segunda-feira, 20 de junho de 2011

Exposição da carta de 1 Coríntios: Introdução (I)



Como prometido, inicio aqui a exposição da carta escrita por Paulo aos crentes que viviam na Cidade grega de Corinto (1 Cor).  Para facilitar a leitura dividirei os posts  da introdução em três partes: questões sócio-culturais, características da comunidade e divisão da obra. Comecemos, então, pelas questões sócio-culturais.  

Questões sócio-culturais da cidade de Corinto


A primeira carta às igrejas na cidade de Corinto (1 Cor), na verdade é a segunda correspondência àquela comunidade, como informa Paulo em 1 Cor 5, 9 – alguns sustentam que ela está parcialmente preservada em 2 Cor 6,14 - 7, 1, mas isso não é possível ser afirmado com certeza.

As informações históricas, econômicas, sociais e culturais a respeito da cidade de Corinto são importantes para esclarecimento de alguns textos dessa carta. Historicamente nós podemos falar em duas cidades de Corinto. Uma grega, destruída em 146 a.C e outra romana, reerguida por ordem de César em 44 d.C. Segundo Sanders (Urban Religion in Rome Corinth, 2005) depois daquela derrocada de 146 a.C “Corinto não era mais uma entidade política, mas uma cidade fantasma, ocupada por uma pequena população não coríntia, engajada no cultivo da terra agrícola”. As tradições religiosas anteriores àquele período não sobreviveram. Por isso, a informação da existência de templos dedicados à deusa do amor, Afrodite, nos quais havia mais de mil prostitutas sagradas, como narra Estrabão, deve ser localizada antes dessa destruição. Na Corinto romana do tempo de Paulo não havia mais do que dois templos àquela deusa.

Quando era ainda uma cidade grega, Aristophanes (450-385 a.C) cunhou a expressão korinthiazein “agir como um de Corinto”, i.e., “cometer fornicação” ou “viver como um libertino”. Talvez esse caráter moral ainda estivesse presente na cidade de Corinto nos tempos de Paulo, porque em cem anos, por causa de sua próspera economia baseada no comércio (por sua localização geográfica privilegiada na parte sul do istmo de Corinto: ligava dois mares e duas regiões da Grécia) e da indústria (um grande volume de mercadores passava por essa cidade), já era uma grande metrópole da Antiguidade. Como é comum em grandes cidades, e muito mais ela que recebia pessoas de várias regiões do Mundo Antigo, vício e religião, como diz Anderson Dias, floresciam lado a lado. Essa plural diversidade populacional, instrumento para presença de várias formas culturais num mesmo nicho social, fez-se possível pelos muitos migrantes, muitos deles pobres, que lá se instaram para morar. Inclusive judeus, pois foram achados restos de sinagogas naquela região.

Deste a sua reconstrução, foi planejado o restabelecimento de celebrações religiosas e sacrifícios e os preços a serem pagos por eles. Além do culto ao Imperador, como era comum nas colônias romanas, prestavam-se cultos às divindades Afrodite, Asclépio, Apolo e Poseidôn. Havia também altares e templos dedicados à Atenas, Hera e Hermes que eram ladeados por santuários erigidos às divindades egípcias, Ísis e Serápis. A experiência religiosa em Corinto era tão diversa quanto sua população, com visíveis retoques sincréticos e circularidade cultural.

Os pesquisadores advertem que o progresso econômico, como é comum, não era sentido por todos. Uma pequena porção da sociedade conseguiu fazer fortuna e adquirir uma condição social superior à grande maioria da massa do povo, que era composta por uma multidão de escravos e artesãos pobres ou empobrecidos, vivendo no nível de subsistência, que trabalhavam para o enriquecimento da classe abastada (como era comum em todo Império). Até mesmo os libertos, mesmo acima dos escravos, eram alvos de preconceitos e viviam muitas vezes como clientes do antigo patrão. É provável que a maioria dos membros das comunidades cristãs fosse pobre, muitos eram escravos, como percebemos pelo discurso de Paulo (1 Cor 1,26; 7,17-24).

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Vídeo das Famílias Desalojadas

Novamente vou protelar as postagens sobre 1Co para divulgar um vídeo com algumas informações sobre a desocupação no bairro Barra do Riacho. 

No dia 18/05, o BME em ação truculenta contra cidadãos desarmados, desalojou 300 famílias, cerca de 1600 pessoas, entre elas idosas, crianças e mulheres. Depois de a imprensa local colocar a sociedade contra os líderes da resistência, Kenner Terra, Gleison Pessoa, Christian Sulivam, da REJU-ES, foram ouvir da comunidade, por intermédio do presidente da ONG Amigos da Barra do Riacho, Valdinei Tavares, que organiza as ações dos desabrigados, sobre algumas das falácias dos jornais capixabas e as atuais condições das famílias que estão alojadas precariamente em uma quadra poliesportiva.  
 

 Veja vídeo: Video do lider da ONG Amigos da Barra do Riacho

sexta-feira, 6 de maio de 2011

“Terrorismo” contra os Estados Unidos da America. “A culpa é de quem? Quem...”



Antes de começar com a exposição de 1 Co, deixem-me tecer em algumas linhas minhas intuições sobre essa interminável questão do terrorismo e da briga EUA e Bin Laden.


Há alguns (poucos) anos, na minha adolescência, gostava muito de um grupo de rock que despontava no cenário da música brasileira. Em uma de suas canções, o vocalista, repetidamente, perguntava: “A culpa é de quem? Quem, a culpa é de quem?”; e repetia em toda a canção: “quem, a culpa é de quem?”.

O mundo todo acompanha nesses dias o fim da saga “Bin Laden x EUA”, que terminou seu primeiro capítulo da série – a história não vai parar por aí – com a imagem do presidente americano de pé diante dos microfones e câmeras: “Osama Bin Laden is dead”. Esse pronunciamento foi esperado desde o episódio de 11 de setembro – data tão repetida e anunciada que antes nos esquecemos do aniversário da nossa mãe do que da derrubada das “torres gêmeas” do World Trade Center, em Nova York, símbolo da ostentação capitalista!

Tudo bem, qual quer um seria um insano se não se revoltasse com aquela catástrofe. Não senhores, eu não acho que aquele ato foi louvável, ou até mesmo tento buscar legitimação no discurso anti-imperalista para aquela barbárie. Rechaço, critico e qualifico como desumano, demoníaco (no sentido que quiserem dar: teológico, psicológico, antropológico...) a morte daqueles inocentes. Quem fez aquilo, seja a Al Qaeda, com ou sem a ajuda de sorrateiros interesses (segundo o documentário Fahrenheit 11 de Setembro, de Michel Moore, algumas empresas ligadas ao império Bush lucraram com o atentado), deve receber as punições legais e de direito. A insatisfação, sem dúvida, é coletiva. No entanto, depois de tudo que li, a primeira coisa que me vem à mente é aquele refrão da musica da minha adolescência, “a culpa é de quem?”. Em um artigo do Leonardo Boff, disponibilizado pelo blog de Luiz Nassif, é citado o bispo Robert Bowman, um ex-piloto de caças militares durante a guerra do Vietnã, que disse o seguinte, na sua carta aberta ao Presidente: “Somos alvo de terroristas porque, em boa parte no mundo, nosso Governo defende a ditadura, a escravidão e a exploração humana. Somos alvos de terroristas porque nos odeiam. E nos odeiam porque nosso Governo faz coisas odiosas”.

