O Apocalipse de João foi
interpretado de várias maneiras. Na tradição futurista, comum entre os
dispensacionalistas, as trombetas, taças, selos, monstros, mortes e demais
imagens preservadas no texto são lidas como eventos da história da Igreja ou,
em grande parte, presságios do fim dos tempos. Mesmo importante entre tantas
denominações, essa perspectiva acaba perdendo de vista, ou eufemiza, a dura
crítica do visionário. Seguindo tantas pesquisas já bem estabelecidas, o
contexto do Império Romano, sob a égide de Domiciano, é uma boa hipótese para
compreensão na narrativa apocalíptica. Sem negar seu caráter “por vir”, há
tantos indícios no próprio texto que mesmo os futuristas admitirão o primeiro
nível de compreensão. Hermeneuticamente, a perspectiva do texto como denúncia
ao discurso imperial e sua falsa paz, Pax Romana, serve-nos ótimos óculos para
interpretação e leitura contextual. Mais do que fonte de antecipação para
eventos futuros, esse horizonte ajuda-nos analisar, à luz das Escrituras, a
relação da igreja brasileira com o Estado.
Entre os textos do Apocalipse,
o capítulo 13 é o mais instigante. Na tarefa de entendê-lo, precisamos dar uma
olhada na narrativa anterior, Ap 12, no qual aparece uma mulher vestida de sol
com a lua nos pés. Ela estava para dar à luz. Inesperadamente, aparece um
Dragão, com sete cabeças, dez chifres... horrível! O ser caótico desejava
devorar o filho da mulher cósmica, mas antes disso Deus o arrebatou para o
trono. Na mesma parte, outra cena é pintada. Há uma briga no céu entre Miguel e
os anjos contra o Dragão. Chamado de antiga serpente, Diabo e Satanás, ele cai
precipitado na terra, quando volta a perseguir a mulher e seu filho. Novamente
seu intento violente é frustrado. Contudo, João informa que agora suas forças
seriam canalizadas contra os seguidores de Jesus, talvez por serem os
representantes da criança livrada. Entenda, o visionário está descrevendo sua
experiência e indicando as características do demoníaco para serem capazes de
resistir e habilidosamente discerni-lo quando despontasse. Ele está
preparando-nos para o cap.13 e mostrará onde o encontraremos. Deixe-me explicar
algo. Hoje em dia não defendemos nas pesquisas a teoria da perseguição. É o
contrário. Com as cartas enviadas às igrejas da Ásia, percebemos que as
comunidades viviam certas benesses e estavam felizes no império (“rico sou e de
nada preciso... [Ap 3.17]”, lembra?) . Todavia, João percebeu esse risco e
alertou as igrejas e lideranças a respeito dos perigos dessa relação e desnudou
a falsidade do discurso de paz veiculado pelo Império, porque negava princípios
básicos da fé anunciada pelo Cordeiro.
Bom, agora podemos ler o
capítulo 13. Se olharmos com cuidado veremos a descrição de duas bestas: do mar
e da terra. A primeira condensa em si todas as características dos animais de
Dn 7. Ou seja, ela reúne as mazelas e monstruosidades dos reinos contrários a
Deus na história. Por sua vez, a segunda besta está a serviço da primeira e
leva o povo à adoração idólatra e aceitarem-na como digna de valor religioso.
Seus sinais e linguagem seduzem alguns das igrejas. Eles recebem uma
identificação de pertencimento e sem a marca não entrariam no necessário
sistema de compra e venda. Dentro dessa densa descrição, quando a primeira
besta é descrita, lemos em Ap 13 uma informação fundamental, o que coloca João
no lugar de enfrentamento direto: “E deu-lhe o Dragão o seu poder, seu trono e
sua autoridade”. Pasmem, o Apocalíptico está chamando o sistema imperial de
representante do Dragão, do próprio antagonista de Deus e do Cordeiro! Não
menos perigosa é a besta da terra, porque ela tem aparência de cordeiro, mas na
realidade é eco do Dragão e está a serviço da primeira Besta.
Não sei se você percebeu, mas
João desconfia do Estado. Mesmo se auto-afirmando como promotor de paz, os
indícios sociais e a revelação denunciam para o visionário o engodo da relação
espúria entre religião e Besta, Igreja e Estado. Deus mostrou ao profeta os
indícios, ações e práticas do Império contrários ao projeto de Jesus. O
visionário percebeu que a violência era maquiada por um discurso de paz, suas
taças estavam cheias de sangue e a balança desigual. No entanto, os benefícios
e trocas cegavam os seguidores de Jesus na Ásia, amordaçavam a denúncia dos
crimes e impediam a igreja de se afastar. Alguns não tinham manchado suas
roupas, mas muitos sucumbiram e foram seduzidos. Se levarmos a sério o
Apocalipse de João, encontramos importantes advertências: 1. não é possível
seguir o cordeiro sem desconfiar do Estado; 2. cuidado, não deixe os benefícios
do sistema político favorável cegarem-no a ponto de passarem desapercebidamente
os indícios de projetos contrários ao evangelho; 3. a única relação entre
igreja e Estado é a profética.
E a marcha para Jesus desta
semana em SP? Eu vi pastores e pastoras ovacionarem e conduzirem a multidão aos
pés do Estado que usa o símbolo de uma arma em punho como parte de sua proposta
e imagem. Assisti consternado, a Igreja e seus líderes, no meio de louvores e
culto, em gritos, repetirem o slogan de um projeto político partidário por
vezes cheio de violência. Ouvi chamarem de mito um político e fizeram do
púlpito palanque – interessante, o dragão está presente em vários mitos
cosmogônicos do Mundo Antigo.
Não se engane, quando a igreja
perde seu lugar profético e se mistura com o Estado, seja por inocência ou
desejo de poder, os pastores se tornam representantes da Besta e os membros
candidatos a serem marcados por ela.
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