quinta-feira, 2 de abril de 2020

Sobre uma "resenha" do livro “Experiência e Hermenêutica Pentecostal”.






Enviaram-me o link de um artigo publicado na revista “Bona Consciêntia”. Quando ouvi pela primeira vez que sairia um texto em resposta ao nosso livro, disseram: “estou escrevendo um texto acadêmico numa revista acadêmica”. Na época, imaginei que seria uma análise avaliando os pressupostos do livro, as fragilidades e, por sua vez, as contribuições. Então, fui logo até o site da revista dar uma olhada no Qualis, um importante indicador de qualidade das revistas acadêmicas sob responsabilidade da CAPES-MEC, porque usaram a expressão “acadêmica” e esse tipo de periódico precisa de pareceristas, os quais não são os donos da verdade, mas diminuem possíveis injustiças. Quando vi, a revista não estava nem mesmo indexada. Pensei: “tudo bem, vamos ler o texto”. Contudo, acabei esquecendo do assunto e deixei para lá. Todavia, esta semana um conhecido do autor do artigo marcou-me no face e disse: “[...] então, por falar em hermenêutica, aproveita e refuta aí o artigo sobre a hermenêutica pentecostal, tomara que as citações que ele usou sirvam!”. Bom, achei bacana, mas respondi que sairá outra obra sobre o assunto e como conheço um pouco da postura do tal interlocutor, recomendei que esperasse o livro, porque responderia algumas questões do ávido crítico. No entanto, fiz o que disse que não faria, entrei no link e fui ler o texto.  Descobri, na verdade, que o “artigo” não é uma típica resenha, mas um misto de ataques desconexos, tipo uma apologética estranha, fazendo afirmações rápidas e repetindo um monte de chavões sobre pós-modernidade sem qualquer preocupação de análise relevante dos seus pressupostos. Por isso, recuso-me em fazer exatamenteuma resenha ou crítica-resposta ao texto por alguns motivos. Cito-os:

1.                  Logo no início, ele faz afirmações equivocadas sobre nosso livro e o coloca como parte do mesmo equívoco da pós-modernidade: “Referindo-se às Sagradas Escrituras, o que deve ser levado em conta essencialmente é a interpretação do leitor em detrimento do que o autor do texto sagrado quis passar”. Em primeiro lugar, como assim “quis passar”? Que expressão é essa? Seria preciosismo da minha parte esperar uma linguagem menos coloquial e mais técnica? Já que o texto é anunciado como acadêmico, poderia afinar os termos. Bom, isso é o de menos. O problema é dizer que a pós-modernidade (e nosso texto é colocado nesse contexto) considera “essencialmente a interpretação do leitor”. Vejam, escrevemos um capítulo só sobre semiótica da culta de I. Lotman. Então, o ponto não seria eliminar o texto e inflacionar o leitor, mas a relação circular entre texto e leitor, reconhecendo as estratégias do próprio texto. Isso não significa deixar de lado o texto! Perceba que o autor vai criticando sem ao menos saber bem do que está falando ou cuidar dos pressupostos epistemológicos do livro que escrevemos.

2.                  Ainda no começo do artigo, ele diz que falará do cerne da pós-modernidade. Então, faz a seguinte descrição da modernidade para depois tratar da sua vilã: “Desde o fim do século XIX, mais especificamente por meio de Friedrich Nietzche, a modernidade, que veio à tona no Ocidente por meio do iluminismo de meados do século XVIII, levou um sério golpe. Um pouco depois, com o estruturalismo, o pós-modernismo avançou fortemente. O estruturalismo afirma que a linguagem é uma construção social, sendo que todas as produções literárias visam dar sentido ao vazio experimental sentido”. Não, a modernidade não “veio à tona no Ocidente por meio do Iluminismo do séc. XVIII”. Não, a pós-modernidade não avançou fortemente com o estruturalismo. E mais, não é o estruturalismo “que afirma que a linguagem é uma construção social”. Essa é uma afirmação das teorias das linguagens em geral. Ou seja, é igual aquele dever de casa comum dos intolerantes: faço uma caricatura pseudoneutra e, depois, “pancada nela”. 


