quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Desavença Entre Partidos na Comunidade (1 Co 1,10 – 4,21)


Esta primeira parte é tão coesa a ponto de parecer uma carta completa. Neste grande bloco Paulo trata das divisões na comunidade (os de Paulo, os de Apolo, os de Cefas ou os de Cristo). Para responder a essa divisão, Paulo recorre ao escândalo da cruz, que é na verdade a sabedoria de Deus, ou seja, o como Ele colocou a todos num só corpo.
            Primeiramente, nos versos 10-17, o apóstolo sinaliza o problema da divisão na comunidade, comunicado pela casa de Cloé. Essa mulher deveria ser a chefe de uma das casas onde se reuniam os crentes de Corinto. No verso 17 ele já começa sendo enfático na questão da unidade e divisões: “Rogo-vos, porém, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que digais todos uma mesma coisa, e que não haja entre vós dissensões; antes sejais unidos em um mesmo pensamento e em um mesmo parecer”.
            Havia quatro partidos, como quatro escolas, que tinham seus nomes ou representantes. Segundo Koester a estreita ligação dos quatro nomes com o batismo e com a posse da sabedoria sugere que Paulo, Apolo, Cefas e Cristo são nomes de mistagogos, ministradores do batismo – que é assim entendido como um rito de mistério – ou como autoridades para palavras de sabedoria salvífica. Não seria muito frutífero fazer uma descrição de cada partido, pois mergulharemos em espesculações. No entanto, podemos perguntar-nos pela relação desses partidos com o assunto da sabedoria humana discutida por Paulo no mesmo bloco, e sobre o partido de “Cristo”, estranhamente colocado lado a lado com os de Paulo, Pedro e Apolo. Oscar Cullmann, no seu opúsculo, apresenta duas possibilidades. A primeira, sugere a leitura de Crispo em vez de Christos (1.12), colocado erradamente por um copista desatento. O partido carregaria o nome do convertido líder da sinagoga de Corinto (At 18,8), a respeito do qual Paulo diz ser um de seus batizados (1,14). A outra opção seria uma glossa. Um copista teria colocado nas margens, ao ler e indignar-se, a expressão “e eu de Cristo”. Mais tarde a observação acabou entrando no texto. Essa hipótese é corroborada com a não citação do grupo de Cristo em 3,4-6 e 3,22. Este último texto cita Paulo, Apolo e Cefas, faltando-lhe exatamente aquele que estaria ausente no original.
            Palo critica duramente essa divisão na comunidade, porque Cristo é um só (não está dividido), e foi exatamente ele, e mais ninguém, crucificado por amor a eles e no nome Dele aconteceu o batismo (v.13). Desta forma, Paulo mostra que estavam ligados ao mesmo Cristo, por isso não poderia haver divisões entre eles.
            Se o problema era o batismo, e Koester estiver certo, alguns se dividiam em espécies de grupos por batizadores, Paulo fala de si e diz não ter batizado muitos (Crispo, Gaio e a família de Estéfanas) (14-16). Por isso, ele conclui dizendo que foi chamado para pregar e não batizar (v.17). E mais, essa pregação, segundo o própria Paulo, não se utilizou de artifícios da sabedoria de palavras, como se a pregação da cruz precisasse de auxílio da retórica ou das argumentações filosóficas (v.17). Com essa versículo, Paulo entra no assunto da sabedoria humana, que seriam sistemas filosóficos de seu tempo, em contraste com o evangelho ou a loucura da cruz de Cristo. Essa sabedoria poderia ser um dos motivos das discórdias e divisões, e os vinculados a ela possuíam uma postura mais liberal como relação às práticas sociais e morais, que são por ele contrabalanceadas pelo amor e preocupação com a consciência dos demais.
            Em 1,18 – 2,5, como continuidade do que começara a falar no v. 17, como uma quase digressão em relação ao tema das divisões, Paulo contradiz a loucura da cruz com a sabedoria do mundo. Ele prioriza a sabedoria de Deus, ou seja, um conhecimento de Deus realizado não por sabedoria humana, ou sistemas filosóficos (L. Cerfaux), mas por um ato desprezível e aparentemente fraco: a crucificação  (1, 18-21). Paulo usa Is 29, 14 de maneira livre para mostrar que essa sabedoria humana foi destruída por Deus (v.19). Essa louca, a pregação de um Deus crucificado, é a maneira usada para salvação dos que creem (v.21). Esse projeto louco de Deus é mais sensato do que a suposta capacidade intelectual e das elocubrações filodóficas do tempo de Paulo, que talvez eram usadas ou bem quistas pela comunidade de Corinto (v.24-25). A  tal sabedoria tentava chegar ao conhecimento de Deus, mas como a Lei (e Paulo mostra isso em Gálatas) não conseguiu cumprir esse intento, ficando isso a cargo da pregação (v.21).
