sábado, 31 de março de 2012

Pastor de Hermas: um livro cristão desconhecido, mas importante (Part. I)




"Pastor de Hermas", Séc. III, (Catacumbas de Roma)

        
        Nestes próximos posts apresentarei uma obra desconhecida hoje em dia, mas muito importante para os primeiros cristão, a saber, Pastor de Hermas.   

Considerações Iniciais: Literatura Apocalíptica e Pastor de Hermas


O livro Pastor de Hermas foi muito apreciado na antiguidade cristã, a ponto de alguns Pais Apostólicos tratarem-no como canônico. Em questão de gênero, por causa de sua linguagem, seria possível concebê-lo como literatura apocalíptica.
A famosa definição de apocalipse como gênero literário pode nos ajudar na leitura do Pastor de Hermas:

Apocalipse é um gênero de literatura revelatório com uma moldura narrativa em que a revelação é mediada por um ser de outro mundo para um receptor humano, revelando uma realidade transcendente que é tanto temporal, enquanto visa salvação escatológica, e espacial enquanto envolve outro mundo, sobrenatural[1]. 

Com essa definição, entende-se apocalipse como um gênero literário, comum entre grupos que experimentam ou antecipam a experiência de uma realidade tão agressiva, que o que resta é  interrupção da própria história[2]. Este tipo de literatura tem uma leitura pessimista de seu tempo, pois não encontra nele possibilidade de salvação e, diferente da literatura profética, que focaliza o cenário terreno, sua preocupação está no mundo transcendente.
Sua visão de mundo é dualista: há dois caminhos, dois eones, duas forças. O presente éon é mau, dominado pelo Satanás, e a salvação não pode ser esperada neste. A expectativa é que o hodierno éon será consumado pelo novo, que virá do além. O gênero apocalipse não sabe quando isso ocorrerá, mas o vive como se estivesse próximo.    
Como gênero literário, em resumo, o apocalipse possui estrutura formal com elementos estilísticos que o identificam: 1) pseudonomia; 2) relato de visões: em êxtase ou em sonho, o visionário é arrebatado ao mundo celeste; 3) linguagem simbólica: aparecem figuras de animais, plantas, temporais, estatuas com significados simbólicos; 4) sistematização: ele sistematiza a pluralidade dos fenômenos; 5) panorama da história: ocorre uma periodização da história; 6) descrição do além: o apocalipse informa ao leitor a respeito da existência no “além-mundo”. O visionário desce ao inferno ou sobe ao céu e expõe sua funcionalidade, sua topologia, as hierarquias dos anjos, astronomia e etc; 7) A visão da sala do trono: em alguns apocalipses o visionário, que foi ao céu, vê a sala do trono de Deus. Essa visão aparece na mística judaica, que tinha como campo simbólico as viagens místicas pelos céus, que ficou conhecido como o misticismo da Merkavah, o trono carruagem de Deus.
Em questão de função, a mensagem apocalíptica, legitimada por sua autoridade divina, deseja que seus receptores sejam encorajados a modificar suas instâncias contemporâneas e cognitivas com uma perspectiva transcendente[3].
Neste sentido, apocalíptica é uma expressão religiosa, um “espírito”, uma visão de mundo que tem no gênero apocalíptico seus pressupostos. Como diria Peter Beger, a religião serve para conhecer o mundo e situar-se nele[4]. Nesta mesma linha de raciocínio, a apocalíptica é uma forma de explicar e situar-se no mundo[5].
Observando as definições propostas, pode-se afirmar que a estratégia literária de Pastor de Hermas está vazada do gênero apocalíptico, mas com algumas diferenças. A sua linguagem é de uma apocalíptica particular, pressupõe a grande tribulação[6] e utiliza-se de diálogos obtidos através de visões de seres celestes. Essas visões são certamente formas literárias, imaginadas, com o intuito de traduzir e transmitir a preocupação religiosa de Hermas: o direito do pecador ao perdão de seus pecados, mesmo após o batismo.
Eusébio de Cesárea acreditava que Pastor de Hermas era tratado como Escritura por Irineu (130-200 d.C), isso por causa de um texto encontrado na sua obra adversos haereses 4,20.2. Clemente de Alexandria, também o cita, em sua obra stromates.


