quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

"Êxtase, Culto Celeste e Outras Línguas: uma possível leitura de At 2,1-4..."




Depois de uma aula ministrada em Salvador sobre o misticismo apocalíptico na literatura enoquita e suas relações com o apocalipse de João, e após algumas reflexões com o professor Claudio, tive algumas intuições para leitura de At 2. Talvez, pareça contraditório passar da relação de 1 Enoque e Apocalipse de João para Atos 2; mas explico. Em 1 Enoque, no capítulo 14, quando o visionário é levado ao palácio celestial, onde está o trono de Deus, ele vê um muro construído com pedras de granito e rodeado com “línguas de fogo”. Na continuidade da leitura do texto apocalíptico, aparecem no mesmo contexto do trono de Deus a presença de fogo nos umbrais, no solo e debaixo do próprio trono (1 Enoque 14,12.15.17-19). Essa imagem, imediatamente, trouxe-me à memória o texto lucano, lido como fundante não somente para o pentecostalismo, mas, especialmente, para a igreja em geral.

Neste post, quero somente fazer alguns rabiscos sobre minhas primeiras impressões. Estas se tornarão um posterior artigo mais acadêmico, com pontuais indicações bibliográficas e análise mais acurada dos textos e das produções sobre o assunto. Por enquanto, desejo simplesmente perguntar se temos alguns resquícios – à luz do quadro pintado sobre o tema na literatura judaico-cristã – das imagens do culto celeste em At 2, 1-4, e se há alguma relação disso com a experiência religiosa do êxtase nas primeiras comunidades cristãs. Comecemos pela análise rápida do texto para depois fazermos as primeiras ponderações.

At 2, 1-4: experiência de êxtase e línguas

No capítulo 1 de Atos, em sua aparição pós-ressurreição, Jesus ordena aos discípulos a ficarem em Jerusalém, porque receberiam a promessa do Pai (1,4). Esta era o batismo no Espírito Santo (1,5). Os discípulos entenderam isso escatologicamente (1,6), mas Jesus muda o tom da conversa e explica que essa experiência não serviria para marcar datas escatológicas, mas para torná-los testemunhas (1,7-8). O verso 8 revela bem o programa redacional lucano, pelo qual mostrará como se expandiu o anúncio do evangelho – a começar por Jerusalém, exatamente onde insere-se a experiência da descida do Espírito.

Depois da inserção da tradição da escolha do discípulo substituto de Judas (talvez para tornar a experiência de At 2 completa), o texto retoma a questão da descida do Espírito, agora como cumprimento e concretização e não somente promessa.

O texto de At 2,1-4 começa dizendo que no dia de Pentecostes, cinquenta dias depois da páscoa, os discípulos estavam reunidos. De repente (do grego áphno), surgiu do céu um som, ou eco (êchos), como de um desencadeado vento violento e encheu ou preencheu toda a casa onde estavam assentados (2,1-2). Lucas não fala de vento real, mas do som parecido com um vento forte, um barulho. O interessante é o fato de o som encher a casa. Como pode um som preencher um ambiente? Isso lembra a mesma expressão de êxtase do visionário João do Apocalipse: “virei-me para ‘ver’ a ‘voz’” (blépein tèn phonèn)(Ap 1,12).

Da experiência auditiva, ou melhor, semi-auditiva (o som “enche” o lugar), são vistas por eles línguas como de fogo. Estas são divididas sobre cada um deles (2,3). O texto continua dizendo que foram preenchidos do Espírito Santo e por isso começaram a falar em outras línguas (héterais glóssais), conforme o mesmo Espírito dava-lhes capacidade para falar (v.4), ou de acordo como Ele concedia. Aqui chegamos ao auge da experiência extática da cena. Depois de completados/preenchidos do Espírito, eles começam a falar línguas, estas com origens não terrenas, pois eram concedidas pelo o que desceu do céu. O quarto verso usa o verbo apophthéngomai para se referir ao falar com influência do Espírito. Essa expressão se refere ao falar profético ou inspirado, em êxtase. E pode ser traduzida como “falar com força”, “claro”, “com ênfase” (Kittel, TNTD), em um quadro de experiência extática. Na Septuaginta o verbo é usado no particípio para traduzir a palavra “profeta” em Ml 5,11, como também a ação de profetizar de 1 Cr 25, 1. Em Atos é usada para caracterizar o discurso de Pedro depois do pentecostes (2,14) e o de Paulo diante de Agripa (26,25), que podem ser vistos tanto como um falar comum, como também uma fala inspirada ou conduzida por uma experiência de êxtase ou transe, especialmente em At 2,14.