            Como diz L. Cerfaux, do mesmo modo que a justiça do judaísmo cede lugar à fé em Cristo, acompanhada da justiça de Deus, a sabedoria dos gregos é despojada de qualquer eficiência religiosa  e substituída pelo simples anúncio da mensagem cristã, isto é, de Cristo crucificado. Desta forma, a mensagem cristã toma o lugar abandonado e perdido pela filosofia. A sabedoria de Deus é escândalo para os judeus e loucura (morían) para o pagãos (1,23), mas é salvação para os que creem. Nos versos 26-31 Paulo mostra que na própria experiência da comunidade é possível perceber como Deus comumente escolhe coisas despresíveis ou sem importância para realizar seus projetosautoglorificação, pois a cruz destrói a arrogância, não permitindo a autossuficiência ou espaço para méritos (v.30-31).
            Após essa digressão, uma explicação sobre o evangelho da cruz, Paulo volta ao que disse em 1,17, ou seja, sua pregação não utiliza-se de artifícios da retórica ou prestígio da filosofia de seu tempo (2,1-5). Paulo não era contra o conhecimento filosófico, ou até mesmo a filosofia natural, presente em Sabedoria 13 e em Rm 1,18-22, mas ele despreza a eloquência ou a sabedoria, utilizadas para dar à palavra um vigor que, pelo contrário, no despojamento de qualquer eficiência humana manifesta todo o poder do Espírito (2,4-5). Paulo fala de uma dependência à própria força do Espírito, manifestada na pregação do Cristo crucificado (2,1). Ele usava vários aspectos da retórica grega, mas quem realmente tornava efetiva sua pregação era o Espírito.
            Essa sabedoria, talvez, tinha relação com a excessiva liberdade diante das questões sexuais (cap. 5) e com a consciência elitista no interior da comunidade. Gerd Theissen se pergunta pela relação dessa sabedoria, ou conhecimento, em Corinto com o Gnosticismo do sec. II. Nos textos dos Pais da Igreja como Justino, Irineu e Orígenes encontram-se críticas aos gnósticos valentinos e basilidianos que se achavam bem superiores a esse mundo e por isso não eram maculados em nada na essência. Como consequência, viviam uma sexualidade menos tolhida e participavam de cultos religiosos pagãos. Inclusive, os Pais Apostólicos os criticavam exatamente por comerem indiscriminadamente qualquer carne sacrificada. A sabedoria de Corinto não pode ser confundida com o gnosticismo do segundo século, que além da negação do corpo e da influência contaminadora do mundo, também falava de um chegar a Deus por meio do encontro consigo mesmo (Elaine Pagels). No entanto, é necessário admitir as nítidas relações ou ideias próximas. Gerd Theissen, fazendo uma relação entre o conhecimento em Corinto e o Gnosticismo posterior, diz: 

Uma conclusão em relação à gnose de Corinto é inteiramente permitida, pois essa conclusão não se baseia em concordâncias com concepções míticas abertas, mas nos quatro critérios acima mencionados: também nos gnósticos de Corinto encontramos uma determinada instrução, uma grande significação de conhecimento e sabedoria para ética e salvação, uma autoconsciência elitista intracomunitária, ligada com uma grande liberdade nas relações com o mundo pagão. Todas essas características apontam, aqui e lá, para um elevado status social.       
               
O exegeta alemão não conclui com isso que a sabedoria em Corinto e o Gnosticismo eram a mesma coisa, mas que as duas compartilhavam de ideias parecidas. Falar de um gnosticismo incipiente, mais desenvolvido no segundo século, pode servir para essa leitura de 1 Cor, mas não satisfaz totalmente.   
Paulo pregou a sabedoria de Deus, diferente da deste mundo, e dos archonton tou aiônos (arcontes/poderosos do mundo) (2,6). Aqui Paulo, como faz no texto de Gl 4, no qual fala dos stoicheîa (4,3.8), mostra a filosofia ou a sabedoria deste mundo sendo utilizada por seres celestes. Mas esse instrumento estava fadado ao fracasso.  
            Essa sabedoria de Deus, que estava guardada e se revelou em Cristo, é descortinada pelo Espírito, não um espírito que vem do mundo – aqui relacionado com as proposições filosóficas do seu tempo – pois Ele é que conhece as profundas intenções de Deus (2,10-12). Para mostrar esse profundo conhecimento do Espírito, Paulo cita livremente Is 43,13 (2,16). E, por isso, para falar sobre essas coisas só é possível por intermédio do mesmo Espírito (2,13).
            Paulo acaba seu discurso sobre o que não é a sabedoria de Deus, e mostra como eram imaturos os supostamente sábios, ou os que utilizavam do mundo filosófico. Eles os chama de carnais, porque vivem em divisões (3,1-4). Paulo responde a isso deixando claro que tanto ele como Apolo, ou qualquer outro, são simplesmente trabalhadores (metáforas do plantar e regar; cooperadores e lavouras; construção).