Não precisamos ser historiadores treinados para sabermos que Washington  financiou, motivou, incentivou, bancou, e todos os “ou” que geram ações, muitos golpes militares e ditaduras, inclusive o nosso “golpe de 64”! Por causa dos interesses econômicos, e o Wikileaks está aí para provar, o Império Americano matou, torturou e aterrorizou países inteiros. Aquela guerra no Iraque foi uma vergonha! Até o mais conservador do mundo, tem de admitir que Bush, visto como ignorante pela crítica americana, conseguiu levar na lábia da retórica quase o mundo inteiro. O tempo todo ele, com aquela cara de pastel, dizia: “Terror”, “terror”, “guerra contra o terror”, “terror”, “terror”. Todos sabem, os EUA são a nação mais política e economicamente terrorista do mundo !

Quanto dinheiro não lucrou o Tio Sam com as guerras no Sudão, tudo por causa do maldito petróleo! E mais, os mesmos “homens da base” (Al Qaeda) estiveram lado a lado de Washington contra a União Soviética, no período da Guerra Fria, no Afeganistão. O mesmo Laden que eles agora mataram, foi amigo íntimo dos “democratas” americanos em outras décadas! E o que dizer das relações econômicas da família Laden e os Bushs? A primeira empresa de petróleo de George W. Bush, a Arbusto, foi financiada pela corporação do (ex?) líder do grupo da Al Qaeda.

Washington criou o terrorismo, o alimentou, deu bases para ao seu ódio, deu armas e treinamento. O hipócrita governo americano criou a Al Qaed no contexto da guerra fria! Usou-a, como tem usado, em toda a história, países e seus movimentos internos, para seus interesses globais. No fim, quem sai perdendo é sempre a população, que sofre entre os pólos de interesses, e nunca as grandes corporações que se alimentam das desgraças mundiais, como a Carlyle Group - que já reuniu em um mesma mesa de negócios Bushs e Ladens. Então, “A culpa é de quem... Quem, a culpa é de quem?”.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Exposição de 1 Coríntios


Como fiz com a carta aos Gálatas, farei uma série de exposições, perícope por perícope, da "primeira carta" escrita à  igreja de Corinto (1 Co). 

Na próxima postagem, apresentarei algumas questões introdutórias e uma proposta de divisão da carta. A partir daí, exporei o seu conteúdo. 

até a próxima postagem...  
 

quarta-feira, 27 de abril de 2011

É UM TRAPACEIRO! “Quem trapaceia, será trapaceado” ( Gn 26, 34 – 27, 46)



A perícope de Gn 27, segundo Westermann, é determinante para o ciclo de Jacó-Esaú (25-36). Essa parte é tratada pelo professor Milton Schwantes como um novo livro, um seper/sefer. É um texto longo e está envolvido numa rede complexa e compósita de narrativas, vazadas por diversos gêneros, tornado a sua leitura ainda mais difícil. A primeira vista, parece, como entenderam as escolas de Welhausenn e Gunkel (WESTERMANN, 1985: 50), ser um aglomerado de sagas, pois as emendas dos textos são facilmente identificadas (como 26, 34-35 e 27,46 em relação aos capítulos 26,27 e 28). Contudo, Westermann não concorda em aplicar esse conceito de "sagas" às histórias dos patriarcas por questões de estrutura e linguagem, e por acabar deixando de lado detalhes esclarecedores e minúcias do texto. Nesse sentido, as mesmas supostas emendas servem, na leitura que faremos, como indicadores do projeto redacional.

Adrien Janis Bledstein lê o capítulo 27 tendo como eixo a questão da trapaça (BLEDESTEIN, 2000: 308). Se ela estiver certa, o capítulo 26, que segundo Milton Schwantes está fora de lugar, teria muito sentido em estar onde está. Como se no jogo redacional, os eventos e as tradições ao mesmo tempo em que são reelaborados, também formassem um discurso no qual a trapaça acaba voltando-se contra o trapaceiro. Assim, no capítulo 26 Isaque é apresentado como “arquetrapaceiro” (BLEDESTEIN, 2000: 309), que engana para sua preservação e logo depois, no cap. 27, é enganado.

A proposta será a analise do movimento do texto e suas táticas redacionais, para perguntarmos por sua unidade e organização em camadas com o interesse de compreendermos seu conteúdo, com o objetivo de entendermos as estratégias expostas em Gn 27 dentro do ciclo de Jacó-Esaú.

Um Longo Texto!

A perícope começa em 26, 34, pois serve como uma espécie de introdução, ou melhor, uma amarra para retomar o assunto dos irmãos Jacó e Esaú, deixado de lado em 26, 1-33. O capítulo 25 termina com Esaú crescido, por isso no 26, 34 ele está com quarenta anos, servindo assim de “leve” retomada de interesse. O capítulo 25 antecipa a preferência dos pais em relação a cada filho, que se mostrará de forma prática no capítulo 27: Isaque prefere Esaú, enquato Rebeca a Jacó (25,28).

Sua narrativa é coesa e cheia de detalhes importantes que não podem passar despercebidos, pois denunciam o seu gênero e sua lógica narrativa. O grande bloco termina nos versos 44- 45, nos quais Rebeca manda Jacó fugir para Harã, até que o chame novamente (v. 45). O verso 46 aparece a insatisfação de Rebeca, aparentemente uma emenda para o capítulo 28, no qual Isaque envia Jacó para Padã-Harã. O interessante é que no capítulo anterior quem recomenda sua ida é a própria Rebeca e não Isaque.

A primeira emenda, além de servir como ponte para o capítulo 27, também serve para condenar a ação de Esaú. Na outra emenda, o conteúdo da acusação feita a Esaú é motivo de insatisfação para Rebeca. Desta forma, 26,34-35 e 27,46 são eixos de perícopes. Contudo, esses eixos não são ingênuos, pois tentam denegrir a imagem de Esaú, pois se lermos o capítulo 27, por exemplo, não conseguiremos acusar Esaú de nada.

O texto tem uma essência dual (WESTERMANN, 1985:435): Isaque – Esaú, Rebeca – Jacó, Jacó – Isaque, Esaú – Isaque e Rebeca – Isaque. Mostrando certa ordem esquemática que serve para apresentar o enredo da história. O básico da narrativa é bem parecido com Gn 48, 8-16: uma ação de abençoar culmina no pronunciamento que determina o todo de cada episódio individual (WESTERMANN, 1985: 436).

O texto pode ser dividido em três grandes blocos, cercados por 26, 34-35 e 27,46. No primeiro (1-29), Isaque demonstra seu desejo de abençoar seu primogênito, mas uma manobra muda o curso da história. O mesmo bloco se subdivide em duas seções: 1-17 e 18-29. A primeira seria a preparação para benção e a manobra de Rebeca e Jacó. A segunda seria a execução da manobra, que culmina na benção dada a Jacó.

