sexta-feira, 19 de abril de 2019

SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO: CRUZ.


A compreensão da fé cristã move-se, nas variações de suas ênfases, do triunfo à dor, glória à discrição, sofrimento à prosperidade. Nem mesmo as narrativas da paixão foram poupadas da fluidez hermenêutica. Na arte sacra, a cruz pendula entre o Christus triumphans, Cristo triunfante, do séc. V, e o Christus patiens, Cristo sofredor, posterior ao séc. XIV. Maria Isabel Roque explica as razões de tal movimento estético e imagético à luz do sofrimento humano: “uma nova concepção do tema surge no século XIV, marcado pelos horrores da Peste Negra e pelo misticismo propagado por S. Francisco de Assis, também presente nos Exercícios de Johannes Tauler, nas Meditações da vida de Cristo de Pseudo Boaventura (atualmente, atribuídas a Frei João de Caulibus) ou nas Revelações de Santa Brígida que, retomando as profecias de Isaías (Is. 53, 1 10), exaltavam o atroz sofrimento da paixão de Cristo e, em particular, o lento martírio da sua morte”. Aparentemente, o drama da fé e da vida, marcado pela morte, perseguição e angustias, guia e modela as representações da crucificação.

O grande expoente do expressionismo alemão, Matthias Grünewald (1470-1528), no magistral “Retábulo de Isenheim” (1512-1516), do Musée d’Unterlinden, em Alsácia, fronteira Alemanha-Suíça, revela-nos com cores fortes a ignomínia do Deus crucificado. Na tábua central do retábulo, enquadrado pelos mantos vermelhados de Tiago a sua direita e João à esquerda, está Jesus em silencioso grito de morte. A cabeça caída no peito pendura-se fragilmente ao pescoço. Mãos e pés perfurados são torcidos à força dos pregos e contraem as extremidades do corpo esquelético do mestre. Grünewaldo reforça a injusta e lúgubre imagem com cores pálidas. Na cabeça solta crava-se enorme e desproporcional coroa de espinhos cujo tamanho quase esconde o rosto, lambe duramente a testa e toca os ombros. Os farrapos enrolam a cintura e escondem suas vergonhas. A boca meio aberta testemunha o último suspiro agonizante. Maria, com roupas puras, de pé desespera-se discreta e inconsolável nos braços de Tiago. De joelhos, Maria Madalena lamenta, com dedos entrelaçados, a perda. Do outro lado, como que iluminado pelo motivo eterna do evento, João segura seu evangelho e aponta com dedo grande o corpo esquálido do messias. Abaixo, o cordeiro derrama sangue no cálice da nova aliança. Sob a égide da teologia do sacrifício ele avisa ao mundo o absurdo e vitória da morte.

O realismo da obra expõe a crueldade. A agonia do Cristo de Deus denuncia as relações perversas entre religião e Império, sacerdotes e Roma. Injustiça, peste negra e dor humana tornam-se lugar comum e lentes para a páscoa. A patiens de Cristo é paixão de todos os alvos das forças da morte. Por isso, há solidariedade no corpo-flagelo do Cristo pascoal crucificado. Na cruz, o cordeiro de Deus denuncia a injustiça, desumanização, desfiguração da dignidade humana e a barbárie. É catharsis e profecia, empatia e denúncia, identificação e julgamento, partilha de lagrimas e resistência.

Para as comunidades do cordeiro-corpo-cruz, a única resposta possível é a mesma paixão e solidariedade aos tantos outros corpos violentados cuja dor por vezes é esquecida pelas esquinas e becos imperiais da insensibilidade.


(imagem: Matthias Grünewald, A crucificação [Retábulo de Isenheim], 1512-156)

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