Entre
as suas últimas publicações, o presidente divulgou um vídeo no qual o pastor
congolês Steve Kunda exorta o Brasil a aceitá-lo (Bolsonaro) como enviado ou
empoçado por Deus. Por isso, não deveríamos, disse o pastor, criticá-lo, mas
simplesmente aceitar a soberana vontade do Senhor. Essa afirmação, entre tantos
outros problemas, tenta criar em torno do presidente uma redoma divina,
desqualificando qualquer crítica ou oposição, porque significaria ser contra o
próprio Deus. O cinismo antidemocrático dessa publicação ecoa o uso desonesto
de uma série de textos bíblicos e discursos teológicos, os quais, por vezes,
são aplicados aos pastores e pastoras que buscam neutralizar pelo medo qualquer
objeção. Contudo, quando a mesma estratégia é instrumentalizada pelo
representante da República, estamos diante de grande ameaça à democracia e
legitimação religiosa do autoritarismo contra o Estado Democrático de Direito.
Um texto não citado pelo bispo congolês, mas presente nas memórias de seu
discurso é Rm13. Quero aqui esclarecer alguns detalhes sobre essa passagem
bíblica, o que impedirá ser usada de base para desarranjos e malabarismos
contra a democracia.
Em
Romanos 13.1 lemos: “Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais,
pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram
por ele estabelecidas”. Essas palavras precisam ser lidas à luz da estrutura
política romana. Paulo não presumia relações democráticas no Império, mas
tratou pastoralmente a maneira como os cristãos deveriam lidar com a tarefa de
vivenciar a fé no mundo estabelecido sob a égide imperial. Vejamos o texto. O
apóstolo começa, de maneira abrupta, depois de discutir sobre as relações
pessoais (Rm 12.21), afirmando que “toda alma” (pâsa psyché), referindo-se a todas as pessoas, deveria se
“subordinar”. O verbo hupotásso tem
sentido de ação livre em relação a alguma coisa. A submissão aqui é aplicada às
autoridades constituídas. Paulo diz que toda e qualquer autoridade é
estabelecida por Deus seguindo algumas tradições judaicas (Dn 2.21; Is 41.2ss;
Pr 8.15; Eclo 17.7; Pr 8,15-16). No entanto, ele também diz: “é instrumento de
Deus para estabelecer o bem” (v.4). Esta última afirmação precisa ser lida como
uma “generalização” ladeada por “idealização”. Ou seja, em termos ideias as
autoridades estão a serviço da promoção do bem. E quando o contrário acontece,
como no Nazismo, por exemplo?
A
ideia é a seguinte: ora, se a origem das autoridades é divina, logo esta estará
sempre a serviço do bem e qualquer que se atrever questioná-la será contrário
aos desígnios divinos (v.2). Isso quer dizer que Paulo desconhecia autoridades
que descumprem esta função ideal? Pelo contrário, em 1Co 6,1-11 ele tece
críticas aos juízes injustos. Contudo, em Rm 13 ele não leva em consideração o
desvio desse projeto ideal, mas estabelece o que é em termos paradigmáticos –
ou seja, ele parte do modelo previsto para as autoridades. Por isso, esse texto
não pode ser usado como instrumento de aceitação passiva diante de lideranças
autoritárias e injustas, ou para desqualificação, por exemplo, da luta contra
as ditaduras. Só há espaço para essa perigosa interpretação se lermos os versos
1-2 separando-os dos versos 3-4. A abstração de que os governos servem para
conduzir ao bem e punir o mal é o que legitima a afirmação de que são
instituídos por Deus. A mesma ideia aparece no livro Sabedoria (6,1-11) , no qual
se diz que o Senhor é quem dá o domínio aos governos (v.3), mas estes devem
servir ao Reino de Deus (v.4), pois se não o fizerem serão punidos (v.5).
Então, em Rm 13 Paulo não está interessado em falar das autoridades que não
seguem sua vocação de serem promotores da justiça, mas em apresentar o plano
original das autoridades, o que legitima o pagamento de impostos.
Conseguintemente, qualquer autoridade que seja injusta, corrupta ou
desumanizadora não é legítima, porque não está seguindo o estabelecido por Deus
para sua vocação.
O
apóstolo simplesmente constrói sua argumentação seguindo um princípio
teológico: “Deus governa este mundo em oposição aos tiranos e a pesar deles
mesmos” [Uwe Wegner - RIBLA 4] . O texto bíblico preocupa-se em defender o pagamento
de impostos e tributos por consciência e liberdade, como um bom cidadão, e não
por medo de punição ou imposição (v.5-7). Por sua vez, só é possível entender
essa discussão lendo o contexto de generalização e idealização. O governo
estabelecido por Deus e promotor da justiça é digno de receber os tributos,
como ministro de Deus (v.4). Assim, deve-se honrar ou resistir à luz do quanto
se adéqua ao projeto idealizado para as autoridades. Consequentemente,
resistência e honra devem ser observadas e aplicadas a partir do contexto da
materialização ou não do propósito da instituição estabelecida por Deus. Assim,
percebe-se aqui o interesse pastoral paulino com a participação cívica da
igreja.
Ainda,
no contexto que precede Rm 13,1-7 (Rm 12, 9.17.21) está em jogo a prática do
bem, que aqui pode ser realizada na justa participação civil de pagamento de
tributos e, como contrapartida, o governo exercer com equidade sua função de
estabelecimento do projeto exposto em Rm 13.3-4. O papel do governo é imunizar
o povo das ações desumanizadoras e injustas. Nessa liderança idealizada, quem
pratica o mal precisa temer as autoridades; enquanto os bons e justos,
honrarem-na. Nesse sentido, a melhor interpretação dessa discussão paulina não
é defender a aceitação de qualquer ação governamental, como se Paulo estivesse
anulando a crítica profética. Pelo contrário, em sua parénese ele defende a
participação cidadã consciente e livre pelo bem social. Além disso, não é
possível afirmar que o texto nega a oposição política adequada aos governos e
autoridades que não cumpram seu papel no serviço estabelecido por Deus.
Assim,
como – por incrível que pareça – fez Janaina Pascoal, deputada do PSL,
precisamos nos perguntar “se um presidente da república na plenitude de suas
faculdades mentais publicaria um vídeo desses”. Eu estenderia a pergunta da
nobre deputada, a mesma que pediu o impeachment da Dilma e antiga defensora do
Bolso, se os evangélicos desse país cairão nessa insanidade e se permitirão ser
usados sob a tutela de desonestas leituras da Bíblia.
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