Lucas depois diz que essas línguas são inteligíveis, pois os vários judeus da diáspora entendem os possuídos pelo Espírito, pois anunciavam em suas próprias línguas as grandezas de Deus (5-13). Pelo que me parece, como também para o professor Paulo Nogueira [1], estes versículos são redacionais e foram usados para os propósitos teológicos lucanos, pois domesticam o falar em outras línguas do êxtase cultual, transformando-o em anúncio compreensível. Por essa perspectiva, podemos ler os versos 1-4 separadamente e ladeados pelas mesmas experiências na igreja em Corinto, testemunhadas em 1 Co 12-14. Neste grande bloco, Paulo está tratando dos abusos das manifestações das línguas (glossolalia), que para ele não são inteligível (1 Co 14,2), e não servem para evangelização, pelo contrário, podem parecer estranhas aos não crentes (14, 23). Tanto em Atos 2,1-4 como em 1 Co 14 as línguas são manifestas em estado de êxtase. Na carta paulina, o êxtase pode ser regulado, organizado e está reservado ao ambiente de culto, sempre com interpretação, que também é um dom listado dentro do grupo paulino dos carismas, entre os quais também está o dom de falar em outras línguas (1 Co 12).

Bom, as línguas e o êxtase também estão próximos na literatura judaica, como também a vinculação do êxtase às experiências místicas de viagens ao trono de Deus na literatura apocalíptica do segundo tempo; aqui não podemos descrever esses textos, mas já há uma boa literatura sobre o tema em língua inglesa e algumas coisas em português.

Êxtase e culto celestial em At 2,1-4

Eram bem conhecidas, no judaísmo do segundo tempo, as ideias da participação dos cultuadores terrestres no culto celestes, ou dos membros do culto celeste no culto terrestre, como também, a imagem do culto terrestre como reflexo do celeste. Essa concepção de continuidade da realidade divina e a experiência terrena do culto, está bem presente na literatura de Qumran (um bom exemplo são os Cânticos dos Sacrifícios Sabáticos).

No misticismo da literatura apocalíptica, os visionários eram levados aos céus e lá conheciam os movimentos cósmicos, a organização celeste como também contemplavam o culto no trono de Deus. João do Apocalipse, quando entra pelas portas celestes, contempla um culto nos céus (Ap 4,1-11). E o êxtase estava, em muitas ocasiões, relacionado à visão do trono (Merkavah), pois o visionário contemplava tudo isso nesse estado.

Temos em Atos 2,1-4 as “línguas (como) de fogo”, a “glossolalia” e um grupo de crentes em êxtase. O texto não fala de uma viagem visionária para os céus, mas coloca pelo menos dois elementos do trono de Deus, como é visto na literatura apocalíptica, entre os discípulos em estado de êxtase religioso. (1) As “línguas (como) de fogo”, como vimos em 1 Enoque 14, como também o próprio “fogo”, estão no palácio (muros) lado a lado do trono de Deus; (2) as outras línguas (glossai) também estão, em alguns momentos na tradição judaica e cristã, relacionadas ao culto dos anjos diante de Deus (um exemplo é o Apocalipse de Paulo). Como se no céu houvesse um língua de louvor diante do trono.

Rabiscos para novas questões...

Como vimos, o texto de Atos tem êxtase e elementos do culto celeste ou presentes na esfera celestial. Será que podemos ler o texto de Atos 2, pelo menos em 2,1-4, como uma expressão de um culto celeste reproduzido entre os discípulos? Se assim for, seria uma legitimação dos cultos extáticos das primeiras comunidades cristãs? O que parece, e isso precisarei investigar com mais tempo, é a hipótese de que Lucas faz da origem da igreja um culto celestial e isso aproxima ainda mais as origens dos cristianismos ao misticismo da apocalíptica judaica.