História da Leitura e Recepção do Pastor de Hermas.

 Na Patrística aparecem várias citações desta obra, mostrando sua influência. Mesmo as passagens mais enigmáticas foram utilizadas, como se percebe em Clemente de Alexandria. Na obra Stomatas (1,29; 2,10) encontramos a citação da complexa passagem da Parábola 9,16 do livro de Hermas. A história de sua recepção e leitura é muito interessante e mostra o quanto esteve presente na cristandade desde metade do segundo século.
Assuntos como batismo, penitência, Igreja, fé, atributos divinos, salvação, pobre/rico e perdão estão pincelados no conteúdo da obra. O texto não demonstra domínio teológico, mas experiência de fé e ideias ascetas de piedade.    
Seu contado com a literatura que seria posteriormente canônica não é perceptível. No entanto, alguns acreditam que Hermas inspirou-se no Evangelho Segundo os Hebreus, outra obra apócrifa.
Outro nome ligado ao Pastor de Hermas é Orígenes (185-254 d.C). Este fez uma pesquisa nas varias províncias da Igreja para perceber os costumes, no seu tempo, dos cristãos. Com isso, tirou algumas conclusões a respeito dos livros mais usados nas comunidades, dividindo-os em Classes. Segundo ele, a primeira classe seria a dos anatírreta ou homologoúmenen (os incontestáveis). A segunda classe seria os amphiballómenas (escritos duvidosos). A terceira pseudé (os heréticos)[7]. O livro Pastor não aparece nesta lista, mas Origines diz ser um livro “divinamente inspirado” (Rom. 10,31). O mesmo teólogo, posteriormente faz alusão a partes do Pastor com caráter de inspirado (Comment. in Mat. 14,21). O mesmo Orígenes identifica o “Hermes” citado em Rm 16,14 com do Pastor de Hermas.
A lista de livros do Cânon Muratori, obra do Séc. II, não dá ao Pastor valor canônico, mas o admite como leitura privativa. Mesmo assim, o livro foi incluído no Códice Sinaítico[8].
Tertuliano (160-230 d.C), a princípio aceitou-o como texto inspirada (De Oratione 16). No entanto, na época em que aderiu ao montanismo, tratou Pastor de Hermas como “adúltera e patrona dos adúlteros” (De Pudicitia 10,11).
Na história da recepção do livro Pastor, encontra-se a obra de Eusébio de Cesaréia. Ele divide em dois grupos os escritos cristãos: 1) homologoúmena (autênticos); 2) antilegomena (inautênticos) e 3) os completamente destituídos de sentido e impiedosos.  Entre os antilegomena ele destaca dois grupos, um que merece maior e outro que merece menor estima. O Pastor está no segundo grupo desta lista, os de menor estima.
Atanásio em 367 d.C, na sua carta pastoral, onde escreveu a lista dos 27 livros (mais tarde tratados como canônicos), não colocou Pastor de Hermas. Contudo, por causa dos Mandatas (mandamentos), uma das partes do Pastor, colocou-o entre os livros que deveriam ser lidos em voz alta na Igreja e na instrução batismal.
Jerônimo (340-420 d.C) também identificou o “Hermes” de Rm 16,14 com o autor da obra Pastor, e expôs a utilidade desta obra para os escritos antigos e seu desconhecimento entre os latinos (De Viris Illustribus, 10).
Depois de sua larga difusão no Oriente, nas igrejas gregas, visto como inspirado para uns e inautêntico por outros, o Pastor foi colocado definitivamente, durante o papado de Gelásio (492-496), entre os apócrifos. 

No próximo post continuaremos o assunto...



