terça-feira, 20 de julho de 2010

Anjos aprisionados em Judas 6 e sua relação com 2 Pedro 2,4: outras leituras à luz de 1 Enoque (Parte I)

fragmento de 1 Enoque

No post anterior apresentei uma possibilidade de leitura para 1 Pedro 3, 19-22. Ao perceber a relação dialógica entre a perícope petrina e 1 Enoque, texto apocalíptico do Judaísmo do segundo templo, dei um pontapé inicial para a leitura de outros textos a partir da mesma perspectiva.

Como tudo no Brasil chega atrasado, pelo menos na academia, a pesquisa ao corpus literário da apocalíptica judaica do segundo templo é algo novo para nós, enquanto na exegese européia e norte-americana há anos já se investiga a importância desse grupo de textos para leitura do Novo Testamento

No entanto, essa perspectiva para aproximação hermenêutica precisa ser cuidadosa, pois podemos cair em equívocos iguais aos da obra de R. C. Charles, que se por um lado foi um grande avanço para as pesquisas em 1 Enoque, porque o tornou mais acessíveis ao traduzi-lo para o inglês, por outro lado não se livrou dos exageros, pois na sua introdução indicou em quase todos os textos do Novo Testamento alguma influência ou citação direta ou não da literatura apocalíptica de Enoque [1]. O exegeta estadunidense J. Vanderkam, especialista em literatura enoquita e neotestamentária, sinalizou muito bem os excessos de Charles: "Charles encontra dois tipos de evidências nos escritos do Novo Testamento: passagens em que sua fraseologia ou idéia dependem ou são ilustrativas de passagens relacionadas a 1 Enoque e doutrinas de 1 Enoque que poderiam ter moldado os ensinamentos do Novo Testamento. Mas essa lista é enganosa, porque somente um pequeno número de seus paralelos soma sérios candidatos para direta ou até indireta influência (...). Charles pode ter acertado ao afirmar que alguns escritos do Novo Testamento foram influenciados por 1 Enoque, mas somente em alguns casos podemos dizer com confiança que de alguma forma o Novo Testamento apresenta influência dos item ou tema de 1Enoque" .

Levando em consideração as críticas de Vanderkam, que por sinal são muito relevantes, para pensarmos o ambiente, o contexto e o mundo de onde surge a literatura neotestamentária, precisamos ler cuidadosamente esse grupo de textos.

Atualmente – que não é tão atual assim – após as descobertas de vários manuscritos na região do Mar Morto, em Qumran, a preocupação com essa literatura aumentou. No começo houve muito sensacionalismo, mas no decorrera das publicações dos manuscritos e do acesso por melhores e mais sérios pesquisadores, descortinou-se o “ar” que dava vida ao imaginário religioso da palestina e do judaísmo do período neotestamentário.

Em relação à obra 1 Enoque, já apresentada superficialmente no post anterior, sua importância para o Cristianismo é quase inquestionável, pois há, por incrível que pareça, na sua lista canônica até mesmo uma citação direta ao livro enoquita (Jd 14-15). A influência – que não somente pressupõe uma utilização material duma cópia do texto enoquita, mas também de apropriação e presença imaginária – da literatura apocalíptica na epistola de Judas levou o importante pesquisador G. Nickelsburg afirmar que “a epístola de Judas tem especial aproximação com o enoquismo e outras tradições não canônicas” [3]. Entre as “outras tradições não canônicas”, além da enoquita, está o também apocalipse judaico conhecido como Assunção de Moisés, citado no verso 9: “E, no entanto, o arcanjo Miguel, quando disputava com o diabo, discutindo a respeito do corpo de Moisés, não se atreveu a pronunciar uma sentença injuriosa contra ele, mas limitou-se a dizer: ‘O Senhor te repreenda!’”.

R. Bauckham, tento a mesma impressão de Nickelsburg, é mais radical e conclui que o autor de Judas poderia pertencer a um círculo apocalíptico da palestina [4], por isso o interesse por esses livros judaicos do terceiro e segundo séculos antes da era comum.

Ainda mais interessante é a presença do tema de anjos aprisionados em Judas 6, o qual está em intima relação com 2 Pedro 2, 4-5 cujas imagens remetem, também, nosso olhar para o texto de 1 Enoque. Por agora, basta-nos essa explicação prévia para que no próximo post eu apresente detalhadamente esse tema nas duas epistolas e sua relação com a literatura enoquita...



[1] CHARLES, R. H. The Book of Enoch or I Enoch. Oxford, Clarendon, 1912 (em especial o capítulo “The Influence of 1 Enoch on the New Testament”). Em sua obra de dois volumes com tradução e introdução à literatura pseudepígrafa e apócrifa do Antigo Testamento, no volume II, no qual apresenta o livro de 1 Enoque, ele acrescentou o tópico citado de sua obra de 1912, mas como um novo título: “Influence on New Testament Doctrine”, mostrando outros tipos de influências. Cf. CHARLES, R. H. Apocrypha and Pseudepigrapha Of The Old Testament. Vol. II. Oxford, Clarendon, 1913. p. 182.

[2] VANDERKAM, James C. Enoch, a Man for All Generations. Columbia, University of South Carolina Press, 1995. p. 170.

[3] NICKELSBURG, George W. E. 1 Enoch: a Commentary on the Book of 1 Enoch, chapters 1-36; 81-108. Minneapolis, Fortress, 2001. p. 86.

[4] BAUCKHAM, R. Jude, Epistle of. In: FREEDMAN, D. N. Anchor Bible Dictionary. New York, Doubleday, 1992. p. 1102.

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