No segundo grande bloco temos os versos 30-40, que inicia com a saída de sena de Jacó, para a volta de Esaú (v. 30). A cena é muito rápida, parece que os dois estão prestes a se encontrar, mas isso não acontece. Esaú tem um dramático diálogo com Isaque. Neste bloco, podemos perceber a subdivisão: 27, 30-36a: Esaú percebe que é enganado e denuncia Jacó; 27, 36b-40: Esaú também requer de Isaque uma benção, culminando na sua benção.

No terceiro bloco estão os versos 41-45, os quais começam com a nutrição de ódio de Esaú por Jacó. Rebeca ouve e recomenda a fuga de Jacó. Esta última parte serve como conclusão da narrativa. Contudo, ela é reaberta com o verso 46 – voltando para o problema de 26,34-35 –, para fechar a história anterior e abrir a outra. Jacó foge ao ouvir a recomendação de sua mãe? Temos uma conclusão aberta. O verso 46 é ligado ao capítulo 28, dando-nos a resposta: Sim, mas não por causa do ódio de Esaú, mas por razão dos casamentos mistos.

O esquema é o seguinte:

[26,34-35] – eixo A

27, 1-29 – O desejo de abençoar Esaú.
    1-17 (preparação para benção)
    18-29 (manobra e benção a Jacó)

27, 30-40 – A benção de Esaú.
     30 -36b (denúncia do golpe)
     36c – 40 (benção de Esaú)

27, 41-45 – Fuga de Jacó (conclusão da história).
      41- 42 (aviso de Rebeca)
      43-45 (recomendação para fuga).

[27,46] – eixo A’

Zombação Feminina?

Como citei acima, os textos de Gênesis, como entende Westermann, não são simplesmente aglomerados de sagas. Até mesmo o conceito de saga é algo muito complicado para se utilizar na Bíblia Hebraica. O mesmo autor acha ser o texto uma típica narrativa de família. Contudo, Adrien Janis Bledstein chama essa narrativa de “conto de trapaceiro” (BLEDESTEIN, 1985: 309). Eu, talvez, retiraria a expressão conto, pois geraria outros problemas, para deixar simplesmente “narrativa de trapaceiro” . Esse tipo de gênero literário seria comum no Oriente próximo (Mesopotâmia, Egito etc.), no qual deuses e deusas usam a trapaças para alcançar seus objetivos. Por exemplo, no episódio de Horus e Set a trapaça determinou quem seria o rei dos deuses egípcios. A diferença é que nas narrativas hebraicas os próprios homens seriam os trapaceiros.

Desta forma, o texto possui uma tradição antiga, mas que foi reelaborada posteriormente para manchar a imagem de Esaú. Se Adrien Janis Bledstein estiver certa, sua origem é muito interessante, pois seria de tradição feminina; não que mulheres sejam autoras, como bem explicou Goitein, mas criadoras de gêneros, posteriormente reelaborados. Bledstein acredita que existam temas e estilos que mostram tradições femininas (por mulheres contadoras de história): mulheres são valorizadas e mostra-se o poder vulnerável do homem. Segundo S. D. Goitein, uma característica da história de mulher é ter repetições dupla e tripla, como ele encontrou em tradições iemitas [1]. Ele ainda diz que a mulher iemita , a despeito de sua posição social baixa e limitada, expressava, em sua poesia, a opinião pública sobre os eventos do dia a dia. E essas poesias são críticas humorísticas com teor de zombaria. Bledstein chega a falar da presença de produção feminina nos cap. 24-28 (não sei se isso pode ser afirmado, mas seus pressupostos metodológicos podem nos ajudar). O Interessante está no fato de Gunkel, já em 1910, ao comentar os discursos repetitivos de Gêneses 37-50 caracterizou-os como “efeminados” ou “sentimentais” (BLEDESTEIN, 1985: 319). Como vemos, como Westermann mesmo percebe, Raquel tem papel fundamental na narrativa. É ela quem muda a história. Pensando dessa forma, o capítulo 26 se encaixaria bem com a mensagem de que “os supostos espertos nem sempre se dão bem” ou “quem trapaceia será trapaceado”.

Neste estágio antigo da tradição de Gn 27 seria uma crítica sarcástica, zombeteira, de mulheres aos homens que controlavam o poder.

Assim, podemos concluir que a redação do texto é bem recente pela ferrenha crítica a Esaú, pois se tirarmos os eixos, nada temos contra ele. Por isso, percebemos uma tradição com conteúdo antigo, mas que foi reelaborado na sua redação no século VII ou VI a.C, na época da contenda entre Israel e Edom.

Uma História de Tirar o Fôlego

Não será possível o aprofundamento do conteúdo. Contudo, algumas ponderações podem ser feitas, e em especial o problema do verso 39, especificamente, sobre a tradução da preposição min que determinará o teor da benção dada a Esaú.

Nos versos 1 até o 17 do capítulo 27, Isaque preocupa-se em abençoar seu primogênito antes de sua morte, pois já estava velho. O texto faz questão de apresentar seu estado de cegueira, pois fará toda a diferença no enredo da história.

O tema de benção é comum ao leitor dos textos judaicos (Gn 48-49). O pseudepígrafo Testamento dos XII Patriarcas está dentro desse topos literário. Junto com a benção está a comida, fruto da caça de Esaú (27, 2-4), algo que já fora dito em 25, 28: "Isaque prefere Esaú porque ele é caçador e gostava muito de caça". Antes de sair ao campo, Rebeca ouve a conversa e arruma uma manobra para Jacó precipitar seu irmão. Desta forma, a imagem de 25, 28 realiza-se nas escolhas do pai e da mãe.

Segundo Gn 25, 22-23, Deus fala com Rebeca, e não com Isque, que o mais velho serviria o mais novo (v.23). Neste sentido, o texto mostra que Raquel ajudou a realização do projeto de Javé. Assim, se esse texto faz parte das tradições femininas, ela é vista não como uma interruptora insensata da história, mas como instrumento para o curso histórico dos designos de Javé. É possível que antes da sua redação, o texto fosse contado ou cantado por mulheres.

Ao ser conduzido por sua mãe, Isaque chega até seu pai. A questão aqui é bem interessante: Isaque sabia ou não quem era Jacó? Por quatro vezes ele questiona a identidade de seu interlocutor (vv. 19, 20, 21, 22, 24) e no verso 23 temos um comentário de que ele não reconheceu que era Jacó. O verbo hikiro pode ser “reconhecer”, como também “fazer caso”. Em Juizes 18,3 hikiro é reconhecer, pois o texto fala em “reconhecer sotaque” (2 Sm 3,36 e Jó 24, 13 também têm a mesma idéia). Podemos, então, crer que realmente o texto fala que Isaque foi enganado, ou melhor, trapaceado, por seu filho mais novo. O engano culmina na benção a Jacó, o centro da narrativa. A fertilidade da terra, ou seja, trigo e vinho em abundância a servidão dos povos e de seus irmãos são direcionados a ele. A benção culmina em “bendito quem te abençoar e maldito quem te amaldiçoar”, que aparece em Gn 12,3 e Nm 23, 9. Segundo Westermann, a benção está em forma poética e é compósita, pois não era longa como está fixada no texto. A parte mais recente é marcada por submissão de nações e povos e de seus irmãos, mostrando um contexto de conflito e luta.

