Provavelmente, não tenhamos a noção das consequências desastrosas da aprovação da Reforma da Previdência, cuja intenção é reformular as regras da aposentadoria. Para piorar, a questão tornou-se, também, teológica. Segundo notícias, Temer, maior interessado, marcou uma conversa com pastores evangélicos em busca de apoio, especialmente porque alguns desses líderes têm ovelhas e amigos na lista dos deputados. E mais, seus púlpitos e mídias, ou púlpitos midiáticos, são muito úteis. Por isso, cabe, antecipando a ignomínia, abrir as discussões e estabelecer as disputas teológicas. Para avaliarmos a partir da fé, lugar que Temer deseja preencher ao chamar esses líderes evangélicos, é preciso uma rápida averiguação da questão e suas manobras discursivas, especialmente por parte dos apoiadores das reformas.
Para os defensores do presidente, afirma-se que há um déficit no caixa da Previdência: “o país está em crise, os gastos previdenciários são altos, logo, não temos nenhuma alternativa senão mudarmos o sistema de arrecadação e disponibilização dos valores destinados aos aposentados”. Essa justificativa e suas estratégias argumentativas não são integralmente honestas. A maior razão do déficit não é o que se paga aos aposentados, o tempo de contribuição ou o custo para Previdência. O principal problema é a desoneração e os benefícios ficais concedidos pelo Governo às grandes empresas. Como dizem os especialistas, “mais 60 bilhões de reais que teriam de ser recolhidos por meio das contribuições previdenciárias aos cofres públicos desaparecem em razão dessas políticas de incentivo ao setor privado”. A União não cobra das empresas sonegadoras e ainda entrega a elas a possibilidade de pagarem menos tributos legalmente. Como dizem os avaliadores técnicos, “é o próprio governo que provoca o déficit e não o aumento dos gastos”! Segundo uma pesquisa do Ministério da Fazenda, o rombo da Previdência seria 40% menor sem as renúncias fiscais das empresas. Por causa disso, com os benefícios concedidos às empresas o INSS deixou de arrecadar R$ 57,7 bilhões em 2016! Ainda, como explica a economista Denise Gentil, “o déficit foi provocado pelo pagamento de juros, o maior gasto do orçamento do governo. Enquanto o déficit anunciado da Previdência pelo governo é de 149,7 bilhões de reais, o governo entrega ao setor privado algo em torno de 501 bilhões ao ano, ou seja, 8% do PIB. A conta não fecha, principalmente, pelo gasto com a dívida pública. O ajuste fiscal que pretende cortar os gastos da Previdência não vai resolver o problema das contas do governo porque, para isso, é preciso corrigir a política monetária. A verdadeira reforma teria que ser na política monetária e cambial do Brasil, porque é responsável pelo crescimento da dívida pública”. Então, para combater “a crise” não seria aumentando o tempo de contribuição, diminuindo valores ou dificultando o acesso à aposentadoria, mas mudando a política monetária, diminuindo benefícios dos mais poderosos, suas grandes corporações e as irresponsáveis iniciativas privadas [perceba que eu disse “as irresponsáveis”]. Olha a ironia do destino. O próprio presidente da câmara, antigo amiguinho do Temer, o mesmo que aceitava suas tramoias afirmou num encontro nos EUA que o setor privado brasileiro se beneficia do Estado e as isenções e incentivos a empresários inviabilizam as contas do governo e uma agenda social séria no Brasil. Interessante isso!