Nessa construção, Cristo é o fundamento único (3,11). Por isso não havia razões para essas divisões causadas pela sabedoria humana. Pelo contrário, a de Deus gerava comunhão e unidade em Cristo. Ele identifica Cristo como fundamento, mas apresenta a participação da liderança. Isso fica claro porque o texto está falando dos que trabalham a partir desse  fundamento. Os que constroem a partir dessa base, com seus ensinamentos, encaixar-se-ão em cada nível (ouro, prata, pedras preciosas ou madeira, feno e palha). E em uma linguagem apocalíptica, ele fala do dia do Senhor quando forem testados os tipos de construção feitos a partir de Cristo (3,13-14). Na comunidade de Corinto os mestres poderiam permitir coisas ou deturpar o evangelho, mas as consequências desses ensinos revelariam o nível da construção e as obras de cada um dos mestres (3,13). Por ser a comunidade formada por aqueles que são templos de Deus, quem os induzir a destruição, segundo Paulo, será destruído (3,16). Em uma leitura mais acurada, a luz da discussão da perícope, o autor não está fazendo uma advertência aos crentes individualmente, mas aos líderes que edificam a comunidade com seus ensinos e ideias. Dependendo dessa edificação os crentes poderiam se perder, e destruir o templo de Deus.
            Assim, ele em 3, 18-22 mostra como essas divisões são idiotas. Primeiro, como já disse, essa sabedoria ou filosofia que dividia os irmãos de Corinto é loucura, porque para Deus é loucura. Em vez de sábios são loucos, pois valorizavam aquilo que para Deus não tinha valor. Para confirmar essa negativização de Deus, ele cita dois textos que desqualificam os intentos e sabedoria dos homens (Jr 5,12-13 [1 Co 3,19]); Sl 94,11 [1 Co 3,20]). E mais, colocar sua glória, ou seja, sua confiança de possuir valor em figuras humanas como Paulo, Pedro ou Apolo é estupidez, pois tudo, sejam esses ou qualquer outra coisa (mundo, vida, morte, presente etc), no fundo são de Deus, porque eles são de Cristo e Cristo é de Deus (3,21-22). E mais, Paulo pede para tratarem-no, e implicitamente os outros nomes nos quais se dividiam a comunidade, como hupératas (4,1). Esse era o nome para o remador de menor grau numa embarcação. Paulo utiliza-o, talvez, levando em consideração as questões semânticas. Independentemente dessa particularidade do termo, Paulo  usa-o para mostrar a si e aos outros como simples servos e ministros dos mistérios de Deus, a saber, o evangelho da cruz defendido nesse bloco (4,1-2). E quem fará o julgamento final é o próprio Senhor, caso ele esteja errado (4,4-5).     
               Paulo havia usado essas imagens até aqui (agricultura, navegação) para tratar da questão da divisão na comunidade (4,6), pois cada um recebeu o que tem e por isso não há motivos para divisões e arrogância, demonstrada em ideias como “já estou saciado”, “estou rico”, “reinamos” (4,8). Aqui Paulo parece criticar uma das ideias desses grupos, uma espécie de escatologia realizada, a qual defendia uma vivência atual da eternidade. Os possuidores dessas ideias se colocavam como sábios e fortes, mas Paulo os contradizia descortinando a sua verdadeira condição (4,9-13). Isso eliminaria qualquer acusação de orgulho contra ele.
            No fim desse grande argumento, Paulo mostra sua preocupação como de um pai, pois ele quem os gerou – uma metáfora para o fato de levá-lo a Cristo (4,14-20). Por isso enviou a Timóteo, tratado também como filho amado, para lembrar-lhes dos seus caminhos (hodós). Timóteo seria um intercessor ou representante de Paulo na comunidade, para ajudá-la na compreensão dos ensinos e práticas ensinadas por Paulo. Paulo pensa em voltar a Corinto, mesmo que alguns não quisessem. Por isso pergunta ironicamente o que preferiam: que fosse com amor ou com vara (4,20).
            Dessa forma, Paulo termina o primeiro bloco das discussões, criticando as divisões causadas por grupos com perspectivas diferentes, fruto da sabedoria humana (referência a um ou alguns sistemas filosóficos gregos, talvez um proto-gnosticismo ou gnosticismo incipiente). Como link, Paulo mostra a sabedoria de Deus manifestada na cruz, que talvez pareça loucura, mas era exatamente o contrário, eliminava a necessidade desses grupos, pois desvalorizava qualquer elucubração filosófica. Cristo como meio de conhecimento de Deus e salvação dizia um “não” a qualquer outro sistema filosófico que arrogasse autossuficiência. E essa mensagem teria sua força no Espírito e não na retórica grega, tanto na forma como no conteúdo. 
            Talvez, como disse acima, essa sabedoria ou sistema filosófico dava margens para uma moralidade sexual e relações mais liberais com as práticas religiosas pagãs. Sobre a primeira, ele trata logo no segundo bloco, sobre o qual falaremos em outro post.             

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