quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Como assim “essa gente incômoda”? Sobre o artigo da Veja.


Nestas últimas semanas, as mídias sociais foram bombardeadas por uma enxurrada de respostas ao artigo “Essa gente incômoda”, publicado pela revista Veja e assinado por J.R Guzzo. Ao lê-lo e, ao mesmo tempo, acessar as críticas, inclusive de instituições denominacionais (A CGADB publicou uma nota oficial a respeito), fiquei me perguntando se estavam falando do mesmo texto. Pensei: nossos irmãos não leram o texto inteiro ou temos sérios problemas de interpretação morfossintática! A primeira opção não deve ser descartada, pois o artigo só foi disponibilizado para assinantes, e é possível que isso tenha gerado manifestações apologéticas precipitadas. Se a segunda for a melhor opção, infelizmente, necessitamos dar a mão à palmatória e avaliarmos o nosso nível de leitura, compreensão de texto ou, até mesmo, enrijecimento destemperado, típico de “gato escaldado com medo de água” – e não sem motivos, porque, como o próprio texto mostra, por vezes há generalizações rasas em relação ao multifacetado movimento evangélico brasileiro. Independentemente das possíveis razões para esse frenesi, desejo interpretar o tal artigo rapidamente (para não ser, também, mal compreendido, porque quem fala muito acaba não sendo lido integralmente).
Antes de qualquer coisa, precisamos entender que o autor do artigo usa a ironia, a interdiscursividade (ecoa os discursos dos quais critica) e aplica uma linguagem ambígua, para tornar o texto mais atrativo, polêmico e vendável (não se esqueçam de que a revista, mesmo online, é paga!). Fazendo isso, correu o risco de ser interpretado precipitadamente, especialmente ao usar (entre aspas) as falas dos preconceituosos que ele mesmo satiriza, abrindo portas para confundirem o discurso dos interlocutores com o dele – aqui está o principal ponto de tensão com os evangélicos ofendidos. Sem mais delongas, vamos ao conteúdo da reportagem.
O artigo é dividido nitidamente em duas partes. Os dois primeiros parágrafos são introduzidos por uma afirmação cujo desenvolvimento acontece logo em seguida. Guzzo vaticina, mesmo que sem muitas bases acadêmicas, que os evangélicos brasileiros são alvo de preconceito e isso revela a fragilização da liberdade religiosa brasileira. Para um país democrático e laico, confessar esse tipo de postura é vergonhoso, mesmo porque os por ele denunciados dessa ardil perspectiva se acham o mainstream da intelectualidade nacional. Em suma, quem são esses contrários à liberdade religiosa? Guzzo os chama de “classes mais altas” e “consideradas as mais civilizadas”. Perceba, quando ele diz “consideradas” não está confirmando tal afirmação, mas indica o que pensam sobre si mesmos. A partir daí ele começa uma série de ironias zombando da arrogância desses paladinos da intelectualidade brasileira. Guzzo apresenta como essa classe trata os evangélicos: desprezo, irritação e antipatia. Por favor, entenda, o autor não está dizendo que os evangélicos sejam isso, mas refere-se aos supostos intelectuais como portadores dessa percepção. O artigo, mesmo sendo mal interpretado, denuncia esses supostos “civilizados” como ignorantes e preconceituosos. Basta continuar a leitura para compreendermos sua ironia. Essa classe arrota que são “mais ricos, mais instruídos, mais viajados, mais capacitados a discutir política, cultura e temas nacionais”. Por isso, ele usa ironicamente as expressões “sabe-se” e “são geralmente descritos assim”. Leia com cuidado, porque a imagem descrita dos intolerantes é uma caricatura arrogante deles mesmos e quando se refere aos evangélicos o texto usa a mesma estratégia literária: apresentar caricaturas. Ou seja, quando ele fala desse “povo, em grande parte do ‘tipo moreno’, ou ‘brasileiro’, vem sendo visto com horror crescente pela gente de bem do Brasil”, e coloca entre aspas “moreno” e “brasileiro”, está ecoando a maneira como essa suposta elite interpreta os evangélicos. Aqui, mostra-se o racismo desse grupo preconceituoso, o qual descredencia os evangélicos não somente por serem vistos como retrógrados, mas, também, por serem identificados como pobres e negros. Além disso, o texto revela esse preconceito como um sintoma de ódio ao próprio Brasil, porque o país é multicultural e mestiço. Essa elite é, consequentemente, à luz da argumentação do texto, negadora da própria brasilidade, cujo desejo é uma nação inexistente, a imagem e semelhança deles mesmos. Primeiramente, o autor com essa fala não diz concordar com essa imagem, mas é a elite preconceituosa que assim o faz. E mesmo que seja, no fundo, a sua opinião, o autor esconde discretamente e é hipócrita o bastante para criticar os preconceituosos