[1] COLLINS, Adélia Yarbro (org). Early Chistian Apocalyptcism: Genre and Social Setting. In: SEMEIA, n.36 (1986): 2.     
[2] FILHO, José Adriano. Caos e Recriação do Cosmos. A percepção do Apocalipse de João. In: RIBLA, n. 34 (1999): 7-30.        
[3] COLLINS, Adélia Yarbro (org). Temporalidade e Política Na Literatura Apocalíptica Judaica.In:  Oracula, n. 2 (2005): 6-7.   
[4] BEGER, Peter L. O Dossel Sagrado: Elementos Para Uma Teoria Sociológica Da Religião. São Paulo: Paulus, 1985.    
[5] Para os conceitos apocalipse, escatologia apocalíptica e apocalipsismo ver: HANSON, Paul D. “Apocalypse, genre” and “Apocalypticism”. In: Interpreter’s Dictionary of the Bible. (Suplementary Volume). Nashville, Abingdon Press, 1976. p. 27-34; DITOMMASO, Lorenzo. Apocalypses and Apocalypticism in Antiquity (Part I). In: Currents in Biblical Research 5.2 (2007): 235-268; COLLINS, J.J (ed.) Apocalypse: The Morphology of a Genre. In: Semeia 14 (1979); BOER, Martinus de. A influência da apocalíptica judaica sobre as origens cristãs: gênero, cosmovisão e movimento social. In: Estudos de Religião 19 (2000): 11-24.
[6] FILHO, José Adriano. O Pobre e o Rico em Tiago e no Pastor de Hermas. In: RIBLA, n.31 (1998): 143-157.   
[7] KÜMMEL, W.G. Introdução ao Novo Testamento.São Paulo: PAULUS, 1905. p.p. 653-654.   
[8] VIELHAUER, Philipp. História da Literatura Cristã Primitiva: Introdução ao Novo Testamento, aos livros apócrifos e aos pais apostólicos. Santo André: SP: Academia Cristã de Ltda, 2005.p. 541.           

quinta-feira, 1 de março de 2012

Os/As biblistas estão órfãos/ãs: Prof. Milton Schwantes faleceu!


Apaguem as estrelas por um instante. Silenciem os pássaros. Não deixem que a fragrância das rosas, por um momento, alcance o olfato dos amantes. Deitem o sol no fundo do caos e deixem a luz da lua, somente ela, no lúgubre sopro, ao lado de Vênus, brilhar no céu escuro. Parem as ondas do mar e digam a ele que se cale, pelo menos agora. Os/As biblistas estão órfãos/ãs: Prof. Milton Schwantes faleceu!

Mais do que mestre, Milton Schwantes era um pai, que com as palavras confortava, animava (alma), incomodava e nos tirava da zona de conforto. Ouvi-lo era como um delicioso banquete. Suas utopias nos inebriavam, e como adictos voltávamos vividamente às tentações de seus discursos. Cada aula era uma experiência religiosa, extática, envolvente e transformadora. Sua erudição simples tornava-o uma raridade. Isso, eis aí a expressão mais adequada: “raridade”. O mundo das palavras ficou mais frívolo, comum, simplista... Com menos sentido!

Sua sensibilidade era impressionante. Um dia, quando estava apreensivo na espera da entrevista para o ingresso no mestrado, sentado numa mesa perto das salas, onde ficava a banca dos doutores avaliadores, vi no fundo do corredor um senhor de suspensório, com uma bolsa marrom; era o prof. Milton. Ele sentou-se, perguntou de onde era e de que denominação. Quando falei que era capixaba e da Assembleia de Deus, logo se alegrou e disse como se preocupava com a formação de biblistas no mundo pentecostal. Quando entrei na sala, acreditem, era ele um dos meus examinadores. Quando me viu, logo fez vários elogios, mostrando como meu projeto era importante. Ele nem se quer me conhecia direito, mas sua preocupação com a divulgação dos estudos bíblicos em diferentes contextos levou-o a essa tomada de partido. Ele não era um mercenário da leitura popular ou da teologia que privilegia os pobres, como os que ficam ricos falando de opressão e teologia da libertação. Pelo contrário, fez uma escolha séria e a parti dessa opção gerenciou todos os seus esforços. O defensor dos excluídos não se maravilhava com a elite (teológica ou de qualquer outra espécie), mas preferia ajudar um jovem pentecostal na caminhada ao lado de sua comunidade.

Chega, não vou escrever nada sobre ele e nem o que representou e representa para a teologia e pesquisas bíblicas, sua vida e história falam por si. Resta-me somente o choro e o silêncio.

Adeus professor-amigo.  Que os braços da Vida Eterna carreguem-te com carinho para o lugar onde não há mais injustiças, desigualdades e negação da vida, que contra as quais sempre lutaste!

Que Deus console esposa, filhos, amigos/as e familiares do nosso eterno professor!