No entanto, a coisa não para por aí. Há uma informação que nos é negada e pode desmontar o alarde da Previdência estar quebrada. O governo não calcula como receita previdenciária a arrecadação gerada pela Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (Cofins), PIS-Pasep e loterias, embora o sistema de seguridade preveja a contabilização dos impostos. Então, é preferível meter a mão no bolso e prejudicar o futuro dos mais vulneráveis, isentando empresários e iniciativas privadas, escondendo informações e criando narrativas de “mal necessário”! “Imagine, mesmo contribuindo por 25 anos, o trabalhador não terá direito à aposentadoria integral. Por exemplo, se um trabalhador contribuir com uma média de 2.000 reais durante 25 anos, ele receberá uma aposentadoria de apenas 1.520 reais quando chegar aos 65 anos de idade. Caso queira receber um valor superior, o brasileiro deverá continuar no mercado formal após os 65 anos ou começar a trabalhar aos 16 anos. Na prática, para ter acesso à média integral do valor contribuído, será preciso trabalhar formalmente por 49 anos”, afirmou em 2016 Renan Truffi. E isso poderia ser evitado caso os verdadeiros causadores não recebessem alguns benefícios e isenções, possibilitando regularizar a balança. No fim, quem vai gostar muito disso? Como dizem especialistas: “A reforma também tem outro objetivo: achatar os gastos públicos. Ao fazer isso com a Previdência e com a Assistência Social, ela também vai liberar mais recursos para pagar juros. E os grandes proprietários de títulos públicos no Brasil são os mesmos dos fundos de previdência, que são os fundos dos bancos”. Perde o povo, ganham os vampiros! Temos noção das futuras consequências? Além do empobrecimento na velhice, alguns, ao perceberem que no fim da vida não receberão um valor minimamente digno, não contribuirão, os quais cairão, quase coagidos, de mãos beijadas na iniciativa privada, esvaziando os cofres da Previdência!
Por conta disso, temo o Temer instrumentalizar esses pastores, com grandes audiências e influências na mídia e no congresso. Sob a égide da fala teológica, eivada de interesses pessoais, esses líderes religiosos podem viabilizar na consciência dos nossos irmãos e de seus colegas do legislativo a proposta dessa Reforma. Contudo, a partir desse lugar/questão, podemos ler Is 1, 10ss e usarmos como óculos de discernimento para não cairmos nisso.
No texto, o profeta, em 1,10, abre um novo conjunto de discussões convocando seus interlocutores a ouvirem a voz do Senhor, ao mesmo tempo que os chama de Sodoma e Gomorra. Pelo que parece, algo de muito sério estava estabelecido na nação, a ponto da memória dessas duas cidades serem aplicadas aos cidadãos, em especial à liderança. No decorrer do anúncio, somos informados sobre a causa do descontentamento profético. O profeta denuncia o discurso dissimulado dos operadores da religião, os quais tornavam as práticas rituais instrumento mascaradores da opressão e falta de compromisso com a justiça (v.11-15). Os sacrifícios, os cânticos, as ofertas e incensos tornaram-se objetos de blasfêmia, porque serviam como ocultadores das condições desumanas e odiadas por Deus. Por isso, “quando estendeis as vossas mãos, escondo de vós os meus olhos; e ainda que multipliqueis as vossas orações, não as ouvirei” (v.15). O discurso religioso estava a serviço da ocultação de perversidades! Isaías, no sopro de Javé, percebe o esquema dissimulado e descortina o funcionamento dessa perversão e anuncia, como uma escolha irrevogável: “Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos de diante dos meus olhos; cessai de fazer mal. Aprendei a fazer bem; procurai o que é justo; ajudai o oprimido; fazei justiça ao órfão; tratai da causa das viúvas”! (v.16-17).
A voz do profeta precisa ser ouvida hoje. A questão da narrativa de déficit previdenciário e Reforma escondem detalhes importantes e ocultam interesses impiedosos. O apoio religioso de pastores e líderes evangélicos tornaria, mais uma vez, a tradição de fé e suas práticas instrumentos dissimuladores dos verdadeiros problemas e impiedades, inclusive com falsa imagem de aprovação divina. Certamente, restaria somente a ira de Javé e sua impaciência com tamanha irresponsabilidade.
Esses convidados de Temer necessitam da iluminação das Escrituras e o temor a Javé para não servirem seus corpos e influências aos interesses anti-Reino/evangelho de grupos ladeados pelo presidente da República. Esperamos que Deus ajude a igreja brasileira no discernimento, impedindo-nos de cairmos nessa armadilha.