quinta-feira, 29 de julho de 2010

Anjos aprisionados em Judas 6 e sua relação com 2 Pedro 2,4: outras leituras à luz de 1 Enoque (Parte II)

Último Juízo, Fran Angelico (1432-35). Museu de San Marco, Florença.





Iniciei no post anterior uma discussão a respeito dos anjos aprisionados em Jd 6 e 2 Pd 2,4, com o objetivo de observar a influência de 1 Enoque na literatura neotestamenária. Pois bem, comecemos nossa leitura pela epístola de Judas. O verso que nos interessa encontra-se dentro duma grande argumentação – grande em comparação com o tamanho da obra inteira – contra alguns na comunidade com ideias e práticas mais liberais, vistas pelo autor como libertinas (v.4) [1] . Esses falsos mestres tinham livre circulação na comunidade, a ponto de participarem das festas do agápe (v.14). E sem medir as palavras, o autor metralha acusações e duras críticas contra os tais enganadores (v. 8, 10, 11, 12, 13,16); o texto é tão forte que assusta! O que também revolta o autor dessa missiva é a forma desrespeitosa como tratam as potestades ou seres angelicais: “Do mesmo modo, essas pessoas, levadas por seus devaneios, mancham a carne, desprezam o senhorio de Deus e insultam as potestades/autoridades (seres gloriosos)” (v.8).

A pequena epístola inicia sua exortação ilustrativa no verso 5, uma introdução à lista de exemplos negativos bem conhecidos e retirados da tradição judaica: “desejo, porém, vos lembrar...” (v.5). O conhecimento das histórias por parte dos leitores fica bem claro no uso do verbo hupomimnesko (lembro, recordo, faço alguém lembrar). O autor começa com a experiência do êxodo egípcio, pelo qual Deus salvou os fiéis e fez perecer os infiéis (v.5). Depois desse doloroso exemplo, ele usa outra ilustração: os anjos que não conservaram a sua dignidade e abandonaram sua moradia (v.6). A pergunta inicial é: quem são esses anjos? A respeito de qual evento o texto se refere? Na continuidade da argumentação, ele diz que os mesmos agora estão presos em cadeias eternas debaixo da escuridão para o juízo do grande dia (v.6). Para entendermos melhor sobre esses seres aprisionados, leiamos o verso 7 (numa tradução mais literal): “como Sodoma, Gomora e as cidades ao redor, da mesma maneira desses que se prostituíram e seguiram atrás de carne (natureza) diferente, foram postos como exemplos, colocados debaixo da condenação do fogo eterno” (v.7). No texto, o pronome demonstrativo desses (toutois) faz referência aos anjos anteriormente citados, porque concordam sintaticamente. Assim, as experiências dos anjos rebeldes e de Sodoma e Gomora são usadas comparativamente para servirem de exemplos de erros no âmbito sexual, ou seja, o mal de se prostituir (ekporneusasai) – um detalhe, essa prostituição é com outra carne ou natureza diferente (hetéras). Em suma, temos a imagem de seres angelicais rebeldes que deixaram seu lugar de origem e caíram em prostituição, e por causa disso estão presos na escuridão guardados para o julgamento final.

Como afirmei em post anterior, “todo discurso é inevitavelmente ocupado, atravessado, pelo discurso alheio” [2]. Assim, um discurso está sempre em diálogo com outros discursos e isso pode ser em nível de intertextualidade (relação de textos: citação, referência ou estilização através de outros textos). Por isso, é nítida a relação intertextual entre Judas e 1 Enoque. Aquele utiliza a história deste, de anjos aprisionados por causa de suas ações libertinas, para mostrar como Deus tem uma justa condenação para os infiéis. Mais a frente, a mesma carta de Judas, para condenar a maneira como aqueles falsos mestres tratavam os seres celestiais, cita no nono versículo outro pseudepígrafo judaico, Assunção de Moisés, no qual até Miguel agiu respeitosamente ao lutar com o Diabo pelo corpo de Moisés.

Outro texto que aparece o tema dos seres aprisionado é 2 Pedro 2,4. Todo o segundo capítulo de 2 Pedro é muito parecido com Judas 6-13. Isso é facilmente percebido porque, como é consenso entre os pesquisadores, aquela epístola é dependente desta [3] .

Num contexto parecido de oposição a um grupo de falsos mestres (2 Pd 2,1-3; 10-13; 14), 2 Pedro lista vários exemplos de infiéis que sentiram o julgamento divino. Como em Judas, ele relembra os anjos, Sodoma e Gomora e Balaão, deixando de lado os exemplos de Caim e Coré (Jd 11), como também não cita diretamente os textos pseudepígrafos presentes em Judas.