por ele apontados. Por isso, não é possível, com justiça, acusá-lo disso. Segundo, os evangélicos serem em sua maioria pobres e negros não é um demérito na perspectiva do autor, mas para a elite preconceituosa. A canção As Caravanas (2017) de Chico Buarque faz o mesmo, descreve criticamente usando a linguagem dos preconceituosos, a caricatura das elites cariocas em relação às comunidades que descem dos morros para partilharem os espaços nas praias da cidade maravilhosa. Guzzo afirma que “nada é tão fácil de perceber quanto um preconceito que se pretende bem disfarçado”. Ele chega a denunciar a própria mídia como parte desse grupo: “Os meios de comunicação, por exemplo, raramente conseguem escrever ou dizer a palavra ‘evangélico’ sem colocar por perto alguma coisa que signifique ‘ameaça’, ‘medo’ ou ‘perigo’”.
O texto mostrará, ainda, as outras razões do preconceito enraizado na leitura desses que se acham “povo de bem”. Novamente, entenda, Guzzo não diz que ele e/ou esse grupo seja/am o povo de bem. Isso é uma ironia! Como às vezes dizemos para um amigo arrogante: “diga ai sabichão“. Quando usamos essa estratégia discursiva não estamos afirmando que ele seja sábio (“sabichão”), mas o contrário. Se esse grupo preconceituoso trata os evangélicos como minoria conservadora, o autor deixa claro que hoje em dia eles são uma grande parcela do povo brasileiro. Por isso, a bancada evangélica, alvo das duras críticas desses intelectuais citados no artigo, não representa uma minoria fora de lugar, como querem os satirizados pelo autor na revista. O artigo fala duas coisas sobre isso. Primeira, os parlamentares são tratados como um corpo estranho e unitário. Quando se afirma “São tratados como uma coisa só — e ruim”, critica-se a pouca informação dos acusadores preconceituosos, porque pensam que os políticos evangélicos são todos iguais e ruins. Segunda coisa, para o autor o Brasil de primeiro mundo, e ele coloca entre aspas, progressista e bem avançado nas pautas citadas (“matéria de família, sexo, crime, polícia, drogas, educação, moral, propriedade privada e mais umas trezentas outras coisas”) é uma ilusão de ótica desses grupos preconceituosos. Em suma, o conservadorismo evangélico – para o autor nem todos são assim e tratar de maneira generalizada é um dos erros dessa elite –, não é coisa de evangélico, porque em geral a nação é conservadora em relação a esses temas. Para tais intelectuais progressistas, segundo o autor, os evangélicos são inconvenientes, porque atrapalham o bom andamento do Brasil por eles idealizado. Contudo, Guzzo coloca-os na realidade e diz: o brasileiro é assim, pensa dessa forma, vota dessa maneira. Consequentemente, o próprio Brasil, então, é inconveniente. Como o texto diz, “[...]. Ou seja: o problema dos evangélicos está nas suas convicções como cidadãos. No fundo, é a mesma história de sempre. O que atrapalha o Brasil, na visão das pessoas que se consideram capacitadas a pensar, são os brasileiros. O povo brasileiro, de fato, é muitas vezes inconveniente — principalmente quando vota. Os intelectuais, preocupados, lamentam o crescimento da bancada evangélica — mas raramente se lembram de que ela só cresce porque cresce o número de eleitores evangélicos”. Esses evangélicos, na verdade, diria o autor, compõem o Brasil, querendo eles ou não. Quando usa a expressão “pode ser uma pena”, está mais uma vez jogando com a maneira desses supostos intelectuais tratarem as coisas. Como se dissesse: sendo bom ou não, os evangélicos representam uma grande parcela do Brasil. Desta forma, para o autor, o Brasil é isso também, ou mais isso do que qualquer outra coisa. Não dá para saber se Guzzo se sente incomodado com essa força evangélica. Isso é ir muito além do texto. A única coisa deixada para nossa leitura é a afirmação da necessidade de aceitação da realidade do crescimento evangélico, dado incômodo não para ele, mas para esses criticados no artigo. É como se os intelectuais indicados esperassem ingenuamente outra realidade. Aqui podemos fazer uma pequena crítica. O autor se esqueceu de dizer com mais exatidão a respeito da presença de políticos e pastores progressistas. Contudo, entendo que ele deseja gastar tempo mostrando a pouca habilidade democrática desses preconceituosos. E, se querem um país plural precisam aceitar a presença de grupos com posturas não progressistas. Aqui, pelo histórico da revista Veja, essa parte do mundo evangélico se adequa mais à pauta editorial do que as elites criticadas na postagem.