3.                  Continuei lendo: “Fato é que o pós-modernismo não se coaduna com o pensamento cristão tradicional de se entender não apenas as Escrituras, mas também o legado da tradição cristã”. Não entendi? Você, leitor, entendeu? Talvez, se estiver certo sobre o sentido dessa frase, seria necessário para tal autor ler alguns textos de teólogos pentecostais como Karkkainen, Archer ou não pentecostais com Smith. Ainda, além de fazer uma caricatura da pós-modernidade, o texto insiste em criticar o nosso livro como se ele fosse uma defesa acrítica da pós-modernidade/pensamento pós-metafísico, ou como se tivéssemos dizendo que o Pentecostalismo é pós-moderno. Na própria obra explicamos que o pentecostalismo é paramoderno (K. Archer) e antecipa algumas intuições da pós-modernidade. Será que, no fundo, não quer entender?

4.                  Há outra coisa que me desestimula fazer uma resenha do texto. Ele fala de J. Derrida, dos autores pós-modernos etc., mas não vai às fontes. Cita somente intérpretes – e só os que tratam de maneira crítica o que eles mesmos chamam de pós-modernidade. Para termos ideia da infantilidade, quando ele quer diferenciar Modernidade e Pós-modernidade cita um quadro de Alister McGrath, no qual coloca palavras-chave reducionistas que se antagonizam a fim de definir os termos. Olha um pedaço do quadro citado: “Modernidade =propósito; pós-modernidade=brincadeira”. Brincadeira é, na verdade, usar essa definição para diferenciar termos tão complexos e substanciais. Seria o mesmo que pedir para um argentino fazer o mesmo com Pelé e Maradona: Pelé = feio; Maradona = lindo.


5.                  Depois, o artigo inicia uma discussão sobre teoria da linguagem e diz: “No campo da linguística, Ferdinand de Saussure, Roman Jakobson e, principalmente, Jacques Derrida,  Michel  Foucault  e  Jean  Baudrillard  afirmaram  uma  arbitrariedade  na linguagem e que não há nenhuma lei absoluta em termos linguísticos para se procurar”. Aqui, cita-se um monte de nomes, os quais carregam detalhes teóricos que por um lado os aproxima, mas, por outro, distancia-os totalmente. O artigo junta tudo e afirma: “não ha lei absoluta em termos linguísticos para se procurar”. No entanto, a linguística diz o contrário: o sistema linguístico estabelece significação sobre o mundo a partir de redes de significação. Inclusive, a diferenciação entre Langue e Parole (Saussure) tenta dar conta disso. E mais, citar Foucault num mesmo parágrafo no qual se afirma que “Sendo assim, ficaram excluídas do estudo em conjunto com a linguística as relações entre língua e sociedade, língua e cultura e afins” é demonstração de desconhecimento total da Análise do Discurso foucautiana (contra a qual tenho algumas críticas, especialmente por fazer o que o artigo diz que ele não faz). Então, fui até ao rodapé. Adivinhem o que descobri? Novamente não há diálogo com as fontes e só aparecem os comentaristas.

6.                  Depois, o artigo faz um monte de inferências, inclusive sobre a afirmação de César no prefácio a respeito da construção de uma teologia assembleiana já que sou batista etc. E, logo em seguida, diz: “porque não temos conhecimento de que nenhum pentecostal anterior ao  surgimento  da hermenêutica  pós-moderna  afirmou  que  a experiência determina o entendimento do pentecostal concernente às Escrituras Sagradas”. Ora, se não tem conhecimento, por que vai falar a respeito? Claro que há pentecostais que dizem isso, inclusive gente que defende o MHG (R. Stronstad, H. Ervin [não era pentecostal], Fee etc.).