Ao voltar da caçada, Esaú percebeu que foi enganado por duas vezes (v.36). Isaque repete a benção, mas em ordem diferente (autoridade – fertilidade da terra). Se for progressiva a formulação do discurso de benção para Jacó (27,27-29), a menção de submissão é posterior, pois ela é repetida no começo, como se fosse algo importante a se dizer no momento. Isso, talvez, por ser uma intenção redacional de denegrir os edomitas.

Esaú insiste por três vezes para que Isaque o abençoe (v.34, 36, 38). Em desespero e choro Esaú  questiona se somente havia uma benção para transmitir (v.38). Vemos a repetição como ponto central da estrutura dessa narrativa.

É neste momento que temos certo problema. Qual é o teor da benção de Isaque para Esaú? Isso dependerá da tradução da preposição min, que antecede a palavra shemane (fertilidade). A preposição pode ser traduzida como “fora” ou “por razão”. Se traduzirmos como “fora”, então a ideia é bem degradante: “longe da terra será tua morada”. O mesmo artigo aparece na palavra do mesmo versículo 29 (hashamin), e seria então traduzido como “longe do orvalho”.

Segundo a LXX, a melhor tradução seria “por razão de”, ou “por origem” (inclusive no genitivo), no sentido de “junto de”, pois usa a preposição apó para traduzir min. Inclusive na benção dada a Jacó a mesma expressão parece ligada à fertilidade da terra, e a LXX utiliza a mesma tradução para preposição min (apó)! Segundo a LXX a tradução ficaria diferente: “Vê! Junto à terra farta estará tua morada, e junto o orvalho do céu”. Nesta perspectiva a tradução da preposição min seria melhor “pelo” ou “por razão” porque não afasta Esaú da fertilidade.

Desta forma, o texto da Bíblia Hebraica seria mais bem traduzido assim: “Vê! Pela [por razão da] fertilidade a terra será tua morada, e pelo orvalho de cima”. Com essa perspectiva, o texto apresenta razões e conseqüência: “pela fertilidade” e “pelo orvalho”, a terra será a sua morada. Duas possibilidades de interpretação podem ser detectadas: 1) que a primeira benção dada a Esaú é igual em qualidade e estrutura a de Jacó, tendo a diferença na segunda parte da benção concernente a dominação. Será esse um indício de que a benção sobre fertilidade e orvalho seja mais antiga nessa narrativa, mostrando que os dois irmãos tiveram a mesma bênção? Desta forma, poderíamos reafirmar que o vaticínio presente na boca de Isaque da servidão dos povos, inclusive de Edom, é posterior, como percebemos nessa insistência? 2) outra proposta para entendermos isso, seria ver o teor da benção dada por Isaque como um resultado natural das condições climáticas e geográficas. Uma espécie de “abençoar sem abençoar”. Ao ser a terra fértil e o orvalho cair, Esaú terá sua morada.

Pelo que parece, o texto torna-se mais claro ao lermos os versos anteriores, nos quais Esaú reclama mais uma benção, chegando a perguntar se haveria no estoque de Jacó somente uma. O texto diz que Jacó o “atendeu” ou “respondeu” (uma pena não saber como usar aqui os caracteres hebraicos), no sentido de atender o que tinha sido pedido (v.39). Ou seja, Isaque atende a Esaú e abençoa como abençoou a Jacó (essa seria a leitura da LXX). E se pensarmos em uma progressão da tradição dessa benção, podemos afirmar que a outra parte da benção é posterior, porque tira a igualdade dos irmãos, que nesse momento representam povos.

O texto continua dizendo que Esaú começara a nutrir ódio por Isaque e desejou matá-lo. O ódio, a luz da leitura feita acima, seria por ter que ficar debaixo da servidão de Jacó, enquanto poderia ser o inverso. Por ter o final da benção (v.40) intenções redacionais o ódio de Esaú pode ser redacional e posterior, inclusive sua vontade de matar Jacó, mas isso não pode ser verificado aqui.

A ideia da fuga é, como foi a da manobra, uma iniciativa de Raquel, por mais que no capítulo 28 seja Isaque. Raquel é peça fundamental. Sem ela não haveria realização do projeto de abençoar o mais novo (que foi presságio de Javé) e da fuga para Harã, que marcou a história de Jacó [povo de Israel].

No eixo final, vemos novamente a presença de condenação a Esaú mostrando-o como causador das angustias de Raquel, pois se casara com mulheres estrangeiras (27,46). Esse verso é uma clara mudança de teor para denegrir o povo representado por Esaú.

Reflexões Finais

O texto tem uma história muito complexa. Sua redação dá novos contornos a tradições mais antigas, pelas quais Esaú é “demonizado”. Não somente isso, pensando à luz do seu gênero literário, podemos imaginar uma tradição feminina, que criticava sarcasticamente o poder patriarcal, mostrando suas fragilidades e seu caráter fraudulento. Outra coisa, a centralidade de Raquel como instrumento das realizações dos projetos de Javé mostra-se claramente no texto. Parece-me que posteriormente o texto acaba servindo de instrumento para legitimar separações e representar lutas de povos.




[1]Iêmen ou Yêmen é um país do sul da Península Arábica, resultante da fusão do Iêmen do Norte (república islâmica) e Iêmen do Sul (república socialista), em 1990. Banhado pelo Golfo de Áden e pelo Mar Vermelho, possui férteis planícies na costa com muitos cursos de água que favorecem a agricultura. Seu clima é árido tropical nas regiões norte e tropical próximo na costa. Sua população é formada basicamente por árabes iemitas e africanos, quase todos muçulmanos. A região foi chamada pelos romanos de “Arábia Feliz”, por causa de suas terras férteis, em contraste com o deserto que domina o restante da Península Arábica. Abrigou na Antiguidade diversos estados, dos quais o mais famoso é o Reino de Sabá,  mencionado no Antigo Testamento.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Revoltas no Mundo Árabe: Luta por Justiça ou Conspiração Muçulmana?



Desde Dezembro do ano passado, estamos acompanhando uma onda de manifestações contrárias aos longevos governos árabes. Alguns comentadores insistem ler os fenômenos como uma insurreição dos radicais islâmicos que desejam tomar esses países, aparentemente mais aberto às relações com o Ocidente, para instalarem um regime radical, e assim, logo depois, destruírem o seu arqui-inimigo, Israel. Interessante que Hosni Mubarak, ditador do Egito, afirmou quase a mesma coisa, exceto o presságio sobre Israel. Ele disse que os islamitas estavam por trás da revolução egípcia. O ditador da Tunísia e o rei Abdulá, da Jordânia, viam a presença disfarçada da Al Qaeda e da Irmandade Muçulmana por trás da insurreição que está incendiando o mundo árabe.