Ao utilizar o mesmo exemplo de Judas 6, 2 Pedro cita-o quase literalmente, mas com um pequeno detalhe a mais: o Tártaro. Por isso, a distintiva característica teológica de 2 Pedro é encontrada em sua notável combinação dos imaginários helenístico e escatológico judaico [4] . O texto fala dos anjos caídos, mas coloca-os no Tártaro da mitologia grega (presente, por exemplo, em: Hesíodo [Teogonia 715–30] e Homero [Ilíada 8.11–19; Odisséia 11]): “Se, porém, Deus não poupou os anjos que pecaram, mas tendo [os] lançado no tártaro (tartarósas) em cadeias de trevas, deixou-os guardados para o juízo” (2 Pd 2,4).

Assim, em 2 Pedro as histórias dos Titãs e a tradição dos anjos caídos são entrelaçadas para anunciar o julgamento contra os falsos mestres [5] . Nicklesburg define bem a relação da epístola de Judas, Mitos dos Vigilantes (1 Enoque) e a mitologia grega em 2 Pedro: "Sobre a imagem da epístola de Judas, 2 Pedro trabalha a história da rebelião dos Vigilantes e aprisionamento com uma proposta similar a de Judas (2:4-5), e a embeleza com temas da mitologia Grega" [6] .

Como percebemos, o tema dos anjos aprisionados no Novo Testamento tem íntima relação de dependência com o Mito dos Vigilantes (1 Enoque 6-11), o qual está no Livro dos Vigilantes, que, por sua vez, pertence a obra maior chamada de 1 Enoque. Muitos outros textos poderiam ser utilizados para demonstração dessa interdiscursividade e intertextualidade, como, por exemplo, 1 Co 11, 10; 1 Tm 2,9-11; 1Pd 3,3-4; Ap 9, 1-11. 12,9 e a questão dos espíritos imundos no evangelho de Marcos. Assim, encerramos nossas reflexões sinalizando o imprescindível valor desse tipo de corpus literário, conhecido na academia como literatura apocalíptica.

[1] VIELHAUER, Philipp. História da literatura cristã primitiva. Introdução ao Novo Testamento, aos apócrifos e aos Pais Apostólicos. São Paulo, Editora Academia Cristã Ltda, 2005.
[2] FIORIN, Luiz José. Introdução ao Pensamento de Bakhitin. São Paulo, Ática, 2008.
[3] BILLINGS, Bradly S. The Angels who Sinned . . . He Cast into Tartarus (2 Peter 2:4): Its Ancient Meaning and Present Relevance In: The Expository Times 119 (2008):152-157.
[4] BAUCKHAM, R. J. 2 Peter. In: MARTIN, Ralph P. and DAVIDS, Peter H. Dictionary of the Later New Testament & Its evelopments. Downers Grove, Inter Varsity Press, 1997.
[5] BILLINGS, Bradly S. The Angels who Sinned . . . He Cast into Tartarus (2 Peter 2:4): Its Ancient Meaning and Present Relevance In: The Expository Times 119 (2008):152-157. p. 536.
[6] NICKELSBURG, George W. E. 1 Enoch: a Commentary on the Book of 1 Enoch, chapters 1-36; 81-108. Minneapolis, Fortress, 2001. p. 86.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Anjos aprisionados em Judas 6 e sua relação com 2 Pedro 2,4: outras leituras à luz de 1 Enoque (Parte I)

fragmento de 1 Enoque

No post anterior apresentei uma possibilidade de leitura para 1 Pedro 3, 19-22. Ao perceber a relação dialógica entre a perícope petrina e 1 Enoque, texto apocalíptico do Judaísmo do segundo templo, dei um pontapé inicial para a leitura de outros textos a partir da mesma perspectiva.