7. Quando o artigo começou a falar de MHG e MHC de maneira completamente equivocada, usar parágrafos do nosso livro fora do contexto, citar somente comentaristas e criar caricaturas sem qualquer precisão, então, parei de tentar analisá-lo, porque precisaria fazê-lo parágrafo por parágrafo. São muitas afirmações imprecisas que exigiriam comentários longos e quase outro artigo. Na verdade, exigiria repetir o que já está no livro, indicar as imprecisões (escrever essas já citadas gastou muito tempo) etc. Confesso que não teria tempo para isso.

Minha impressão final: o texto fica o tempo todo querendo dar aula de história e sobre o uso correto de expressões teológicas – ao mesmo tempo em que cita conceitos com as imprecisões acima citadas. Um exemplo. Ele usa um comentário que escrevi no Blog e no Face para insinuar que usei uma fonte (como Bolsonaro fez com o discurso do representante da OMS) com recortes, tratando-a de maneira leviana. Nessa citação que não está no livro, mostrei que o mesmo Stronstad que defende o método tradicional admitiu que a experiência iluminou a leitura carismática dos pentecostais e não simplesmente o uso mais eloquente ou mais profundo do MHG. Ou seja, serviu-me como fonte para mostrar que até mesmo para esse a experiência não é anulada no processo interpretativo; pronto, foi só isso!  O cara está tão envenenado para achar coisas no texto que é rápido em fazer acusações.  E não somente isso, o artigo não analisa as principais questões epistemológicas e muito menos responde ao ponto central: “quais as melhores ferramentas para a hermenêutica tipicamente pentecostal?”. Foi isso que fizemos. E os caminhos metodológicos que citamos, eles têm alguma coerência? Narratologia, Crítica Literária ou Semiótica podem ajudar nessa tarefa? Nada disso importou no artigo do rapaz. Ou seja, gastou um tempão com jargões e “lacração” boba e não enfrentou tal discussão.

Obs.: Outra coisa, o texto tem vários parágrafos truncados, informações desconexas e joga autores e conceitos em um balaio só. Talvez, se esse artigo tivesse passado por algum parecerista de revista Qualis estrato superior, teria recebido várias correções ou nem mesmo seria publicado. Posso estar errado, mas para averiguar essa minha hipótese, faça o teste e mande esse texto para a Revista Horizonte, Estudos Teológicos, Perspectiva Teológica ou Reflexus. E para citar uma resenha crítica do nosso livro, indico a última publicação da Revista Horizonte (A1), na qual há a recensão feita pelo Dr. Alonso. Ele não alivia e faz duras ponderações, mas, por sua vez, observa as contribuições e limites da obra. Se o tal autor entender que ainda tem coisas a aprender, esta publicação poderá servir de orientação quando quiser analisar outros livros.


  
 


segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Mentiras, fanatismo, teoria da conspiração e Amazônia



Não importa em quem você tenha votado. A discussão em torno dos desmatamentos na Amazônia e o caos nas relações internacionais é de interesse de todos os brasileiros/as. É verdade, a destruição ambiental sempre ocorreu. Na Europa, pós Revolução Industrial, o uso indiscriminado dos bens naturais exigiu anos de políticas e programas sustentáveis, sérios e duradouros, porque, com atraso, mas em tempo, os amigos do antigo continente perceberam a indispensável relação entre progresso e sustentabilidade. Entre suas ações, as relações econômicas internacionais desde então levam em consideração a “limpeza” dos produtos consumidos. Por isso, a preocupação atual não representa simplesmente melindre de fanáticos ambientalistas, mas é a postura do mercado internacional. Pelo contrário, o abuso e fanatismo tornaram-se modus operandi, na verdade, dos nossos ministros e do próprio presidente.