Essa perspectiva me parece no mínimo míope. Antes de qualquer coisa, não houve um programa para as ações, as coisas foram acontecendo como uma onda. E mais, cada foco de revolta tem sua agenda e suas reivindicações: os interesses e querelas dos manifestantes do Bahrein não são os mesmos dos motins no Iêmem ou Líbia, por exemplo. 

As revoltas começaram depois que Mohammad Bouazizi, tunísio de 26 anos, ateou fogo em seu próprio corpo. O moço estava desempregado e foi impedido pela polícia tunisiana de vender frutas nas ruas, único meio encontrado na ocasião para sustentar sua família. Isso chamou atenção e despertou uma população que vivia os mesmo altos índices de desemprego e autoritarismo. Poucos dias depois, o ditador da Tunísia, Zine El Abidine Ben Ali, cairia do poder. Esse levante serviu de inspiração para o povo no Egito, que conseguiu derrubar outro já caduco governo perpetuado por Hosni Mubarak, após 30 anos no poder. O mesmo espírito já incendiou a Líbia, do louco e personalista Muammar Gaddafi, no governo desde 1969. Como aconteceu nos outros países do norte da África, esse insano, que sempre favoreceu alguns poucos, em especial os da família, será precipitado do trono (e se possível enviado direto para um manicômio!). Da mesma forma, outros levantes surgem em cena no Oriente Médio, como em Iêmen, Bahrein, e no Irã, da figurinha conhecida por nós brasileiros, o “iluste” Ahmadinejad. 

As revoltas foram se instaurando como respostas instintivas ao desemprego, violência e má distribuição dos bens, e não para fazer das nações supostamente mais democráticas nas regiões árabes (como se sua “democráticidade” fosse medida pela maior ou menor amizade com E.U.A!) uma região livre para matar qualquer judeu ou cristão. Os economistas sempre nos alertaram que o mundo árabe tem passado por notável crescimento, mas isso não beneficia a maioria da população, mas simplesmente uma parcela formada pela elite e alas do governo. Por exemplo, no Egito dos 80 milhões de habitantes 40% vivem com menos de dois dólares por dia. Eis aí um indício das mais prováveis razões das manifestações!


O jovem Bouazizi ateou fogo no copo como último grito desesperado por justiça, liberdade e oportunidade. É exatamente esse grito que posso ouvir dos demais insatisfeitos. Acho que as conclusões oriundas das analises feitas à luz das condições sociais e econômicas do povo, e não das teorias conspiratórias, esclarecerem melhor situações históricas como essas. Como disse Robert Fisk, no The Independent, “Dá para pensar que só Irã, Al Qaeda e seus mais ferrenhos inimigos, os ditadores árabes anti-islâmicos, acreditam que a religião esteve por trás das rebeliões massivas dos manifestantes pró-democracia”. O articulista foi feliz na sua análise, pois percebeu que os indícios religiosos entre os clamores populares estavam a serviço de um desejo maior, o desejo de justiça. O desemprego, as más condições de vida, o favorecimento de poucos e os negativos índices reuniram e estão reunindo muçulmanos, cristãos, homens e mulheres para a derrocada de poderes opressores e desumanos no mundo árabe, isso sem a ajuda da Al Qaeda ou sob qualquer programa oculto de grupos radicais muçulmanos. Talvez, você cite as revoltas na Baherein e a maciça presença de xiitas entre os insurretos. Não esqueça que esses são a maioria e há muito são governados pela minoria sunita – aos olhos ocidentais mais abertos e menos radicais –, que usa da polícia política a fim de perseguir seus opositores e para manobras questionáveis, conseguindo se preservar como maioria no parlamento. E mesmo que haja uma clara intenção religiosa no Baherein, isso não representa a totalidade das intenções e desejos das demais insurreições nos outros países.

Posso terminar este post com uma parte da carta de Mohammad Bouazizi, escrita pouco antes de sua tragédia, direcionada para sua mãe: “Perdoe-me se não fiz como você disse e desobedeci suas ordens. Culpe a era em que vivemos, não me culpe". Destaquei a expressão "culpe a era em que vivemos" porque revela bem a razão das revoltas. O motivo das manifestações é exatamente a realidade de homens e mulheres que vivem debaixo do autoritarismo e da desigualdade. Sejam muçulmanos ou não, todos e todas devem ansiar e lutar por uma melhor “era em que vivem”, a mesma que foi culpada pela morte do jovem tunísio que para chamas entregou seu corpo. 

No entanto, caso estejam certos os tais conservadores que citei no início, e realmente por trás dessas manifestações haja outros opressores, que desejam uma ditadura muçulmana e liberdade para eliminar cristãos e judeus, esses serão também alvos das mesmas críticas e ações contrárias

sexta-feira, 4 de março de 2011

Notinha esclarecedora


Quando resolvi entrar na onda dos blogs e criar um, por incentivo e pressão de alguns amigos, pensava nele como um ambiente para reflexões, discussões de ideias e exposição democrática de pensamentos. No entanto, há alguns poucos entre os leitores que, ao invés de expor suas posições com respeito e educação, ficam o tempo todo usando o subterfúgio do anonimato para atacar, desqualificar e fazer críticas pessoais. Por causa dessa covardia, e pior, vindo de alguém que supostamente deseja preservar a fé e defender suas tradições, as quais não desqualifico, não postarei os comentários anônimos. Sempre os postei, mas a partir de agora não o farei mais; não posso ficar legitimando com o blog a perpetuação da postura ignóbil de moralistas sem hombridade, incapazes de se responsabilizarem por suas críticas. O blog está aberto para o conflito de ideias – repito: conflito de ideias –, mas não para ataques anônimos. Até aceitarei os ataques pessoais, caso sejam feitos por pessoas que são honestas a ponto de se identificarem.

No mais, todos e todas são muito bem-vindos (as) a esse espaço é livres para postarem suas contribuições, sejam elas favoráveis ou contrárias às minhas reflexões. Mas, em respeito aos outros amigos leitores, que são a maioria, não exibirei baixarias e moralismos covardes, camuflados pelo anonimato, que mais é uma mascara para a mesquinhez, fraqueza e pobreza de espírito do que desejo de preservação da identidade por medo de possíveis prejuízos, especialmente em um blog como este que não pode proporcionar nenhuma perda àqueles que se identificarem.

Até a próxima postagem...

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Um obra em honra a John. J. Collins: um dos maiores estudiosos da Literatura Bíblica




Foi lançado o livro "The 'Other' in Segund Temple Judaism: Essays in Honor of John J. Collins", em honra a um dos maiores pesquisadores da literatura bíblica, em especial nos estudos relacionados ao judaísmo do segundo templo.