Na segundo parte do artigo, para dar ar de imparcialidade, Guzzo expõem alguns problemas públicos do mundo evangélico. Com exemplos, ele indicará como, por vezes, as igrejas evangélicas se portam de maneira estranha e repreensível. Para isso, cita algumas fraudes: “Pastores, bispos e outros peixes graúdos tomam dinheiro dos fiéis, sob a forma de donativos, em troca de ofertas a que obviamente não podem atender: desaparecimento de dívidas, expulsão de demônios, cura de doenças, enriquecimento rápido, eliminação do alcoolismo, dependência de drogas e outros vícios — enfim, qualquer milagre que possa ser negociado. Diversas igrejas se transformaram em organizações milionárias, e muitos dos seus líderes são charlatães notórios — alguns deles, aliás, já chegaram a ser presos por delitos variados em viagens ao exterior. Estão acima do Código Penal e da Lei das Contravenções em matéria de fraude, trapaça e quaisquer outras formas de estelionato”. Como pastor e inserido entre os evangélicos, sei que todas essas acusações, em vários casos, são verdadeiras; ou você nunca leu no jornal ou presenciou alguma ação desonesta em ambiente eclesiástico? Mas isso é afirmar que todas as igrejas são assim? NÃO, claro que não! É exatamente esse cuidado que o texto tem. Guzzo indica alguns vacilos históricos midiaticamente conhecidos de líderes e instituições, mas afirma que “[...]. São o joio no meio do trigo”. E, ainda, querendo ou não, os privilégios jurídicos das instituições religiosas facilitam essas manobras. No entanto, ele, novamente, discreto o bastante para não mostrar-se contra tais conquistas jurídicas, somente afirma, por ser um assunto complexo, que “ninguém realmente sabe o que fazer de prático a respeito disso”. Talvez, você se incomode com a frase “há tanto joio nas igrejas evangélicas que fica difícil, muitas vezes, achar o trigo”. Avalie, ele não é evangélico e nos conhece superficialmente. Seja por preconceito ou por precipitação, alguém de fora chegar a essa conclusão deveria gerar em nós reflexão e descontentamento em relação a alguns erros cometidos. Infelizmente, e digo com consternação, a imagem criada publicamente por nós evangélicos não é muito oportuna. E ele, mesmo vivendo para além dos muros do arraial evangélico, conclui ser uma escolha pessoal ir ou não a igreja, dar ou não dinheiro, aceitar ou não as promessas por vezes mirabolantes de pregadores apoteóticos etc. Achei isso democrático e responsável. Os que são “trigo” e não podem ser contados entre essa lista de ações desonrosas não se sentirão caluniados. Pelo contrário, farão coro e denunciarão tais mazelas.
Por fim, Guzzo novamente ironiza essa classe preconceituosa. Mesmo supostamente progressista e democrática, seus componentes são capazes de desejarem o sumiço daqueles que desagradam. Para ser ainda mais duro, ele deixa de lado as meias palavras e faz uma amarga crítica: “É duro, mas o fato é que, num momento em que apoiar a diversidade passou a ser a maior virtude que um cidadão pode ter, fica complicado sustentar que no caso dos evangélicos a diversidade não se aplica”. Assim, o artigo joga na cara dos preconceituosos sua hipocrisia, porque desejam ser aceitos em suas expressões por vezes vistas com incômodas, e chamam de conservadores seus antagonistas, mas quando é a vez desses serem tolerantes e democráticos, mostram sua face nitidamente intolerante. E, para terminar como começou, zomba com a paciência desses grupos preconceituosos: “Em todo caso, para quem não gosta dessas realidades, é bom saber que os evangélicos, muito provavelmente, são um problema sem solução”. Esses são um problema para quem? Para o autor? Claro que não! Eles são incômodos para essa elite intelectual citada pelo artigo.
Ao contrário da interpretação rápida de alguns, o texto está zombando não dos evangélicos, mas da elite supostamente intelectualizada. Para os evangélicos conservadores, essas palavras não são desrespeitosas, porque garantem a eles o direito de pensarem, defenderem e votarem do jeito que desejarem. Por outro lado, os evangélicos mais progressistas poderiam se ofender por pelo menos duas razões. Não serem lembrados no texto e, talvez, colocados entre as elitistas intolerantes. Na verdade, o grande problema nesse rebuliço todo foi a má interpretação do gênero ironia, uma estratégia literária muito difícil de ser discernida e cheia de labirintos semânticos, os quais se tornam insuperáveis quando estamos com pressa ou complexados.
Ainda, é preciso destacar que a publicação não está falando dos progressistas abertos ao diálogo ou até mesmo dos evangélicos filiados às pautas não conservadoras; nem sei bem se ele conhece esse outro lado da moeda. Além disso, com um olhar mais acurado, é possível perceber que os progressistas são os mais atacados no texto. Ainda, é possível encontrar indícios no artigo que denunciam, inclusive, sua filiação conservadora e não o contrário. No entanto, essa é outra discussão...   
      
