quinta-feira, 27 de junho de 2019

NEM GREGOS, NEM TROIANOS: POLÍTICA BRASILEIRA E O RADICALISMO CEGO






Ninguém faz avaliações sem pressupostos, deferências, referências ou preferências. Todos são interessados por aquilo que avaliam e a neutralidade seria a negação do que mais nos caracteriza, a saber, nossas subjetividades, tal qual negar o corpo, história e vida. Todo discurso é eivado de ideologia, alerta-nos a Análise do Discurso. Contudo, a fim de evitar idolatria e irracionalidade, para refletirmos o Brasil juntos, como povo, precisamos vencer a inflação dos nossos desejos pessoais e preferências.
Por exemplo, cresci acreditando que só pobre é preso. Acostumamo-nos com a impunidade. Nunca imaginaria ver grandes empresários e tantos políticos, quando corruptos, presos. Mesmo que alguns deles estejam livres, como o doleiro Cerveró, presenciamos a aplicação da justiça sobre setores e pessoas historicamente imunes – esperamos que a “sangria não seja atada”. A Lava-jato prestou um serviço importante. Contudo, isso não é um salvo-conduto permitindo juízes e promotores agirem como bem quiserem. A própria Lava-jato corre risco se permitirmos ou legitimarmos processos com problemas ou ilegalidades. Caso haja algum tipo de equívoco na maneira como foi articulado qualquer procedimento, é preciso averiguar, porque somente preservando a isonomia das instituições e o Estado Democrático de Direito será possível manter a justiça e a democracia. Então, nem gregos ou troianos. Atacar toda a lava-jato é demasiado equívoco, mas blindar acriticamente Moro como se ele pudesse fazer qualquer coisa, também é muito perigoso e coloca todos nós em risco, porque precisamos de tribunais submissos à ética e procedimentos aceitos legalmente. Todo rigor à corrupção, mas com todos os limites da Constituição; nem mais, nem menos.
A mesma coisa se aplica em relação ao fenômeno do anti-lulista instalado no Brasil. Por sua vez, a idolatria protecionista pró-PT é a outra face da moeda. Não podemos negar, o Brasil alcançou taxas econômicas reconhecidas no período do governo do PT, tirou milhões da miséria, levou universidades aos cantos mais esquecidos do Brasil e passou a crise econômica sem abalos. É pouco razoável fingir que não houve avanços sociais no período do governo Lula. Todavia, é preciso admitir que o PT fez alianças contrárias às suas promessas, muitos de seus políticos se envolveram em corrupção, foram seduzidos pelo poder, não fizeram as reformas prometidas e não tiveram coragem para enfrentar interesses de gente que saqueia o Brasil. É equivocado não admitir tais coisas. No entanto, seria outro extremo defender raivosamente a ideia do PT como inventor da corrupção, responsável pela instalação do saque à Petrobrás ou o criador da ilegalidade entre empresas e políticos. Essa narrativa é perigosa, porque fragiliza a consciência e torna o povo susceptível a respostas simplistas a problemas complexos. Toda escolha como fruto de ódio tem poder de nos destruir. Por isso, não seria nada inteligente interpretar os que fazem essa análise como ptistas ou antiptistas.
