terça-feira, 21 de maio de 2019

“TODA AUTORIDADE GOVERNAMENTAL VEM DE DEUS”. ISSO SIGNIFICA LEGITIMAR QUALQUER GOVERNO?




Entre as suas últimas publicações, o presidente divulgou um vídeo no qual o pastor congolês Steve Kunda exorta o Brasil a aceitá-lo (Bolsonaro) como enviado ou empoçado por Deus. Por isso, não deveríamos, disse o pastor, criticá-lo, mas simplesmente aceitar a soberana vontade do Senhor. Essa afirmação, entre tantos outros problemas, tenta criar em torno do presidente uma redoma divina, desqualificando qualquer crítica ou oposição, porque significaria ser contra o próprio Deus. O cinismo antidemocrático dessa publicação ecoa o uso desonesto de uma série de textos bíblicos e discursos teológicos, os quais, por vezes, são aplicados aos pastores e pastoras que buscam neutralizar pelo medo qualquer objeção. Contudo, quando a mesma estratégia é instrumentalizada pelo representante da República, estamos diante de grande ameaça à democracia e legitimação religiosa do autoritarismo contra o Estado Democrático de Direito. Um texto não citado pelo bispo congolês, mas presente nas memórias de seu discurso é Rm13. Quero aqui esclarecer alguns detalhes sobre essa passagem bíblica, o que impedirá ser usada de base para desarranjos e malabarismos contra a democracia.

Em Romanos 13.1 lemos: “Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas”. Essas palavras precisam ser lidas à luz da estrutura política romana. Paulo não presumia relações democráticas no Império, mas tratou pastoralmente a maneira como os cristãos deveriam lidar com a tarefa de vivenciar a fé no mundo estabelecido sob a égide imperial. Vejamos o texto. O apóstolo começa, de maneira abrupta, depois de discutir sobre as relações pessoais (Rm 12.21), afirmando que “toda alma” (pâsa psyché), referindo-se a todas as pessoas, deveria se “subordinar”. O verbo hupotásso tem sentido de ação livre em relação a alguma coisa. A submissão aqui é aplicada às autoridades constituídas. Paulo diz que toda e qualquer autoridade é estabelecida por Deus seguindo algumas tradições judaicas (Dn 2.21; Is 41.2ss; Pr 8.15; Eclo 17.7; Pr 8,15-16). No entanto, ele também diz: “é instrumento de Deus para estabelecer o bem” (v.4). Esta última afirmação precisa ser lida como uma “generalização” ladeada por “idealização”. Ou seja, em termos ideias as autoridades estão a serviço da promoção do bem. E quando o contrário acontece, como no Nazismo, por exemplo?

A ideia é a seguinte: ora, se a origem das autoridades é divina, logo esta estará sempre a serviço do bem e qualquer que se atrever questioná-la será contrário aos desígnios divinos (v.2). Isso quer dizer que Paulo desconhecia autoridades que descumprem esta função ideal? Pelo contrário, em 1Co 6,1-11 ele tece críticas aos juízes injustos. Contudo, em Rm 13 ele não leva em consideração o desvio desse projeto ideal, mas estabelece o que é em termos paradigmáticos – ou seja, ele parte do modelo previsto para as autoridades. Por isso, esse texto não pode ser usado como instrumento de aceitação passiva diante de lideranças autoritárias e injustas, ou para desqualificação, por exemplo, da luta contra as ditaduras. Só há espaço para essa perigosa interpretação se lermos os versos 1-2 separando-os dos versos 3-4. A abstração de que os governos servem para conduzir ao bem e punir o mal é o que legitima a afirmação de que são instituídos por Deus. A mesma ideia aparece no livro Sabedoria (6,1-11) , no qual se diz que o Senhor é quem dá o domínio aos governos (v.3), mas estes devem servir ao Reino de Deus (v.4), pois se não o fizerem serão punidos (v.5). Então, em Rm 13 Paulo não está interessado em falar das autoridades que não seguem sua vocação de serem promotores da justiça, mas em apresentar o plano original das autoridades, o que legitima o pagamento de impostos. Conseguintemente, qualquer autoridade que seja injusta, corrupta ou desumanizadora não é legítima, porque não está seguindo o estabelecido por Deus para sua vocação.

O apóstolo simplesmente constrói sua argumentação seguindo um princípio teológico: “Deus governa este mundo em oposição aos tiranos e a pesar deles mesmos” [Uwe Wegner - RIBLA 4] . O texto bíblico preocupa-se em defender o pagamento de impostos e tributos por consciência e liberdade, como um bom cidadão, e não por medo de punição ou imposição (v.5-7). Por sua vez, só é possível entender essa discussão lendo o contexto de generalização e idealização. O governo estabelecido por Deus e promotor da justiça é digno de receber os tributos, como ministro de Deus (v.4). Assim, deve-se honrar ou resistir à luz do quanto se adéqua ao projeto idealizado para as autoridades. Consequentemente, resistência e honra devem ser observadas e aplicadas a partir do contexto da materialização ou não do propósito da instituição estabelecida por Deus. Assim, percebe-se aqui o interesse pastoral paulino com a participação cívica da igreja.

Ainda, no contexto que precede Rm 13,1-7 (Rm 12, 9.17.21) está em jogo a prática do bem, que aqui pode ser realizada na justa participação civil de pagamento de tributos e, como contrapartida, o governo exercer com equidade sua função de estabelecimento do projeto exposto em Rm 13.3-4. O papel do governo é imunizar o povo das ações desumanizadoras e injustas. Nessa liderança idealizada, quem pratica o mal precisa temer as autoridades; enquanto os bons e justos, honrarem-na. Nesse sentido, a melhor interpretação dessa discussão paulina não é defender a aceitação de qualquer ação governamental, como se Paulo estivesse anulando a crítica profética. Pelo contrário, em sua parénese ele defende a participação cidadã consciente e livre pelo bem social. Além disso, não é possível afirmar que o texto nega a oposição política adequada aos governos e autoridades que não cumpram seu papel no serviço estabelecido por Deus.

Assim, como – por incrível que pareça – fez Janaina Pascoal, deputada do PSL, precisamos nos perguntar “se um presidente da república na plenitude de suas faculdades mentais publicaria um vídeo desses”. Eu estenderia a pergunta da nobre deputada, a mesma que pediu o impeachment da Dilma e antiga defensora do Bolso, se os evangélicos desse país cairão nessa insanidade e se permitirão ser usados sob a tutela de desonestas leituras da Bíblia.

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