                    


terça-feira, 4 de abril de 2017

Análise do documentário “O Diálogo Entre Fé Cristã e Ciência no Brasil” (ABC²)

Assisti esta semana, mais de uma vez, ao documentário “O Diálogo Entre Fé Cristã e Ciência no Brasil”, produzido pela Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²). Estava ansioso para vê-lo, porque ao ouvir alguns dos membros da ABC² a respeito do lançamento do vídeo, vislumbrei uma proposta que trataria desse tema já privilegiado com diversos livros e produções seguindo outro caminho, menos repetitivo. Fiquei muito curioso, especialmente, para saber como avaliariam os trabalhos, descobertas e realizações das ciências modernas e os estudos bíblicos. Esse meu interesse se deu porque imaginava um documentário que sairia do lugar comum da tentativa de adequar as informações, visão de mundo e compreensão das relações humanas encontradas na Bíblia às expectativas da (s) ciência (s) – inclusive, esse caminho é seguido para se confirmar a dignidade e confiabilidade das Escrituras. Por isso, posso afirmar, sem cinismo, que minhas expectativas eram as melhores.

Quando acessei o vídeo, logo no primeiro contato fiquei um pouco decepcionado com o tempo do documentário, um pouco mais de 29min – se esse não é o documento todo e há outra versão completa, não leve em consideração a maioria das ponderações a seguir. Pelo que tenho acompanhado das falas e textos de alguns dos responsáveis pelo documentário, ou ao menos daqueles com presença constante no vídeo, o diálogo “ciência e fé” é parte importante das suas preocupações. Por essa razão, esperava um material mais denso e com menos divagações. Talvez, o uso do gênero vídeo de youtube tenha forçado produzir um documentário com conteúdo menos enfadonho e curto pensando nos consumidores com pouco tempo.