Intoxicado por um tipo de ideologia de extrema-direita, por vezes difícil de categorizar no espectro político, Bolsonaro desde a campanha faz afirmações sem qualquer dado científico e eivadas de teorias da conspiração da época em que os militares governavam o Brasil. Como candidato, várias vezes insinuou que acabaria com a suposta máfia do IBAMA, enfrentaria os xiitas ambientalistas, permitiria o avanço do “progresso” em regiões protegidas e tornou, em seu discurso populista e sem qualquer conhecimento de causa ou provas, a discussão sobre meio-ambiente assunto de “comunistas e esquerdistas que querem acabar com a família”. Para termos ideia, em 2018 somente 5% (!) das multas foram quitadas - o que era frágil ficou pior! Já como presidente eleito, de mãos dadas com o ministro do Meio Ambiente, continuou sua guerra ideológica contra a “chaga ambientalista”. Cortou 50% do orçamento do Prevfogo e criou um núcleo de conciliação para anistiar multas ambientais.

Ainda, o chefe de estado chamou de mentirosos os dados do INPE, desmoralizou os cientistas responsáveis pela análise científica dos desmatamentos e focos de queimadas, novamente afirmou que acabaria com a festa das multas ambientais, ou seja, tratou as instituições de fiscalização e proteção como maus brasileiros. Com esse apoio irrestrito e descarado aos devastadores e criminosos, tratados por Bolsonaro como trabalhadores que desejam o progresso nacional, ruralistas, fazendeiros e madeireiras triplicaram suas invasões, tomadas de terra, queimadas e avanços a regiões de preservação e terras indígenas demarcadas. Ocorreu no Pará, região com altíssimo índice de desmatamento e queimadas de áreas de preservação, onde empresas derrubam a mata e transportam sua madeira criminosamente, o “Dia do Fogo”, em nome do apoio do presidente e confirmação da atual política ambiental. Em resposta e durante esse caos, o governo disparou várias afirmações inconsequentes. Acusou as ONGs pelas queimadas, mentiu sobre o trato ambiental na Alemanha, publicou fake news a respeito da Noruega, desdenhou sua fundamental ajuda financeira e trouxe de volta a velha teoria da Ditadura Militar de que índios, ONGs e países internacionais estão em conluio para tomar a Amazônia do Brasil. O resultado: crise nas relações internacionais, desespero nacional e risco gravíssimo de embargo econômico. E não pensem que tal quadro é simplesmente por conta de “revanchinha” europeia. O calculo é bem simples: negociar com gente como Bolsonaro é ser incoerente com ações ambientais em seus próprios países, fortalece empresas irresponsáveis, algumas delas instaladas aqui no Brasil, e colocam em risco seus próprios investimentos.

Não somos bons de memória, mas na época do Regime Militar foi exatamente o lema “integrar para não entregar” a grande desculpa e o discurso legitimador para eliminar tribos indígenas, arrancar suas terras e apoiar empresas que, sem qualquer fiscalização ou limites, entravam mata adentro destruindo tudo em nome da “soberania nacional”. Em certo nível, o envio de militares para a Amazônia é uma ação desesperada e só reafirma o desqualificado trato do atual governo com o assunto. O caminho é outro. Antes de apagar o fogo, precisa prevê-lo com inteligência. Assim, o cuidado com a biodiversidade amazônica e seu gigantesco bem-natural se constrói em parceria com os Estados localizados nas regiões protegidas, especialmente fortalecendo as instituições de fiscalização e levando a sério os dados do INPE, tanto os diários quanto anuais. É fundamental dialogar com respeito e usar bem os recursos internacionais, projetando avanços sustentáveis e responsáveis nas regiões amazônicas, o que gerará emprego e preservação. Não adiante se esconder em retórica, o governo deve retomar os valores cortados do IBAMA e Ministério do Meio Ambiente e, claro, demitir o atual ministro, mostrando claramente sua total intolerância, com ações e discurso, aos avanços criminosos sobre as terras indígenas e áreas de preservação. E, imediatamente, parar de mentir e desmontar os movimentos ambientalistas e cientistas responsáveis por esse tema tão fundamental. Ou seja, as políticas ambientais brasileiras precisam mudar completamente!