Mesmo digno de todas as honrarias, o professor John J. Collins ainda não é muito conhecido em nossas terras. Essa lacuna começou a ser preenchida recentemente com a tradução, publicada pela Paulus, de seu "Apocalyptic Imagination. An Introduction to Jewish Apocalyptic Literature" (Imaginação Apocalíptica. Uma introdução à literatura apocalíptica judaica. São Paulo: Paulus, 2010).
John J. Collins é irlandês, e foi professor de Bíblia Hebraica da Universidade de Chicago, e atualmente é professor na Universidade de Yale Divinity School. Os seus muitos livros e artigos tratam da "apocalíptica judaica", "sabedoria", "judaísmo helenístico", "Manuscritos do Mar Morto" etc. Além de seu famoso comentário ao livro de Daniel, na série Hermeneia, estão também na lista os livros "The Scepter and the Star: The Messiahs of Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls"; "Jewish Wisdom in the Hellenistic Age"; o já citado "The Apocalyptic Imagination" e "Between Athens and Jerusalem: Jewish Identity in the Hellenistic Diaspora". Entre os mais recentes, podemos citar a "Introduction to the Hebrew Bible with CD-ROM"; "Does the Bible Justify Violence?"; "Jewish Cult and Hellenistic Culture"; "Encounters with Biblical Theology" e "The Bible after Babel: Historical Criticism in a Postmodern Age". Além dessa vasta bibliografia, ele é coeditor dos três volumes da Encyclopedia of Apocalypticism e tem participado na edição dos Manuscritos de Mar Morto. J. J. Collins também é editor de uma série de monografias da editora Brill, intitulada como Journal for the Study of Judaism Supplements e do Journal Dead Sea Discoveries. Ele também é editor do Journal of Biblical Literature e presidente do Catholic Biblical Association e da Society of Biblical Literature.

O Festschrift em homenagem a J.J. Collins, além de ser uma obra comemorativa, também deve ser adquirida como fonte preciosa para pesquisas, pois é composta por artigos de relevantes pesquisadores da literatura bíblica, dos judaísmos da antiguidade e do mundo greco-romano. Entre eles estão Esther Chazon, Lorenzo DiTommaso, Robert Doran, Sean Freyne, Martin Goodman, Carol A. Newsom, George W. E. Nickelsburg, James C. VanderKam e outros.
Maiores informações sobre esse lançamento e como adquiri-lo, leiam no blog Paleojudaica (http://paleojudaica.blogspot.com/) no The Talmud Blog (www.academictalmud.blogspot.com).

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Exegese de Josué 3,1- 5,15: Rio Jordão, Páscoa, Circuncisão e o Anjo de Javé