Deixando de lado as minhas primeiras impressões, quero apresentar algumas reações ao documentário, as quais podem ser consideradas como questões iniciais:

1. No final do documentário fica uma sensação estranha de que o vídeo não chega (ou não trata de maneira direta) ao centro de sua maior questão: o (danado) diálogo entre “ciência e fé”. É repetido por diversos entrevistados que há uma necessidade urgente da aproximação, do diálogo, da ponte etc. Mas, no frigir dos ovos, não se indica, nem se rascunha, como seria esse diálogo, os espaços para sua realização, quais tipos de dificuldades devem ser vencidas em termos de método e aplicação de referenciais teóricos etc. Não há sequer um exemplo prático dessa tentativa. E, pensando no discurso do texto, seguindo a escola francesa de Análise do Discurso , percebe-se, pelo menos em dois ou três momentos do vídeo, a identificação (defesa) dos membros do ABC² como personagens aptos para serem os protagonistas do diálogo indicado no título do documentário. É possível se ler isso quando a voz narrativa do vídeo repete por várias vezes o mote da atual necessidade de cientistas e/ou pensadores cristãos capacitados e proeminentes cumprirem a missão do diálogo “ciência e fé”, e, concomitantemente, no mesmo enquadramento voz-imagem, aparecerem os membros desde grupo falando ou em performance de reunião. Essa minha intuição não desqualifica a afirmação que subjaz dessa análise das imagens e narrador. Creio, inclusive, na capacidade do grupo, mas me parece que se gastou menos tempo com a maneira como esse diálogo poderia ser feito do que apontando aqueles com as condições aprovadas para realização de tal tarefa.

2. Outro ponto que me levou a pensar foi o recorte para caracterizar o “científico”. Fiquei com a impressão de que para o diálogo com a fé somente as ciências naturais, ou duras (para usar uma expressão sem unanimidade), podem entrar na roda da conversa, deixando-se de lado as ciências humanas e sociais. Isso não é periférico, porque muitas pesquisas relacionadas ao comportamento humano, formação e funcionamento da cultura, relações de gênero etc. são espinhos para algumas percepções religiosas e, especialmente, quando tentam aproximá-las às perspectivas bíblicas com suas propostas, por vezes, vinculadas ao imaginário, compreensão de mundo e relações sociais do Mundo Antigo. Aqui chegamos ao link para a discussão relacionada às Escrituras e a maneira como o documentário trata esse assunto.

3. Uma afirmação que perpassa o conteúdo do vídeo – afirmação que gosto muito, especialmente por sua beleza poética – é de que as descobertas a respeito do funcionamento do cosmos, dos movimentos da natureza e o descortinar da dinâmica da vida natural revelam a grandeza e sabedoria de Deus, que é o Arquiteto de tudo isso. Nesse sentido, compreender a criação é ver a beleza do seu Criador. Ótimo, fiquei muito tocado. Contudo, essa concepção só é possível com o pressuposto criacionista e cristão, o que talvez não tocaria muito ou faria sentido para um cientista que está mais disposto em compreender o movimento dos astros e seu funcionamento do que saltar para o reconhecimento de que a divindade é causa de tudo isso. Mesmo que revele uma Inteligência original, não sei bem se nossos pares de discussão teriam sensibilidade ou isso estaria em sua agenda. Claro que para os homens e mulheres da fé esta proposta faria muito sentido e contribuiria com sua experiência de Deus, o que seria difícil esperar de cientistas não religiosos.

4. Seguindo o raciocínio do ponto 3, que é continuidade do link do ponto 2, brota-me uma pergunta: e quando essa compreensão do funcionamento natural for de encontro ou não se adequar exatamente à maneira como a Bíblia pensa o mundo ou imagina a organização do cosmos? Um dos entrevistados responde que a “ciência é o que se sabe até aqui, e o que se sabe até aqui parece estar em contradição com a Bíblia, mas a ciência avançando pode ser surpreendida”. Ou seja, ele afirma que há na ciência um espaço do “não saber” que agora, aparentemente, contradiz à Bíblia, mas no futuro terá (poderá) que se retratar por conta de novas descobertas, as quais se adequarão ou mostrarão que a Bíblia era compatível às suas afirmações. Destaca-se também na fala acima a ideia de que na ciência há um saber do “até aqui”, pois esse ainda não está completo. Sim, concordo. Mas é quase uma inocência querer que as afirmações bíblicas, em relação ao conhecimento sobre o funcionamento da natureza, já esteja no “lá”, naquele nível ao qual ainda a ciência não chegou e quando chegar dará à mão a palmatória para admitir como a Bíblia sempre foi o manual que a ciência precisou consultar, mas por rebeldia não consultou. Não sei bem se tal perspectiva seja inteligente. É um tiro no próprio pé. Creio ser muito mais honesto e piedoso admitir que os textos bíblicos foram escritos em um tempo em que a visão de mundo, a compreensão do funcionamento do cosmos e a percepção da phisis (natureza) eram outras. Não vejo como produtivo, por exemplo, tentar adequar às ciências da natureza em geral as afirmações das Escrituras, pois, obviamente, pertencem ao Mundo Antigo, que possuía outro paradigma de conhecimento e diferentes mediadores de acesso à realidade. Isso não quer dizer que a Bíblia seja falsa, mentirosa, ultrapassada ou não sirva para nossa vida hoje, mas simplesmente não precisa corresponder ou se adequar às expectativas das ciências modernas. Além disso, o texto bíblico, para defender sua importância, não tem o dever de compreender o mundo como as ciências compreendem. A garantia do valor de inspiração das Escrituras não se estabelece através da compatibilidade com as afirmações sobre o mundo expostas à luz do paradigma de conhecimento da Modernidade, mas por sua potencialidade de revelar Deus e sua Palavra.

