates.

Seria arrogância? Ignorância? Insensibilidade? Não sei bem! Todavia, essa relação religiosa com o Bolso transformou brasileiros em eternos eleitores. Se você foi crítico aos governos anteriores e sempre se escandalizou com o protecionismo político de alguns eleitores do PT, não se permita cair no mesmo erro. Pelo bem do Brasil, não importa em quem você tenha votado, agora é tempo para averiguar, exigir posturas dignas, projetos e respeito!

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Vai tristeza e diz para ele...



Hieorofania é irrupção, sacralidade teimosa e invasora do mundo da vida e sua cotidianidade. Na voz e violão do imortal João Gilberto, “Chega de saudade” pode ser colocada nessa categoria, pois é evento epifânico. Depois dele, nunca mais nossos ouvidos brasileiros seriam os mesmos. A primeira vez dessa canção, nos lábios de Elizabeth Cardoso, o violão no fundo do disco “Canção do Amor Demais” indicava os relampejos do incomum, um totalmente outro cuja melodia apontava recriação; era a arte "gilbertiana" despontando. Pouco depois, violão posto, sentado tipo leitor medieval, peito em riste e alma ungida de beleza, no final dos anos cinquenta, surge entre nós a voz-mansa, dedilhado-perfeição e melodia-síntese. Eis aqui a Bossa Nova, era o João do Brasil mudando a estética. Não me importa (como diz um texto bonito que li por aí) seu claustro, conflitos relacionais ou esquisitices pessoais, vale-me o orgulho de ser da mesma Terra Brasilis de tantos outros “joãos” e “marias”.

Na capa do antigo vinil, mão em rosto e olhar fito, João Gilberto parece confessar, extasiado e cansado, o acabara de provocar. De agora em diante, diversas nações seriam obrigadas a ouvir a língua mais poética do mundo e curvarem-se diante de sua potencialidade. Ele é brasileiro! A genialidade agora carrega a memória indígena, o sotaque melódico africano, a batida em cordas do tamborim e a conjugação de verbos polissêmicos do terceiro mundo.

Certa vez, o poeta Carlos Nejar – esse também é acostumado com hierofanias – disse-me que o homem é menos do que o poeta. Não estaria o escritor de "Os Viventes" desconsiderando a grandeza do artista. Pelo contrário, sua fala eterniza o autor em sua criação e eleva-o à condição insuperável de canal, fonte e caminho para o fulguro da transcendência. Por isso, a tristeza não é maior porque a arte de João Gilberto perenizou-se na cultura poética da história humana e todos poderão, ao revisitá-la, sem que o tempo ou a morte ocultem-na, estupefatos suspirar: sagrado, belo!

Sim, vai saudade e diz para ele que sua obra fica (!) e animará a vida e alma de tantos quantos ouvirem seus acordes, voz, violão e paixão.