terça-feira, 15 de janeiro de 2013

“Cuidado com Elas”. Misoginia Cósmica na Literatura Judaico-cristã (Part. I)


Neste e nos próximos posts, publicarei na íntegra uma comunicação apresentada no último congresso da ABIB (Associação Brasileira de Interpretação Bíblica) sobre a questão da mulher na literatura judaico-cristã. 

Vamos ao texto...



Introdução 

Mesmo que encontremos na literatura bíblica muitos discursos que protejam as mulheres e que representem, em algum nível, sua dignificação, há muito tem se percebido como o mesmo conjunto de tradições judaico-cristãs revela violência(s) simbólica (s) contra a figura feminina. Como produtos de seu tempo,  que percebia os papeis sociais dos homens e mulheres como estabelecidos pela própria natureza ou por Deus, as obras que compõem a literatura bíblica relegam às mulheres limitadas atuações. Além disso, tanto estes textos canônicos como a tradição judaica do segundo templo em geral e as obras cristãs posteriores mostram que a mulher foi alvo de gratuito preconceito, chegando, em alguns momentos, a ser vista como uma aliada das forças malignas.
             Um fenômeno percebido nas tradições judaico-cristãs (com suas devidas reservas para não incidirmos em anacronismos) é o que as ciências sociais chamam de misoginia, que significa ódio contra a mulher ou contra o que tenha relação com o feminino. Esta é uma ideologia ou sistema de crença que acompanhou as culturas patriarcais para subordinar as mulheres e limitar-lhes o poder e autonomia[1]. O ódio contra o feminino está intimamente relacionado à tradição do medo que rodei a imagem da mulher, que perpassou a antiguidade, esteve bem presente no mundo medievo e até hoje permeia o imaginário de diversas culturas.  E, como alguns pesquisadores já nos advertiram,  o principal problema para as sociedades patriarcais é o corpo feminino, visto como apavorante, pois carrega um perigo indomesticável.
Uma das muitas razões de se temer a mulher e sua corporeidade na tradição judaico-cristã é a acusação de que a beleza da mulher serviu de desestabilização da ordem cósmica. Encontramos este tipo de ideia em alguns dos seus textos, nos quais a mulher aparece como agente de destruição de ordens celestiais e de cosmologias estabelecidas.   
 Para percebemos a presença deste medo causado pela mulher no mundo judaico-cristão, reportaremo-nos às tradições judaicas de pelo menos três séculos antes de Cristo, as quais formam lidas e relidas na história israelita ganhando novos contornos, “malignificando” ainda mais a figura da mulher.
Um texto considerado quase que originário para a tradição apocalíptica e que pode nos ajudar nesta questão é o chamado Mito dos Vigilantes[2], o qual está preservado no Livro dos Vigilantes, que por sua vez pertence a uma obra maior conhecida como 1 Enoque. Este texto foi totalmente preservado apenas na versão etíope (em Ge’ez) e tem aproximadamente 49 manuscritos[3]. Ele pertence ao grupo que, diferente da aristocracia judaica do século II a.C, não aceitava a helenização passivamente[4]. Nesta narrativa, os anjos são tentados, por causa da beleza das mulheres, a tomá-las como esposas, o que causa catástrofes imensuráveis e irremediáveis.

No próximo post continuaremos o texto...




[1] FLOOD, Michael (ed.). International Encyclopedia of Men and Masculinities. New York: Routledge, 2007.  
[2] REED, Annette Yoshiko . Fallen Angels and the History of Judaism and Christianity. The Reception of Enochic Literature. New York: Cambrigde University Press, 2005, p.3.
[3] COLLINS, J.J. The Apocalyptic Imagination: an Introduction to the Jewish Matrix of Christianity. New York: CROSSROAD, 1989, p. 33. 
[4] Sobre esse assunto, ver. NICKELSBURG, G. W.E., Apocalyptic and Myth in 1 Enoch 6-11. In: Journal of Biblical Literature 96, n. 3 (1977): 383-405. COLLINS, J. J. The Apocalyptic Technique: Setting and Function in the Book of Watchers. In: Catholic Biblical Quarterly 44, n. 1 (1982): 91-111.