Como tudo no Brasil chega atrasado, pelo menos na academia, a pesquisa ao corpus literário da apocalíptica judaica do segundo templo é algo novo para nós, enquanto na exegese européia e norte-americana há anos já se investiga a importância desse grupo de textos para leitura do Novo Testamento

No entanto, essa perspectiva para aproximação hermenêutica precisa ser cuidadosa, pois podemos cair em equívocos iguais aos da obra de R. C. Charles, que se por um lado foi um grande avanço para as pesquisas em 1 Enoque, porque o tornou mais acessíveis ao traduzi-lo para o inglês, por outro lado não se livrou dos exageros, pois na sua introdução indicou em quase todos os textos do Novo Testamento alguma influência ou citação direta ou não da literatura apocalíptica de Enoque [1]. O exegeta estadunidense J. Vanderkam, especialista em literatura enoquita e neotestamentária, sinalizou muito bem os excessos de Charles: "Charles encontra dois tipos de evidências nos escritos do Novo Testamento: passagens em que sua fraseologia ou idéia dependem ou são ilustrativas de passagens relacionadas a 1 Enoque e doutrinas de 1 Enoque que poderiam ter moldado os ensinamentos do Novo Testamento. Mas essa lista é enganosa, porque somente um pequeno número de seus paralelos soma sérios candidatos para direta ou até indireta influência (...). Charles pode ter acertado ao afirmar que alguns escritos do Novo Testamento foram influenciados por 1 Enoque, mas somente em alguns casos podemos dizer com confiança que de alguma forma o Novo Testamento apresenta influência dos item ou tema de 1Enoque" .

Levando em consideração as críticas de Vanderkam, que por sinal são muito relevantes, para pensarmos o ambiente, o contexto e o mundo de onde surge a literatura neotestamentária, precisamos ler cuidadosamente esse grupo de textos.

Atualmente – que não é tão atual assim – após as descobertas de vários manuscritos na região do Mar Morto, em Qumran, a preocupação com essa literatura aumentou. No começo houve muito sensacionalismo, mas no decorrera das publicações dos manuscritos e do acesso por melhores e mais sérios pesquisadores, descortinou-se o “ar” que dava vida ao imaginário religioso da palestina e do judaísmo do período neotestamentário.

Em relação à obra 1 Enoque, já apresentada superficialmente no post anterior, sua importância para o Cristianismo é quase inquestionável, pois há, por incrível que pareça, na sua lista canônica até mesmo uma citação direta ao livro enoquita (Jd 14-15). A influência – que não somente pressupõe uma utilização material duma cópia do texto enoquita, mas também de apropriação e presença imaginária – da literatura apocalíptica na epistola de Judas levou o importante pesquisador G. Nickelsburg afirmar que “a epístola de Judas tem especial aproximação com o enoquismo e outras tradições não canônicas” [3]. Entre as “outras tradições não canônicas”, além da enoquita, está o também apocalipse judaico conhecido como Assunção de Moisés, citado no verso 9: “E, no entanto, o arcanjo Miguel, quando disputava com o diabo, discutindo a respeito do corpo de Moisés, não se atreveu a pronunciar uma sentença injuriosa contra ele, mas limitou-se a dizer: ‘O Senhor te repreenda!’”.

R. Bauckham, tento a mesma impressão de Nickelsburg, é mais radical e conclui que o autor de Judas poderia pertencer a um círculo apocalíptico da palestina [4], por isso o interesse por esses livros judaicos do terceiro e segundo séculos antes da era comum.

Ainda mais interessante é a presença do tema de anjos aprisionados em Judas 6, o qual está em intima relação com 2 Pedro 2, 4-5 cujas imagens remetem, também, nosso olhar para o texto de 1 Enoque. Por agora, basta-nos essa explicação prévia para que no próximo post eu apresente detalhadamente esse tema nas duas epistolas e sua relação com a literatura enoquita...



[1] CHARLES, R. H. The Book of Enoch or I Enoch. Oxford, Clarendon, 1912 (em especial o capítulo “The Influence of 1 Enoch on the New Testament”). Em sua obra de dois volumes com tradução e introdução à literatura pseudepígrafa e apócrifa do Antigo Testamento, no volume II, no qual apresenta o livro de 1 Enoque, ele acrescentou o tópico citado de sua obra de 1912, mas como um novo título: “Influence on New Testament Doctrine”, mostrando outros tipos de influências. Cf. CHARLES, R. H. Apocrypha and Pseudepigrapha Of The Old Testament. Vol. II. Oxford, Clarendon, 1913. p. 182.

[2] VANDERKAM, James C. Enoch, a Man for All Generations. Columbia, University of South Carolina Press, 1995. p. 170.

[3] NICKELSBURG, George W. E. 1 Enoch: a Commentary on the Book of 1 Enoch, chapters 1-36; 81-108. Minneapolis, Fortress, 2001. p. 86.

[4] BAUCKHAM, R. Jude, Epistle of. In: FREEDMAN, D. N. Anchor Bible Dictionary. New York, Doubleday, 1992. p. 1102.