Os símbolos nacionais, além
de artefatos/arquivos da história, são agentes de estímulo e integração. Essa é
a razão para destacarmos datas, personagens, situações e conquistas, sem os
quais não seria possível formar a identidade nacional. O Brasil é Brasil por
sua história! Então, a Proclamação da República é antes data-símbolo do que
oportunidade de descanso para os que ainda têm emprego que lhes permita tal
desfrute.
15 de Novembro para nós
brasileiros e brasileiras é marca temporal de transição da Monarquia
Parlamentarista para a República, realizada em 1889. Contudo, esse dia
memorável é espuma do mar maior de perspectivas político-econômicas e
movimentos contrários ao antigo regime. Na década de 1870, por exemplo, foi
assinado por alas intelectuais brasileiras, nas quais estavam também alguns
protestantes, o Manifesto Republicano cujas linhas alimentavam o desejo
democrático, a luta por liberdade e a cumplicidade com a ideia de que a vontade
do povo deveria conduzir o país. No histórico texto é denunciada a realidade
brasileira e expressava-se, com bravura, o enfrentamento ao sistema marcado por
injustiças. Cito: “O privilégio, em todas as suas relações com a sociedade –
tal é, em síntese, a fórmula social e política do nosso país –, privilégio de
religião, privilégio de raça, privilégio de sabedoria, privilégio de posição,
isto é, todas as distinções arbitrárias e odiosas que criam no seio da
sociedade civil e política a monstruosa superioridade de um sobre todos ou de
alguns sobre muitos” (Manifesto Republicano, 1870).
Na época, as “novas
idéias” republicanas desaguavam entre as classes letradas, pelas esquinas e
quintais da terra brasilis. O país era efervescência de sonhos e revoltas;
lágrimas e risos; forças conservadoras e revolucionárias. Sagazmente, Rui
Barbosa, em 10 de Julho de 1889, percebeu o clima no ar e escreveu: “É
inenarrável o aspecto que, há dois dias, apresenta a capital do império. Nunca
se estamparam mais vivamente na fisionomia de uma cidade o pasmo, a reprovação,
o protesto. Sente-se, nos espíritos, o rumor da grande vaga humana, que cresce
das consciências, e se aproxima, surda e misteriosa, nas crises morais de uma
nação. As ruas borbulham de alvoroto. A política invadiu todos os colóquios,
emudeceu todas as preocupações. Não se crê no que se acredita. Essa mesma
espuma das alegrias interesseiras, que efervescem a cada mudança ministerial, à
ascensão de cada partido, mal sobrenada, indecisa e silenciosa. Ainda não
acertamos com um liberal satisfeito” (Queda do Império, vol. XVI, tom. III, p.
243.). O “alvoroto” (revolta) que borbulhava era o sinal do desgaste.
Desejava-se, nas palavras de Raimundo Correia, que o Futuro, archote
incendiário, queimasse os báculos e os cetros. Ou seja, a famigerada relação
dos poderes católico e monárquico já não passaria desapercebidamente ilesa às
críticas das consciências esclarecidas. Tanto quanto se sentia o dissabor pela
dureza do autoritarismo, das crises econômicas, do obscurantismo e da
desigualdade de direitos, crescia o desejo pelo progresso social.
O 15 de Novembro de 1889
seria, então, a erupção dos muitos interesses vulcânicos instalados desde o
seio da monarquia. Machado de Assis, em “Esaú e Jacó” (1904), infere a respeito
da desgastada monarquia no diálogo entre os personagens Aries e Custódio. Este,
no romance machadiano, é dono do estabelecimento chamado “Confeitaria do
Império”. Na conversa com Aries, Custodio fala sobre a restauração da tábua
onde estava o nome de sua confeitaria. O decepcionado confeiteiro lamenta:
“Ontem, à tarde, lá foi um caixeiro, e sabe V. Exª o que me mandou dizer o
pintor? Que a tábua está velha, e precisa outra; a madeira não aguenta tinta.
Lá fui às carreiras. Não pude convencê-lo de pintar na mesma madeira;
mostrou-me que estava rachada e comida de bichos. Pois cá de baixo não se via.
Teimei que pintasse assim mesmo, respondeu-me que era artista e não faria obra
que se estragasse logo”. Não tem restauração, diria a mensagem do livro, o
sistema monárquico estava aos bichos e não teria artista que desse jeito!
Por outro lado, mesmo
glorioso em valores, o sonho libertário não foi o único motivo de adesão à
causa. O ressentimento dos ex-proprietários de escravos, despossuídos pela Lei
Áurea (1888) do perverso bem sem serem ressarcidos, impulsionou a cooperação
dos grandes ruralistas. Ainda – e a honestidade histórica exige indicar – os
ideais republicanos foram traídos na Primeira República. Contudo, a luta pela
Liberdade, Igualdade, Dignidade Humana, Justiça (valores tão caros para o
futuro Estado Democrático de Direito) integravam essencialmente as diretrizes
dos militantes republicanos do séc. XIX.
Por conseguinte, essa data é
memória de denúncia e enfrentamento a sistemas que legitimem a “superioridade
de alguns sobre muitos”. Aponta para um projeto de nação plural cujo governo
está a serviço da legalidade, democracia e estabelecimento de direitos.
Comemorar a Proclamação da República, dessa forma, é reafirmar os valores da
justiça para todos e todas, o estabelecimento do acesso à educação e aos
subsídios necessários para o bem estar social. E para nós evangélicos,
vinculados à história do protestantismo brasileiro, 15 de Novembro é a
afirmação indiscutível da separação entre Estado e Igreja, o que exige respeito à diversidade, o diálogo e a não imposição de valores individuais ou
teológico-institucionais sobre os interesses nacionais, evitando o mal do
privilégio religioso denunciado já pelo Manifesto de 1870.
Assim, a Proclamação da
República lança os olhos do povo brasileiro para o passado, mas torna-o símbolo
de valores imprescindíveis e civilizatórios, projetando-nos, por sua vez, para
o futuro.
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