[1]NOGUEIRA, Paulo. Palavras ininteligíveis. Êxtase e derramamento do Espírito no culto das comunidades paulinas. In:NOGUEIRA, Paulo. Experiência Religiosa e Crítica Social no Cristianismo Primitivo. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 59-74.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Centenário das Assembleias de Deus no Brasil: Festas e Críticas


Por estarmos no ano da comemoração do centenário das Assembleias de Deus no Brasil, e por causa da vergonhosa briga pelo poder na Igreja de São José dos Campos (mais informações no Blog Fronteira Final), resolvi postar novamente um texto que escrevi em maio do ano passado. Na época, ele foi interpretado como áspero por uns e verdadeiro por outros, mas acredito que agora, diante das iminentes festas do centenário e o recente e ilustrativo caso “Sellari-Câmara” na Assembleia de Deus em São José dos Campos, poderemos fazer novas leituras e reflexões.

Bom, vamos ao texto...

Durante as comemorações dos 500 anos da “descoberta” lusitana do Brasil, muitas perguntas me sobrevieram. Entre essas, a mais incomodante e, por sua vez, essencial para aquele momento, foi esta: “comemorar o quê?”. O estupro histórico conceituado como colonialismo? A inglória das ditaduras? A hipocrisia da cultura do “fácil-corrupto-agradável”, materializada desde as microrrelações cotidianas chegando ao nosso circo parlamentar? Na época eram tantos motivos de anticomemoração, que restava unicamente o silêncio e o reconhecimento do opróbrio e vergonha.

Quando me deparo com o que se transformou a Assembleia de Deus, tenho um sentimento parecido. E, ao ler sobre seu centenário sou instigado a fazer a mesma indagação: O que comemoraremos? A assimilação maligna da lógica egocêntrica, pragmática e dissimulada de nosso tempo? O enrijecimento institucional? E com isso a estagnação obscurantista e o estabelecimento da politicagem fria e dissimulada?

Sei que tivemos muitos momentos honrosos em nossa história, mas não podemos viver do passado. O passado é monumento sinalizador, que perde o sentido de ser quando no presente não sinaliza mais. Não comemoramos somente o passado, mas o que somos depois de toda a caminhada até o hoje. Se no processo muito se perdeu, o passado não se justifica por si mesmo, mas se desfigura e torna-se uma história outra, um objeto não identificado, uma realidade separada, ou seja, passado morto – Não podemos esquecer que no Cristianismo se comemora a ressurreição e a vida e não a morte.

Quando olho nossa bleia, tenho quase que nojo. “Nojo” parece ser um pouco exagerado, mas é a única expressão que me vem na mente quando lembro de nossas Convenções, Congressos (cheios de pregadores bajuladores - um bando de palhaços animadores de público; ver o 1º post nesse blog) e Reuniões Institucionais. Tornou-se insustentável a presença de “pastores-empresários” donos de reinos, mas longe dos interesses do Reino. É quase insuportável olhar calado para nossos supostos líderes, bem arrumados, com ternos finos, gravatas caras e carros invejados, mas com a alma vendida, com intenções sujas e podres, ávidos pelo poder. Eu não aguento mais dar a paz do Senhor, onde o senhor não é Cristo. Não suporto mais abraçar esses seres e chamá-los de irmãos, porque o nosso pai não é o mesmo.

Cem anos! Meu Deus, cem anos! Cem anos de entropia – não da acumulação de membros e proliferação de templos (nisso a Assembleia cresce muito), mas da vergonha na cara, da piedade, da justiça e da verdade na instituição que fazemos parte. Como gostaria que Deus levantasse outros Oséias, Amós, Miquéias. Como gostaria que Deus colocasse outros Jeremias na frente dos templos para gritarem a todos e todas, sem medo, as mazelas que rodeiam nossa bleia... Acho ser o mais coerente, antes mesmo de a liderança pensar em festas, buscar, cada um, seu pano de saco e cinzas para lamentarem amargamente pelo que fizeram da Assembleia de Deus. O mais sensato, para todos nós, seria ajoelharmos diante do quadro pintado nesses anos todos e chorarmos por nós e nossos filhos!

Sem isso, tornar-se-á a maior hipocrisia do mundo qualquer união simbólica para as comemorações do centenário. Melhor seria a reunião de todos para uma sincera expressão de arrependimento, e promessa coletiva de profundas mudanças e transformações.