Por fim, nós, igreja e lideranças, especialmente os de perto, precisamos imediatamente de senso crítico e posicionamento profético. Nossa tradição e teologia nos dão tantos instrumentos que qualquer omissão neste momento significaria negar o evangelho diante do mundo.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Os movimentos pentecostais e carismáticos e a pós-modernidade. De que lado ficar?




Comparando ao movimento da Ortodoxia Radical, James K. Smith diz ser o Pentecostalismo uma terceira via entre o racionalismo moderno e relativismo pós-moderno ("What Hath Cambridge to do with Azusa Street? Radical Orthodoxy and Pentecostal Theology in Conversation". In: PNEUMA: The Journal of the Society for Pentecostal Studies, vol.25, 2003). Para esse autor, a Ortodoxia Radical como crítica à Modernidade não seria antimoderna e também não é exatamente “pós-moderna” ou, muito menos, pré-moderna. Smith explica que os movimentos de reavivamento do séc. XX representam outro tipo de Modernidade ou alternativa para esse paradigma e seu racionalismo. O Pentecostalismo e movimentos carismáticos modernos têm os mesmos traços e partilham as características epistemológicas com a chamada Ortodoxia Radical.
Em seu trabalho, Smith faz uma excelente síntese a respeito da cosmovisão pentecostal-carismática, o que aponta para sua epistemologia. Ele elenca pelos menos cinco pontos:
(1) Abertura radical para a ação sobrenatural de Deus como realizador de algo diferente e novo, tendo em At 2 o modelo petrino de reconhecer as ações não naturais do Espírito como obras inesperadas de Deus. A ideia fundamental aqui é a expressão “isto é aquilo” (At 2.16); uma abertura para a alteridade.
(2) Por causa disso, há ênfase no contínuo ministério do Espírito, incluindo o dom de revelação, a profecia e a centralidade das dádivas carismáticas na Igreja (tratada como comunidade pneumática).
(3) No contexto do ministério do Espírito está a crença na cura do corpo como parte central do aspecto do trabalho de expiação. Esse dado é ponto antagônico ao dualismo corpo-alma fundamentalista e alma/mente-corpo do racionalismo.
(4) Ênfase no papel da experiência em contraste com a racionalidade típica da Teologia protestante/evangélica tradicional. Isso enraíza a tradição carismático-pentecostal e a Ortodoxia Radical na epistemologia afetiva, o que desfaz o dualismo sujeito-objeto da Modernidade iluminista.
(5) Diferentemente da crítica aos carismáticos-pentecostais em relação ao conceito de “outro mundo”, o movimento é caracterizado por um compromisso central com o empoderamento, justiça social e por certa opção pelo marginalizados, o que remonta às suas raízes na Azusa Street, cujo fenômeno se realizou em lugares simples e liderado por um pregador afro-americano.

terça-feira, 23 de julho de 2019

Brasil bolsonariano: como entendê-lo?




