sábado, 5 de maio de 2018

Tardei





Nestes dias, ouvi com amigos da pastoral poética a música "Tardei" de Rodrigo Amarante. Canção densa e leve, com letra polissêmica e capaz de levar cada ouvinte, a partir do lugar de escuta, às memorias, caminhos e escolhas mais íntimos. As palavras da canção são como teias de ferro, aparentemente frágeis, contudo duríssimas! A letra é cercada pelo dedilhar despretensioso do violão triste. No fundo, como coro nebuloso ouvem-se vozes femininas soprando "uuh" monossilábico.

No clipe, Amarante anda por lugares montanhosos e o mar revolto faz o enquadramento das imagens. Sinuosamente, como um rio, o músico aparece sentado em um cômodo antigo e cheio de coisas velhas, de onde olha-nos nos olhos, no fundo, sem nos permitir fingir ou disfarçar que não seja conosco.

O compositor, ao comentar sobre a obra (pecado imperdoável), diz ser uma caminhada pelas lembranças da infância. Tudo bem, eu entendo. Mas é mais, muito mais! A música fala para e a respeito de qualquer alma desejosa por um lugar.

A canção abre o primeiro verso confessando "tardei". O substantivo comum para falar do atraso, torna-se verbo e explica-nos a respeito de sua chegada tarde. Há na estrofe celebração por ter enfim atracado sua nau. No entendo, certeza de ter encontrado onde deveria estar é relativizada quando pergunta "onde está meu lugar?".

Amarante cita alguns instrumentos religiosos trazidos nas mãos, aos quais banha no rio em um tipo de rito. Contudo, o compositor avança no limiar da linguagem e admite ser só agora, na volta dessa caminhada, o tempo oportuno para perceber a senda por onde passou para ir aonde de onde chegou. Somente na volta pode saber como saiu e o que foi deixando. A canção celebra a maturidade do retorno. Ir por vezes é impulso, mas a volta é tempo de prestação de contas: para cada filho pródigo, um pai por quem precisará ser abraçado. Para o ex-membro do Los Hermanos, seu retorno é o encontro com aquelas memorias sinalizadas pelo fio de conta e rosário banhados. Se para ele essa é a razão, cada ouvinte encontrará às suas.

Mesmo afirmando ter chegado e pela primeira vez nunca mais partir, "desceu pelo rio/ da terra pro mar/ um fio de prata que me leva". É chegada tal qual um objeto jogado no rio cuja permanência é instável. Por mais tarde a volta, sempre cedo será a partida para todo/a aquele/a com coragem para vencer a segurança das afirmações inquestionáveis ou dogmatismos intolerantemente estabelecidos, as vezes, por nós mesmos. Não partir acaba nos impendido de aprendermos um pouco mais, simplesmente porque elimina as voltas, através das quais percebemos as sendas.

A imagem de fechamento do vídeo é o mar com ondas fortes. Ele encontrou o lugar, "tardando", mas o caos ainda está lá, mesmo na segurança da chegada. Que bom! Muito bom! Não tenho vocação para chegadas, gosto mais das voltas. Aprendi isso com o mestre de Nazaré, pois ele sabe bem sobre a transitoriedade dos lugares fixos, preságios da cruz.

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