Desde Dezembro do ano passado, estamos acompanhando uma onda de manifestações contrárias aos longevos governos árabes. Alguns comentadores insistem ler os fenômenos como uma insurreição dos radicais islâmicos que desejam tomar esses países, aparentemente mais aberto às relações com o Ocidente, para instalarem um regime radical, e assim, logo depois, destruírem o seu arqui-inimigo, Israel. Interessante que Hosni Mubarak, ditador do Egito, afirmou quase a mesma coisa, exceto o presságio sobre Israel. Ele disse que os islamitas estavam por trás da revolução egípcia. O ditador da Tunísia e o rei Abdulá, da Jordânia, viam a presença disfarçada da Al Qaeda e da Irmandade Muçulmana por trás da insurreição que está incendiando o mundo árabe.
Essa perspectiva me parece no mínimo míope. Antes de qualquer coisa, não houve um programa para as ações, as coisas foram acontecendo como uma onda. E mais, cada foco de revolta tem sua agenda e suas reivindicações: os interesses e querelas dos manifestantes do Bahrein não são os mesmos dos motins no Iêmem ou Líbia, por exemplo.
As revoltas foram se instaurando como respostas instintivas ao desemprego, violência e má distribuição dos bens, e não para fazer das nações supostamente mais democráticas nas regiões árabes (como se sua “democráticidade” fosse medida pela maior ou menor amizade com E.U.A!) uma região livre para matar qualquer judeu ou cristão. Os economistas sempre nos alertaram que o mundo árabe tem passado por notável crescimento, mas isso não beneficia a maioria da população, mas simplesmente uma parcela formada pela elite e alas do governo. Por exemplo, no Egito dos 80 milhões de habitantes 40% vivem com menos de dois dólares por dia. Eis aí um indício das mais prováveis razões das manifestações!
No entanto, caso estejam certos os tais conservadores que citei no início, e realmente por trás dessas manifestações haja outros opressores, que desejam uma ditadura muçulmana e liberdade para eliminar cristãos e judeus, esses serão também alvos das mesmas críticas e ações contrárias
Essa perspectiva me parece no mínimo míope. Antes de qualquer coisa, não houve um programa para as ações, as coisas foram acontecendo como uma onda. E mais, cada foco de revolta tem sua agenda e suas reivindicações: os interesses e querelas dos manifestantes do Bahrein não são os mesmos dos motins no Iêmem ou Líbia, por exemplo.
As revoltas começaram depois que Mohammad Bouazizi, tunísio de 26 anos, ateou fogo em seu próprio corpo. O moço estava desempregado e foi impedido pela polícia tunisiana de vender frutas nas ruas, único meio encontrado na ocasião para sustentar sua família. Isso chamou atenção e despertou uma população que vivia os mesmo altos índices de desemprego e autoritarismo. Poucos dias depois, o ditador da Tunísia, Zine El Abidine Ben Ali, cairia do poder. Esse levante serviu de inspiração para o povo no Egito, que conseguiu derrubar outro já caduco governo perpetuado por Hosni Mubarak, após 30 anos no poder. O mesmo espírito já incendiou a Líbia, do louco e personalista Muammar Gaddafi, no governo desde 1969. Como aconteceu nos outros países do norte da África, esse insano, que sempre favoreceu alguns poucos, em especial os da família, será precipitado do trono (e se possível enviado direto para um manicômio!). Da mesma forma, outros levantes surgem em cena no Oriente Médio, como em Iêmen, Bahrein, e no Irã, da figurinha conhecida por nós brasileiros, o “iluste” Ahmadinejad.
O jovem Bouazizi ateou fogo no copo como último grito desesperado por justiça, liberdade e oportunidade. É exatamente esse grito que posso ouvir dos demais insatisfeitos. Acho que as conclusões oriundas das analises feitas à luz das condições sociais e econômicas do povo, e não das teorias conspiratórias, esclarecerem melhor situações históricas como essas. Como disse Robert Fisk, no The Independent, “Dá para pensar que só Irã, Al Qaeda e seus mais ferrenhos inimigos, os ditadores árabes anti-islâmicos, acreditam que a religião esteve por trás das rebeliões massivas dos manifestantes pró-democracia”. O articulista foi feliz na sua análise, pois percebeu que os indícios religiosos entre os clamores populares estavam a serviço de um desejo maior, o desejo de justiça. O desemprego, as más condições de vida, o favorecimento de poucos e os negativos índices reuniram e estão reunindo muçulmanos, cristãos, homens e mulheres para a derrocada de poderes opressores e desumanos no mundo árabe, isso sem a ajuda da Al Qaeda ou sob qualquer programa oculto de grupos radicais muçulmanos. Talvez, você cite as revoltas na Baherein e a maciça presença de xiitas entre os insurretos. Não esqueça que esses são a maioria e há muito são governados pela minoria sunita – aos olhos ocidentais mais abertos e menos radicais –, que usa da polícia política a fim de perseguir seus opositores e para manobras questionáveis, conseguindo se preservar como maioria no parlamento. E mesmo que haja uma clara intenção religiosa no Baherein, isso não representa a totalidade das intenções e desejos das demais insurreições nos outros países.
Posso terminar este post com uma parte da carta de Mohammad Bouazizi, escrita pouco antes de sua tragédia, direcionada para sua mãe: “Perdoe-me se não fiz como você disse e desobedeci suas ordens. Culpe a era em que vivemos, não me culpe". Destaquei a expressão "culpe a era em que vivemos" porque revela bem a razão das revoltas. O motivo das manifestações é exatamente a realidade de homens e mulheres que vivem debaixo do autoritarismo e da desigualdade. Sejam muçulmanos ou não, todos e todas devem ansiar e lutar por uma melhor “era em que vivem”, a mesma que foi culpada pela morte do jovem tunísio que para chamas entregou seu corpo.