5. No mesmo enquadramento do vídeo, outro entrevistado, logo depois do citado no ponto 4, afirma que “nós precisamos aproximar a Bíblia da ciência, mas não juntar as duas coisas (...). (...) Devemos tratar como trilhos, próximos o suficiente para que o trem da existência passe sobre eles, mas não tão próximo ou tão distantes que o trem descarrile”. Com uma perspectiva diferente à fala anterior, estaria essa metáfora defendendo que tanto a Bíblia como as ciências modernas exercem seus saberes cada qual em seu espaço de conhecimento? Ele intentou afirmar que o ser humano tem nas ciências e na Bíblia duas possibilidades de explicar a realidade sobre as quais a humanidade segue seu caminho dando sentido à vida? Se sim, as duas me parecem interessantes, porque revela como os dois saberes possuem traços que não se misturam, e são possibilidades separadas/diferentes de compreensão do mundo. Isso impediria fazer com que uma se rendesse a outra ou as duas se misturassem como se estivessem falando da mesma coisa, mas com palavras diferentes (Deixe-me fazer uma divagação neste ponto. Dizer que a ciência e a Bíblia falam da mesma coisa com palavras diferentes é deixar de lado a grande obviedade: as ciências modernas funcionam sobre um paradigma de compreensão da realidade totalmente outro daquele que está nas bases de qualquer texto e discurso produzidos no Mundo Antigo, inclusive da Bíblia).

6. Seguindo a discussão do ponto 2, desdobrada nos pontos subsequentes, é inegável que as ciências humanas, há algum tempo, servem às ciências bíblicas para compreensão dos textos. Muitas pesquisas são realizadas com referencias teóricos desses campos disciplinares, os quais dão luz aos contextos da Bíblia e promovem diversas releituras. Por outro lado, a Bíblia cristaliza relações e lugares sociais, concepção a respeito do corpo etc. que as ciências da cultura demonstram sua transitoriedade histórica.

7. Ao pensar, a partir do documentário, a respeito do diálogo entre ciência e fé, aqui especificamente entre a Bíblia e as ciências humanas, eu faria algumas perguntas ao pessoal da ABC²: até que ponto as perspectivas modernas a respeito das relações de gênero, funcionamento social etc. poderão “dialogar” com textos bíblicos que se revelam, em vários lugares, incompatíveis aos horizontes das propostas dessas ciências desenvolvidas para o estudo do dado social? Como as ciências sociais, por exemplo, comportar-se-iam nesse diálogo diante de textos bíblicos com propostas contrárias aos estudos culturais a respeito de formação étnica, questões de gêneros etc.?

Acho que as ciências (duras ou moles) foram, são e sempre serão úteis aos estudos bíblicos e à fé cristã. No entanto, depende muito da maneira como tratamos Bíblia, fé e ciência. Definitivamente, interesses apologéticos de quaisquer dos dois lados dos pares resultará em pouca contribuição.