Dentro desse contexto Lula-PT está outro fenômeno similar, o bolsonarismo. Criou-se no Brasil desde as eleições a ideia de que qualquer análise ao governo significa ser petista ou marxista. Esse é mais um indício de extremismos e dualismos superficiais. Mesmo com a existência de outros candidatos, qualquer crítica seria sinônimo de defesa do Haddad. E o contrário, por vezes, também acontecia. Era como se Ciro, Marina, Daciolo, Alkmin e Boulos não existissem e estivéssemos em uma eleição bipartidária. Essa lógica se alargou e agora, depois das urnas, ainda permanece. Fica difícil a participação pública equilibrada, porque o protecionismo impede as críticas e avaliações necessárias. Para os mais exaltados eleitores do atual governo, não há nada para se criticar ou não existe qualquer razão para desconfianças. As falas mais radicais e os episódios estranhos são aceitos passivamente. Quando alguém, mesmo da direita, faz qualquer intervenção ou ponderação logo é chamado de esquerdista ou marxista enrustido (vejam o caso da deputada Janaína Pascoal ou do deputado líder do MBL). Na outra ponta, raciocínio similar deve ser aplicar ao ressente escândalo da cocaína encontrada na comitiva do governo. Seria também precipitação decretar sem um processo legítimo de investigação qualquer culpa ao presidente da república.
Talvez, um dos dualismos mais difíceis é a demonização mútua esquerda-direita. No Brasil, por exemplo, criminalizou-se qualquer assunto que pareça estar próximo do horizonte reconhecido como próprio dos interesses da “esquerda”. Entre tantas razões não muito louváveis, como a pouca sensibilidade com políticas e discussões sociais, o antagonismo profundo ao PT tornou pecado escabroso qualquer interesse relacionado à esquerda. Contudo, algumas coisas precisam ser ditas sobre isso. Primeiro, preocupação por justiça social, direitos humanos, bem estar social, defesa dos fragilizados sociais e direito são preciosos temas civilizatórios. Se a esquerda os tornou seus temas, é de bom alvitre reconhecer o acerto. Por outro lado, a direita clássica como sua defesa à democracia e instituições precisa ser valorizada.
Por isso, creio que a Igreja, enquanto movimento de Jesus, observa e discerne a partir dos valores do Reino tanto as escolhas pessoais quanto o funcionamento social. Assim, precisa sempre desconfiar de qualquer projeto político limitado e temporal, e reconhecer os pontos positivos dos dois ou três lados. Contudo, por sermos também historicamente localizados, precisamos continuamente colocar sob suspeita nossas leituras e sermos abertos às múltiplas possibilidades, o que ajudará na melhor aplicação e reconhecimento dos indícios do Reino em nosso contexto. Essa é a razão de não fecharmos, enquanto igreja, com nenhum projeto político partidário; nenhum! O contrário seria, sim, misturar igreja e Estado. Dessa forma, especialmente para os protestantes/evangélicos, o melhor modelo é a laicidade do Estado, o que nos projete mutuamente e nos dá liberdade de voz quando necessário para denúncia e anúncio, como a tradição bíblica e a história da Igreja testemunham.