É democrático e cívico aceitar o resultado das urnas. Quando Aécio e o PSDB fizeram balburdia com esse papo de fraude pós-derrota em 2014, fui rápido em criticar. Da mesma forma, aceitei as urnas em 2018, a despeito de lamentar. Ou seja, votar no Bolso era direito de qualquer um. Contudo, não é possível entender alguns defenderem ou eufemizarem os absurdos do presidente. O representante da nação teve coragem de relativizar a maior vergonha humana, a fome. Afirmar que não há fome no Brasil é um absurdo tão grande que deveria deixar todo mundo envergonhado. Pior que isso, alguns de seus defensores, para justificarem ou sei lá o quê, publicaram os dados da grande miséria no Brasil e depois, ironicamente, perguntaram: "a fome não tinha acabado?".  Caiam em si, parem de sandices! Exatamente por pessoas passarem fome no Brasil, a fala do presidente é odiosa. E mais, mesmo que retoricamente, qualquer presidente afirmaria em seus projetos lutar contra a fome e nenhum governo em sã consciência desdenharia desse assunto tão grave. A luta contra a fome nunca zerou sua existência e reconhecê-la é o caminho mínimo, primeiro passo óbvio, para demonstração de preocupação e possíveis ações. Dizer que ela não existe é desumano, imoral e grave pecado. Rir da morte, ironizar o desumano e encobrir o que há de pior nas relações sociais é desconsiderar a preocupação divina e sua clara defesa pelos direitos dos miseráveis. E aos pastores e pastoras próximos ao presidente e inseridos em seu governo, por favor, sejam fiéis ao evangelho e aproveitem o lugar no qual estão para, de alguma forma, iluminarem consciências. 

O mesmo presidente da república, sem qualquer reserva, subestimando todo mundo, inclusive seus eleitores e eleitoras, vai às redes sociais e faz uma live e diz que favoreceria seu filho e, mesmo que não votassem mais nele, daria cabo ao projeto de indicar Eduardo Bolsonaro como embaixador em Washington. Isso deveria deixar a todos estupefatos e revoltados, porque representa o mais nítido nepotismo e desrespeito! Mas, pelo contrário, alguns dizem: "mas ele é mito! Ajuda a família e não esconde". Por outro lado, há um silêncio conivente em relação à luta do seu outro filho, Flávio Bolsonaro, contra os avanços da investigação no caso do seu ex-assessor Queiroz (lembrando que ele próprio também empregou vários parentes). Em suma, aberrações brotam no governo e os eleitores do PSL preferem zombar dos críticos e fazem sinal de arminha, "lacrando".

Como se não bastasse, de forma irresponsável, o presidente eleito, sem qualquer averiguação prévia, desmente o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) sobre o desmatamento da Amazônia. Deixando de lado qualquer decoro, ele simplesmente joga à plateia: "o INPE está a serviço de alguma ONG", “tenho convicção que os dados são mentirosos”. Como o Bolso tem coragem de declarar isso!? Vejam, o mundo todo compra e vende, negocia e faz embargos econômicos, levando em consideração o tema da sustentabilidade. Por incrível que pareça, mesmo assim, seus antigos eleitores ovacionam sua resposta. Como em um filme de terror, outras cenas tenebrosas vão jorrando: fala sobre os nordestinos, perseguição ao governador mais bem avaliado em pesquisas atuais (Flavio Dino), suspensão dos contratos com sete grandes laboratórios públicos para produção de 19 remédios de distribuição gratuita pelo SUS (o que prejudicará 30 milhões de dependentes), a ameaça de redução da multa de 40% do saldo do FGTS paga a trabalhadores demitidos sem justa causa etc. E pior, o presidente errou (ou mentiu) ao falar que a multa de 40% do FGTS foi criada pelo ministro Dornelles, no governo FHC, porque tal direito trabalhista foi imposto pela Constituição de 1988! Na verdade, no mandato de FHC foi criado um adicional de 10%. Ainda sobre esse grande equívoco, Bolso diz que por causa dessa multa “o pessoal não emprega mais”. Como isso é possível!? Esse tipo de resposta sobre o desemprego no Brasil seria aceito em grupos do Zap, mas nunca deveria vir de um presidente! E mesmo assim, parte do seu eleitorado continua tratando como se nada estivesse acontecendo ou, pior, corroboram com seus disparates.

Seria arrogância? Ignorância? Insensibilidade? Não sei bem! Todavia, essa relação religiosa com o Bolso transformou brasileiros em eternos eleitores. Se você foi crítico aos governos anteriores e sempre se escandalizou com o protecionismo político de alguns eleitores do PT, não se permita cair no mesmo erro. Pelo bem do Brasil, não importa em quem você tenha votado, agora é tempo para averiguar, exigir posturas dignas, projetos e respeito!