Como seria, então, esse diálogo na prática? Esperava alguma indicação no documentário. Eu, pelo menos no trato com a Bíblia, não espero que o texto sagrado responda aos anseios das ciências modernas, e a tenho como uma proposta de olhar sobre o mundo, a qual precisa de procedimentos interpretativos equilibrados para produzir vida e salvação.

terça-feira, 7 de março de 2017

Não venha com conversa fiada! Sim, no Brasil, o preconceito ainda mata e silencia!


Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no artigo 4º, é dever, e não opção, da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público (resumindo: É responsabilidade de todos/as nós!) assegurar (ou seja: tornar possível, fazer acontecer, efetivar) à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade (!), os direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. E, ainda, em Parágrafo único, o ECA determina para todos nós o dever de priorizar a efetivação da proteção e socorro, em quaisquer circunstâncias, a preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e a destinação privilegiada de recursos públicos relacionados à infância e à juventude. No entanto, esse lindo texto de promoção de direitos e exigências de deveres não se aplica, na prática, às crianças pobres e deixadas às margens. Isso ficou bem claro no caso do menino João Vitor, de apenas 13 anos, morto em Vila Nova Cachoeirinha, em frente de um Habib’s da zona norte de São Paulo. Esse crime escancara a face mais cruel da lógica preconceituosa do nosso país. Vitor foi arrastado, agredido, violentado, desumanizado e morto, no meio da rua, como se fosse um lixo dispensado na sarjeta. A barbárie é ainda maior, porque João Vitor (e faço questão de repetir seu nome em todo texto!) estava naquele Habib’s mendigando o que lhe era de direito: alimentação!

O júri informal e imoral foi estabelecido imediatamente. Ali, na rua mesmo, o Habib’s e seus funcionários, usando do princípio do preconceito, decretaram para Vitor a pena máxima – a mesma que é aplicada diariamente a outras crianças pobres e jovens negros do nosso país –, o veredito de morte. Qual o crime? – Ser catador de recicláveis, ser pobre! Nas palavras de seu pai, Marcelo Fernandes de Carvalho: “Ele teve uma morte que não se faz nem com animal. Meu filho era humilde igual eu, catador de lixo. Ele pedia, mas não roubava nada de ninguém. O moleque foi espancado por causa que estava pedindo um real para comer um lanche”.

Depois, tornando o caso ainda mais trágico e vergonhoso, a informação da Sra. Sílvia Helena, testemunha ocular, foi desdenhada e desacreditada. Mesmo sabendo detalhes do crime, ela não foi ouvida. A razão? Ora, a mesma que matou João Vitor: ser catadora de recicláveis, ser pobre. Neste país, onde se torna culapado/a o violentado/a, se naturaliza o sistema de má distribuição dos bens, se valoriza o sucesso de poucos à custa da ocultação do de-sucesso de muitos e se defende a lógica social darwinista/meritória, catar papel e pedir comida é crime inafiançável e prova irrefutável de culpa. Então, não venha com conversa fiada! Sim, no Brasil, o preconceito ainda mata e silencia!
O sacrifício do João Vitor é símbolo da nojenta, indigna e maligna/diabólica naturalização da discriminação contra pobre, preto, mulher, índio, nordestino, homossexual e outros grupos desumanizados, os quais, por vezes, são violentados e mortos por causa de sua cor, gênero, etnia ou orientação sexual.

Contudo, a fé que anima minha caminhada e ajuda-me interpretar meus dias, é alimentada por narrativas a respeito do Deus que nasce entre excluídos e lançados às margens. Ele é testemunhado por pastores, os mesmos que não teriam voz em um júri romano. Ou seja, o Nazareno recém-nascido foi proclamado por “Silvias”, catadores de resíduos. Nele, silenciados ganham voz. O Mestre, aquele que vigora a esperança e dá vida e razão à experiência pastoral, exige-nos indignação, compaixão e movimentação diante dessa “patologia social”, para que usemos nossa influência, força relacional, articulação política, presença pública e contados na criação de espaços conscientizadores e transformadores, os quais promovam ações preventivas e estruturantes contra a violência, o preconceito e desumanização. 

Bem-aventurados são os que têm fome e sede de justiça. Bem-aventurados os que não aceitam passivamente o tenebroso enredo da morte de João Vitor!