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Apocalipse 13 e a Marcha para Jesus em SP






O Apocalipse de João foi interpretado de várias maneiras. Na tradição futurista, comum entre os dispensacionalistas, as trombetas, taças, selos, monstros, mortes e demais imagens preservadas no texto são lidas como eventos da história da Igreja ou, em grande parte, presságios do fim dos tempos. Mesmo importante entre tantas denominações, essa perspectiva acaba perdendo de vista, ou eufemiza, a dura crítica do visionário. Seguindo tantas pesquisas já bem estabelecidas, o contexto do Império Romano, sob a égide de Domiciano, é uma boa hipótese para compreensão na narrativa apocalíptica. Sem negar seu caráter “por vir”, há tantos indícios no próprio texto que mesmo os futuristas admitirão o primeiro nível de compreensão. Hermeneuticamente, a perspectiva do texto como denúncia ao discurso imperial e sua falsa paz, Pax Romana, serve-nos ótimos óculos para interpretação e leitura contextual. Mais do que fonte de antecipação para eventos futuros, esse horizonte ajuda-nos analisar, à luz das Escrituras, a relação da igreja brasileira com o Estado.

Entre os textos do Apocalipse, o capítulo 13 é o mais instigante. Na tarefa de entendê-lo, precisamos dar uma olhada na narrativa anterior, Ap 12, no qual aparece uma mulher vestida de sol com a lua nos pés. Ela estava para dar à luz. Inesperadamente, aparece um Dragão, com sete cabeças, dez chifres... horrível! O ser caótico desejava devorar o filho da mulher cósmica, mas antes disso Deus o arrebatou para o trono. Na mesma parte, outra cena é pintada. Há uma briga no céu entre Miguel e os anjos contra o Dragão. Chamado de antiga serpente, Diabo e Satanás, ele cai precipitado na terra, quando volta a perseguir a mulher e seu filho. Novamente seu intento violente é frustrado. Contudo, João informa que agora suas forças seriam canalizadas contra os seguidores de Jesus, talvez por serem os representantes da criança livrada. Entenda, o visionário está descrevendo sua experiência e indicando as características do demoníaco para serem capazes de resistir e habilidosamente discerni-lo quando despontasse. Ele está preparando-nos para o cap.13 e mostrará onde o encontraremos. Deixe-me explicar algo. Hoje em dia não defendemos nas pesquisas a teoria da perseguição. É o contrário. Com as cartas enviadas às igrejas da Ásia, percebemos que as comunidades viviam certas benesses e estavam felizes no império (“rico sou e de nada preciso... [Ap 3.17]”, lembra?) . Todavia, João percebeu esse risco e alertou as igrejas e lideranças a respeito dos perigos dessa relação e desnudou a falsidade do discurso de paz veiculado pelo Império, porque negava princípios básicos da fé anunciada pelo Cordeiro.

Bom, agora podemos ler o capítulo 13. Se olharmos com cuidado veremos a descrição de duas bestas: do mar e da terra. A primeira condensa em si todas as características dos animais de Dn 7. Ou seja, ela reúne as mazelas e monstruosidades dos reinos contrários a Deus na história. Por sua vez, a segunda besta está a serviço da primeira e leva o povo à adoração idólatra e aceitarem-na como digna de valor religioso. Seus sinais e linguagem seduzem alguns das igrejas. Eles recebem uma identificação de pertencimento e sem a marca não entrariam no necessário sistema de compra e venda. Dentro dessa densa descrição, quando a primeira besta é descrita, lemos em Ap 13 uma informação fundamental, o que coloca João no lugar de enfrentamento direto: “E deu-lhe o Dragão o seu poder, seu trono e sua autoridade”. Pasmem, o Apocalíptico está chamando o sistema imperial de representante do Dragão, do próprio antagonista de Deus e do Cordeiro! Não menos perigosa é a besta da terra, porque ela tem aparência de cordeiro, mas na realidade é eco do Dragão e está a serviço da primeira Besta.


Não sei se você percebeu, mas João desconfia do Estado. Mesmo se auto-afirmando como promotor de paz, os indícios sociais e a revelação denunciam para o visionário o engodo da relação espúria entre religião e Besta, Igreja e Estado. Deus mostrou ao profeta os indícios, ações e práticas do Império contrários ao projeto de Jesus. O visionário percebeu que a violência era maquiada por um discurso de paz, suas taças estavam cheias de sangue e a balança desigual. No entanto, os benefícios e trocas cegavam os seguidores de Jesus na Ásia, amordaçavam a denúncia dos crimes e impediam a igreja de se afastar. Alguns não tinham manchado suas roupas, mas muitos sucumbiram e foram seduzidos. Se levarmos a sério o Apocalipse de João, encontramos importantes advertências: 1. não é possível seguir o cordeiro sem desconfiar do Estado; 2. cuidado, não deixe os benefícios do sistema político favorável cegarem-no a ponto de passarem desapercebidamente os indícios de projetos contrários ao evangelho; 3. a única relação entre igreja e Estado é a profética.

E a marcha para Jesus desta semana em SP? Eu vi pastores e pastoras ovacionarem e conduzirem a multidão aos pés do Estado que usa o símbolo de uma arma em punho como parte de sua proposta e imagem. Assisti consternado, a Igreja e seus líderes, no meio de louvores e culto, em gritos, repetirem o slogan de um projeto político partidário por vezes cheio de violência. Ouvi chamarem de mito um político e fizeram do púlpito palanque – interessante, o dragão está presente em vários mitos cosmogônicos do Mundo Antigo.

Não se engane, quando a igreja perde seu lugar profético e se mistura com o Estado, seja por inocência ou desejo de poder, os pastores se tornam representantes da Besta e os membros candidatos a serem marcados por ela.