Circuncisão
(1470)
Andrea Mantegna

1. Introdução: descascando até o cerne de Js 3-5
O bloco de Josué dos capítulos 2-12 apresenta a conquista da terra de Canaã. O capítulo 1 serve como introdução, enquanto o capitulo 12 é um resumo final. Assim, os capítulos 2-11 compõem a parte central, formada por uma coletânea originalmente independente, na qual é narrada a conquista. Contudo, à luz de algumas pesquisas arqueológicas os lugares como Ai, desde 2400 a.E.C, e Jericó, na idade de Bronze Tardio, já estavam destruídos.
Alguns acreditam que os capítulos 2-9 são tradições benjamitas de Guilgal (DONNER, 1997; SOGGIN, 1972; SCHMIDT, 1994; GOTTWALD, 1988). Deste bloco, separam-se para formar uma perícope os capítulos compósitos 3-5 (SOGGIN,1972; SCHMIDT, 1994). No capítulo 2 temos o episódio dos espiões e Raabe (a sonah; a mulher autônoma). No capitulo 6 ela aparece novamente. Enquanto o capitulo 2 tem a conquista de Jericó como meta, os capítulos 3-4 apresentam-na passo a passo[1].
Em 3,1 começa a caminhada triunfante do povo em direção ao grande milagre (Jordão), a comemoração e marco histórico-salvífico (doze pedras) e a instalação (Guilgal). Depois, no capítulo 5, como adendo aos capítulos 3-4, aparece a tríade ritual: circuncisão, páscoa e aparição de Deus. Segundo a Bíblia Hebraica Stuttgartensia, Js 6,1 pertence a esse bloco e serve como uma ponte para o bloco que começa em Js 6,2.
O cerne Js 3-5 pode ser dividido em dois grandes blocos: 3,1 – 5,1 e 5,2-5,15. No primeiro bloco temos as seguintes subdivisões: 1-13 (preparação para travessia); 14-16a (o milagre); 16b-17; 4,10-11.14-18 (a travessia); 4,1-9 (as doze pedras); 4,12-13(leste para o Jordão); 4,19-5,1 (o arraial de Guilgal). No segundo bloco, a seguinte: 5,2-9 (a circuncisão em Guigal); 5,10-12 (a páscoa) e 5,13-15 (aparição do chefe do exercito de Javé [chamado profético]).
No primeiro bloco, a travessia do Jordão possui grande importância, pois são narradas desde os preparativos até posterior caminhada rumo a Jericó. No segundo bloco, ocorrem três momentos distintos que servem de preparação para as conquistas posteriores.
2. Coesão do Texto
O bloco de 3-5 é bem complexo e apresenta partes antigas e muitas explicações nitidamente deuteronomísticas. Como se percebe, por exemplo, em 3,15 (“... pois durante todo o tempo da colheita o Jordão transbordava e inundava suas margens”) 5,7 (“... precisavam disto, porque ninguém os havia circuncidado no caminho”).
Temos na coesão do texto o problema das partes 4,10-11 e 4,14-18 que retornam ao assunto de 3,16a-17, em que se narra a travessia do Jordão. Suggin, por isso, acaba colocando todos esses todos em um mesmo bloco de temas para exposição (SUGGIN,1972). Os versos 10-11 e 14-18 são também interrompidos pela travessia dos israelitas (12-13). Enquanto o verso 11 mostra que os sacerdotes e a arca já haviam atravessado, os versos 14-18 voltam à questão dos sacerdotes saírem do Jordão. Será que estas partes pertenciam anteriormente ao capítulo 3 e foram divididas pelo episódio das doze pedras? Nos versos 10-11 os sacerdotes simplesmente saem do rio, pois eles ficaram lá até todo o povo passar (3,16-17; 4,11). Contudo, o livro de Josué em 4,16 volta a falar da saída dos sacerdotes, mas agora como ordem de Deus. Será esse um estilo deuteronomistico de “re-explicar” um mesmo fato, mas com teor mais divino? “Tudo quanto o Senhor mandara”, do verso 11, tem a ver com a ordem divina aos sacerdotes, por meio de Josué, de 4, 16-17? O que se percebe é a falta de continuidade da narrativa e as interrupções que não conseguiram ser disfarçadas.
Em 3,1 temos a introdução à caminhada, desde a preparação até a travessia. No entanto, Js 5,1 serve como ponte do bloco 3-4 para Js 5,2, em que é relembrado o milagre de Javé e o medo dos reis amorreus e de toda a Canaã. Tanto o primeiro bloco como o segundo se separam por informações temporais (3,1 temos madrugada e 5,2 naquele tempo) e geográficas (3,1 de Setim ao Jodão e em 5,2-3 morro da circuncisão).
3. Análise das Formas, Lugar Vivencial e Autor do Bloco 3-5
O texto é vazado por narrativas etiológicas com extensas explicações, que dão razão a muitas práticas. A figura de Josué é afirmada como líder escolhido por Deus, como foi Moisés. Por isso, os paralelos: Milagres sobre sua liderança (rio de Juncos/Mar Vermelho [Moisés] e rio Jordão [Josué]), festa pós-milagre (dança de Mirião [Moisés] e celebração das doze pedras [Josué]); experiência com Deus (Sarça e pés descalços [Moisés], chefe do exercito de Javé e pés descalços [Josué]).
E mais, em 3,7 aparece o Senhor afirmando que exaltaria a Josué para comprovar que era com ele como fora com Moisés; isso antes do milagre do Jordão. Depois do milagre, em 4,14 é afirmado que ele foi exaltado e o mesmo respeito a Moisés agora era dado a ele. Parece que os redatores utilizaram a narrativa do Jordão com um único propósito: comparar a autoridade de Josué com a de Moisés.
Desta forma, a imagem de Moisés e suas experiências são relembradas na figura de Josué, que conquistaria a terra da promessa, que nem mesmo Moisés pode tocar. Essa tomada é santa, porque desde a entrada com a arca e os sacerdotes, até as práticas rituais que antecedem, carregam o imaginário sagrado.
Estamos em um cenário exílico do século VI a.E.C, no qual os ritos da circuncisão e páscoa são lembrados com nostalgia e o povo deseja novamente celebrá-los. Por sua densa narrativa, com explicações exaustivas, podemos perceber as mãos deuteronomísticas. Gottwald afirma que a forma literária predominante em Js 1-12 é saga etiológica. Os motivos etiológicos estavam ligados às narrativas já existentes que recebiam mudanças de forma e conteúdo. Para ele as narrativas de 3,1-5,1 foram moldadas por um decreto ritual da atravessia até Jericó. Assim é possível acreditar que foram utilizados tradições e textos antigos do sétimo ou oitavo séculos para novas elaborações (GOTTWALD, 1988).
4. Lendo o Texto e Olhando o Redator
Os conteúdos podem ser expostos de acordo com as divisões e subdivisões apresentadas acima, levando em consideração que até mesmo nessas podemos ainda perceber outras divisões menores. Os dois Blocos maiores são: 3,1- 5,1 e 5,2-5,15. Destes podemos fazer as demais divisões.
Bloco 3.1 – 5,1
3, 1-13
Nesta parte temos os preparativos para a atravessia do Jordão. O verso 1 serve como uma introdução, que narra a saída de Setim (parte da estepe que une o Mar Morto ao Nordeste) até as proximidades do Jordão.
Três dias, depois da chegada às proximidades do Jordão, os soterim ordenaram ao povo que se seguisse a arca a distância (3,2-4). Estes mesmos “soterim” aparecem também em Js 1,10. A BJ traduz soterim como “escribas”, mas a CNBB como “responsáveis do povo”.
O texto fala da sacralidade da arca que deveria ser respeitada. Por isso a distância pedida pelos soterim. Talvez, seja um texto deuteronomístico fora de lugar, porque logo no verso 5 aparece Josué pedindo a purificação para no outro dia terem a experiência da atravessia do Jordão. Logo nesse verso ele já ordena que os sacerdotes levem a arca, e depois no verso 8 o Senhor novamente deu a mesma ordem. Ou seja, o que Josué ordenara era uma ordem do próprio Deus. Assim, é legitimada a liderança de Josué. E, ainda, o verso 7 pressupõe-se que “Deus é visto como o que conduz toda a história (3, 9-11)”. O verso 12 interrompe a narrativa para falar dos doze homens.
Assim, Josué anuncia no verso 13 que os pés dos sacerdotes, com a autoridade da presença da arca, ao serem colocados no rio, dividi-lo-ia. Ou seja, no texto o toque dos pés é sinal de conquista e herdade.
3, 14-16a
Nesta parte é narrado o milagre propriamente dito. O acampamento foi levantado e logo à frente se posicionaram os sacerdotes com a arca. Quando os pés dos sacerdotes tocaram nas margens, que estavam inundadas (como explicam os redatores), o rio parou em Adam, que ficava ao norte de Jericó e Guilgal.
Este tipo de fenômeno seria possível de maneira natural. Segundo Suggin, o fenômeno natural serviu de exemplo para ilustração dos redatores, e foi aplicado à história da chegada até Guilgal. Essa experiência tem seu paralelo com Ex 14. Assim, o tema do milagre de Moisés é retomado, com novas imagens, com o objetivo de dar autoridade ao novo líder que precisava organizar a conquista. Por isso, esta parte precisa ser lida em paralelo ao texto mosaico.
3, 16b-17; 4,10-11. 14-18
No momento em que o rio Jordão secara, imediatamente o povo atravessou-o na altura de Jericó. No v.17 lemos que os sacerdotes ficaram parados até todos passarem. Os redatores fazem questão de afirmar que passariam de pés enxutos. Aqui novamente o pé é lembrado, informando a conquista. Esta parte precisa ser ligada ao verso 10 do capitulo 4, pois é informado que ali continuaram os sacerdotes e o povo ainda estava passando. Vemos que em 4,1 a nação já tinha atravessado e foi pedido que buscasse as doze pedras, mostrando que esse texto deveria estar depois de 4,18.
