segunda-feira, 12 de abril de 2010

O Rio de Janeiro continua lindo... E alagado. Não precisamos de teodiceias e sim de ações.

Estive no Rio de Janeiro no penúltimo fim de semana. Depois de cumprir alguns compromissos e rever amigos queridos, fui à Rodoviária Novo Rio para retornar à minha cidade, no Espírito Santo. No caminho chovia forte, até então nada fora do normal. Algumas ruas estavam um pouco alagadas, mas não nos impedia de rasgar as águas juntamente com os outros carros que ladeávamos. Quando cheguei, encontrei a rodoviária um pouco mais lotada do que o comum. Alguns ônibus atrasaram, inclusive o meu. Como tinha tomado meu companheiro de viagem (dramin) e o sono estava me incomodando, fui até um funcionário da Águia Branca e ele me informou a respeito de alguns contratempos causados pela chuva. No entanto, estava tudo sobre controle e, repetindo sua frase, “sairíamos sem dúvida ainda naquela noite”. Como prometido, depois de algumas horas de leitura no banco vermelho e duro, o ônibus chegou. Entrei. Sentei. Comecei novamente a leitura e de repente dormi. Acordei somente em Aracruz, algumas horas depois. Parecia que tudo estava de acordo como nas outras viagens. Mas quando liguei a televisão não acreditei nas notícias dos telejornais. Enquanto me retirava daquela cidade a chuva instaurava o caos.

“O Rio entrou em colapso ao sofrer o seu maior temporal em 44 anos”. Assim estampou o Jornal “A Gazeta” do dia 7 de março. Chove tanto que o volume de água é maior do que no trágico ano de 1966. Com os deslizamentos casas foram destruídas. As chuvas encheram as ruas deixando-as completamente alagadas e moradores desesperados andam entre os dejetos e restos de móveis. Com a falta de energia elétrica em muitos bairros, o terror se intensificou. Já se somam mais de mil desalojados e centenas de vítimas fatais. E como sempre os atingidos, em grande parte, são exatamente os menos providos e alijados sociais, como os moradores do Morro dos Prazeres, onde os deslizamentos mataram 14 pessoas até quarta-feira e do Morro do Bumba, em Niterói.

Diante de tantas desgraças, muitos são compungidos a perguntar sobre as razões de tudo isso. No processo das formulações os questionamentos acabam desembocando em Deus. Como escreveu o sociólogo protestante Peter Berger, “os fenômenos anômicos devem não só ser superados, mas também explicados – a saber, explicados em termos de nomos estabelecido na sociedade em questão. Uma explicação desses fenômenos em termos de legitimações religiosas, de qualquer grau de sofisticação teológica que seja, pode chamar-se uma teodicéia [sic]”. Diante do mal, das desgraças da vida e das catástrofes, parece ser quase natural o surgimento de explicações. Quando essas alcançam o âmbito da realidade, participação ou relação com ou de Deus, entremos no âmbito das “teodiceias”, onde se justifica a Deus diante do mal à luz de afirmações teológicas.

Por exemplo, quando o Pastor norte-americano Roberson afirmou que a catástrofe no Haiti foi resultado de alianças históricas daquele país com o Vudu, mesmo simplista, ele está fazendo uma teodiceia. Na história, ocorreram várias tentativas para tratar a desconfortante relação da realidade dos males metafísico, moral e físico com Deus. Leibniz tentou resolver esse impasse afirmando ser esse o melhor mundo possível, ou seja, depois de uma pesquisa cósmica Deus chegou ao melhor que poderia ser feito, e por isso todas essas mazelas que vivemos é o mínimo possível. Agostinho, por outro lado, para minimizar o sofrimento concreto, relativizou sua existência e o tratou como uma simples “privação do bem”. Essas são algumas das muitas tentativas de justificar Deus diante das desordens no mundo. Contudo, depois de perscrutar suas proposições e elucubrações, parece-me que suas afirmações não aplacam os incômodos gerados no levantamento das questões.

Acho ser mais coerente darmos um passo à frente nessas discussões para tomarmos duas atitudes. A primeira, migrar da teodiceia para antropodiceia. Com essa transmutação de perspectiva, não mais perderemos tempo defendendo ou explicando, à luz de afirmações ontológicas, a questão do mal, como se pudéssemos justificar a Deus, mas perguntaremos ao próprio homem. As questões metafísicas ficam de lado, para gastarmos tempo com a moral e a política. Não perguntaremos “Como Deus fez ou deixou isso ser feito?”, para indagarmos “como o homem (nós) teve coragem de fazer isso ou como contribui para aquilo ser feito?”. Essa postura é a mais humilde, pois coloca o homem em seu lugar e invalida a necessidade de falar em nome Daquele que não precisa ser defendido e muito menos justificado; cremos num evangelho no qual o homem é justificado por Deus, e não o inverso. Por isso, é mais sensato pouparmos Deus de nossas afirmações desatinadas, para perguntarmos por nossa culpa, “nossa tão grande culpa”.

A partir daí, devemos tomar a segunda atitude: “passamos da especulação sobre o mal à luta contra ele, na esteira da doutrina kantiana” (ESTRADA, Juan Antonio. A impossível teodicéia. A crise da fé em Deus e o problema do mal. São Paulo: Paulus, 2004). Nesse âmbito, deixamos de lado as teodiceias, com todas suas especulações e problemas, para tratarmos das consequências dos desastres. Antes de perguntarmos o porquê, nos preocuparemos com as vítimas e a desordem, para orquestrarmos ações pró-ordenação. Jesus em seu ministério não se preocupou com estéreis discussões sobre as razões metafísicas ou cósmicas da lepra, mas simplesmente curou os atingidos com essa doença cutânea. Ele não se perdeu em explicações teológicas do porquê da morte, mas chorou diante dela e ressuscitou o filho da viúva de Naim e a Lázaro. Quando questionado sobre a culpa da cegueira de nascença de um rapaz, ele valorizou a instrumentalidade daquele mal para a glória de Deus (Jo 9. 1-2). Jesus sempre canalizou seus interesses nos resultados do mal e não nas suas razões.


Assim, diante das calamidades vividas em algumas cidades do Rio de Janeiro, nosso papel não é fazer teodiceias, mas consolar os enlutados, ajudar os desabrigados, fortalecer os desanimados e desesperançados e curar os feridos. O caos não acabou e ainda não podemos contar, entristecidos e estarrecidos, os resultados calamitosos do desastre. Mas quando esse pesadelo terminar e as águas secarem, o povo do Reino deve cobrar do Estado ações preventivas, desde a conscientização até reformas estruturais de infra-estrutura e logística de urbanização.


Os desabrigados e enlutados não precisam de teodiceias vazias, e sim empatia e ações para ajudá-los a superar esse momento caótico.

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