Somente depois que se cumpriu tudo quanto o Senhor mandou Josué dizer ao povo (4,10), os sacerdotes atravessaram com a arca para o outro lado. Os versos 14-18 do capítulo 4 devem ser lidos logo depois dos 10-11 desse capítulo, pois aqui se tem uma conclusão e resultado da grande travessia: o engrandecimento de Josué. Os versos 15-18 são uma duplicação de 10-11, que novamente mostra a cena dos sacerdotes saindo da água, e agora é apresentado o detalhe, não dito em 10-11, de que o rio voltou correr novamente. A afirmação de Josué e essa repetição são trabalhos redacionais deuteronomisticos, os quais utilizaram uma ilustração para mostrar a autoridade de Josué.
4,1-9
O que foi previsto em 3, 12 é agora colocado em prática. Depois de atravessarem, o Senhor volta a falar com Josué. Interessante como Javé fala com Josué, parece-se com maneira com qual falava com Moisés. De forma simbólica, Javé ordena que doze homens sejam escolhidos de cada tribo para pegarem as pedras no meio do Jordão. Pelo que parece, os sacerdotes ainda estão parados no meio do rio. Então as pedras são colocadas onde eles iriam pernoitar. Essas pedras seriam um marco para o milagre de Javé. O estranho é que no verso 9 é dito que Josué deixou doze pedras no meio do Jordão, enquanto os doze escolhidos as deixaram do outro lado do mesmo Jordão. Será que houve dois memoriais? De onde vem essa tradição que colocava as doze pedras no meio do Jordão? Será que estamos diante de uma junção de duas tradições? Temos aqui um resquício de uma tradição mais antiga dessa história? Ou será esse versículo um adendo deuteronomístico de centralização da figura de Josué? Esta narrativa é considerada como uma narrativa etiológia construída, talvez, sobre uma narrativa existente, mas qualquer conclusão a respeito sempre será hipotética.
4,12-13
Nesta parte, aquilo que foi ordenado por Josué, em Js 1,1-16, e que era uma ordem de Moisés, colocado-se em prática. As tribos de Rubem, Gad e a meia tribo de Manassés, mesmo já tendo suas terras, deveriam ajudar seus irmãos. Contudo este texto está fora de lugar e deveria ser ligado às narrativas da conquistas de Jericó. Aqui ele só reafirma a autoridade Josué. Essa autoridade sempre é ligada a Moisés, seja no sentido de ações paralelas, como também no fiel cumprimento daquele às ordens deste. Talvez, tenhamos aqui um antigo fragmento de expedição militar utilizado pelos redatores deuteronomistas (SOGGIN, 1972).
4,19 – 5,1
Esta parte começa no v.19 com uma segunda indicação cronológica (a primeira está em 3,2a), ou seja, em 10 de Nisan. Somos informados que o povo se acomodou em Guilgal, que significa “circulo de pedras”. Esta palavra se tornou nome próprio para vários locais. A Guilgal de Josué fica entre o Jordão e Jericó. A tradição coloca neste local a aclamação de Saul. No tempo de seu reinado ela se tornou grande centro político e religioso. Podemos conjecturar que Guilgal era um centro religioso com grande importância, por isso o redator utiliza-a em sua obra. A Guilgal é ligada às memórias da primeira circuncisão em Canaã (5,1-9) e à primeira páscoa (5,10-12). Os profetas reprovaram Guigal porque virou símbolo de opressão (Os 4,15; 9,15; 12,12; Am 4,4). Na estratégia deuteronomistica, Guilgal se tornou, por um tempo, um centro de inteligência para Israel na suas conquistas.
Nos versos 20-23, fala-se novamente sobre as doze pedras. Elas são colocadas em Guilgal e servem como memorial para que todos saibam o que fez Deus. Isso serviria para duas coisas: 1) temor das nações a Javé e 2) demonstrar que como aconteceu com Moisés se fez com Josué. Este segundo ponto está bem presente em todo bloco 3-5. Os redatores fazem de Josué uma figura emblemática a ponto de torná-lo parecido com Moisés.
Js 5,1 é uma emenda deste bloco para o outro. Sua redação está ligada à questão do memorial em Guilgal, pois o temor que era previsto atingia as nações. Desta forma, o texto é amarrado e se continua a história em um grande cenário litúrgico vivido no período exílico, que é explicado à luz de suas raízes históricas em Guilgal.
Bloco 5,2 – 5,15
5,2-9
Nesta parte é narrado o episódio da circuncisão feita em Guilgal. Javé ordena a Josué que faça a circuncisão em todos, pois ainda não eram circuncidados. A circuncisão era uma prática realizada por outros povos antigos, inclusive o egípcio (citado no verso 8). Nesta prática, os motivos higiênicos, rituais e cerimoniais se inter-relacionam. Historicamente, segundo pesquisas mais recentes, o uso da circuncisão como símbolo de pertença a Javé deve ser datado no período exílico, quando os outros povos começaram deixá-la de lado; por isso a ênfase dada por Israel a essa prática para caracterização como povo (De VAUX, 1968).
Nos versos 4-6 temos uma grande explicação da razão do povo ainda não estar circuncidado. Aqui é retomada a tradição da peregrinação no deserto e ligada à prática no exílio da circuncisão. Sem templo, a circuncisão e páscoa exerciam papeis fundamentais. Por isso, estamos em um contexto litúrgico do VI século a.E.C. Nos versos 8-9, temos outra etiologia para o nome Guilgal.
5,10-12
Em Guilgal também é celebrada a páscoa. O texto diz que foi celebrado no dia quatorze. A páscoa era um ritual muito antigo, tipicamente pastoril, celebrada entre alguns povos do mundo antigo na lua cheia da primavera, quando era sacrificado um animal para fecundidade de todo o rebanho. Neste ritual o sangue do sacrificado era aspergido nas estacas das tendas e mais tarde nas casas, para afastar os poderes malignos. Talvez, a partir do século VII a.E.C a páscoa começou a ser realizada em Israel no dia 14 de Nisan, na primeira Lua cheia da primavera.
No pós-exílio (Lv 23,5-8; Nm 28,16-25; Ex 12, 1-20. 40-51), a páscoa começou a ser realizada desde o dia 10 com a separação do animal macho, para no dia 14 ser degolado à noite. A partir do dia 15, comiam-se os pães asmos. G. Fohrer explica que a festa dos Ázimos e a Páscoa eram diferentes celebrações que foram unidas na redação deuteronomística. (FOHRER, 2006).
Com a celebração da Páscoa e dos Ázimos, o maná cessa, pois não precisariam mais do mantimento caído do céu, pois a terra que começavam conquistar os manteria. Esta cena é litúrgica, de um contexto sem templo, do século VI, quando a circuncisão e a páscoa tinham valor fundamental. Com a aparição do Chefe do Exercito do Senhor, fecha-se a tríade para o início da conquista, que é vista como uma ação de Deus e celebrada no culto exílico.
5, 13-15
Os versos 13-15 é uma espécie de apêndice enxertado no capítulo 5. Parece ser uma tradição perdida que foi utilizada pelo redator. O episódio é parecido com a chamada de Gideão. Lendo o livro de Josué com Juízes, podemos supor que Josué é uma espécie de juiz transformado pelos deuteronimísticos como líder geral e modelo para os outros? O professor Schwantes trata esse momento como um chamado profético.
O verso 13 diz que o povo estava nos arredores de Jericó. Josué, então, vê um ’ish (homem), com uma espada na mão. O personagem diz ser o chefe do exército do Senhor. Quando Josué percebe que aquele ser tem relação com Javé, ele se prosta em sinal de reverência e temor. A íntima relação entre Ex 3, 2-5 e Js 5,14-15 leva-nos a pensar que Malak Javé e Chefe do Exercito do Senhor se referem à mesma figura. Segundo Fohrer, o malak de Javé sempre é um ministro subordinado a Javé, que aparece com uma revelação ou auxílio. Mas, às vezes, as expressões “Malak de Javé” e “Javé” são mutuamente permutáveis (FOHRER, 2006). No texto de Josué, talvez este seja, na realidade, o próprio Javé, garantindo a Josué que Ele próprio estaria presente durante a batalha (como a Nuvem era para Moisés). E, ao mesmo tempo, mostrando mais uma tradição paralela à de Moisés: o chamado profético. A mesma imagem de tirar as sandálias de Ex 3,5 aparece em Js 5,15.
Assim temos um contexto litúrgico sem templo, no qual são reformuladas tradições nas mãos de redatores exílicos, que garantem a Josué uma autoridade tal qual a Moisés. Os mesmos milagres, a mesma aproximação com Javé e o mesmo chamado tecem um enrede que serve de introdução para as conquistas que se iniciarão no capitulo 6. Este enredo é narrado em um contexto litúrgico exílico de caráter deuteronomístico.
São histórias, segundo M. Noth e A. Alt, que não teriam quase nenhuma ligação entre si, mas que foram usadas para explicar alguns costumes e fronteiras (apud BRIGTH, 2003).

[1] Essa afirmação se encontra em um dos textos não publicados das exegeses feitas pelo professor Milton Schwantes em suas aulas no programa de pós-graduação na UMESP, no curso de “Literatura Antiga do Mundo Bíblico”, no ano de 2008.