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Vai tristeza e diz para ele...



Hieorofania é irrupção, sacralidade teimosa e invasora do mundo da vida e sua cotidianidade. Na voz e violão do imortal João Gilberto, “Chega de saudade” pode ser colocada nessa categoria, pois é evento epifânico. Depois dele, nunca mais nossos ouvidos brasileiros seriam os mesmos. A primeira vez dessa canção, nos lábios de Elizabeth Cardoso, o violão no fundo do disco “Canção do Amor Demais” indicava os relampejos do incomum, um totalmente outro cuja melodia apontava recriação; era a arte "gilbertiana" despontando. Pouco depois, violão posto, sentado tipo leitor medieval, peito em riste e alma ungida de beleza, no final dos anos cinquenta, surge entre nós a voz-mansa, dedilhado-perfeição e melodia-síntese. Eis aqui a Bossa Nova, era o João do Brasil mudando a estética. Não me importa (como diz um texto bonito que li por aí) seu claustro, conflitos relacionais ou esquisitices pessoais, vale-me o orgulho de ser da mesma Terra Brasilis de tantos outros “joãos” e “marias”.

Na capa do antigo vinil, mão em rosto e olhar fito, João Gilberto parece confessar, extasiado e cansado, o acabara de provocar. De agora em diante, diversas nações seriam obrigadas a ouvir a língua mais poética do mundo e curvarem-se diante de sua potencialidade. Ele é brasileiro! A genialidade agora carrega a memória indígena, o sotaque melódico africano, a batida em cordas do tamborim e a conjugação de verbos polissêmicos do terceiro mundo.

Certa vez, o poeta Carlos Nejar – esse também é acostumado com hierofanias – disse-me que o homem é menos do que o poeta. Não estaria o escritor de "Os Viventes" desconsiderando a grandeza do artista. Pelo contrário, sua fala eterniza o autor em sua criação e eleva-o à condição insuperável de canal, fonte e caminho para o fulguro da transcendência. Por isso, a tristeza não é maior porque a arte de João Gilberto perenizou-se na cultura poética da história humana e todos poderão, ao revisitá-la, sem que o tempo ou a morte ocultem-na, estupefatos suspirar: sagrado, belo!

Sim, vai saudade e diz para ele que sua obra fica (!) e animará a vida e alma de tantos quantos ouvirem seus acordes, voz, violão e paixão.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

NEM GREGOS, NEM TROIANOS: POLÍTICA BRASILEIRA E O RADICALISMO CEGO






Ninguém faz avaliações sem pressupostos, deferências, referências ou preferências. Todos são interessados por aquilo que avaliam e a neutralidade seria a negação do que mais nos caracteriza, a saber, nossas subjetividades, tal qual negar o corpo, história e vida. Todo discurso é eivado de ideologia, alerta-nos a Análise do Discurso. Contudo, a fim de evitar idolatria e irracionalidade, para refletirmos o Brasil juntos, como povo, precisamos vencer a inflação dos nossos desejos pessoais e preferências.
Por exemplo, cresci acreditando que só pobre é preso. Acostumamo-nos com a impunidade. Nunca imaginaria ver grandes empresários e tantos políticos, quando corruptos, presos. Mesmo que alguns deles estejam livres, como o doleiro Cerveró, presenciamos a aplicação da justiça sobre setores e pessoas historicamente imunes – esperamos que a “sangria não seja atada”. A Lava-jato prestou um serviço importante. Contudo, isso não é um salvo-conduto permitindo juízes e promotores agirem como bem quiserem. A própria Lava-jato corre risco se permitirmos ou legitimarmos processos com problemas ou ilegalidades. Caso haja algum tipo de equívoco na maneira como foi articulado qualquer procedimento, é preciso averiguar, porque somente preservando a isonomia das instituições e o Estado Democrático de Direito será possível manter a justiça e a democracia. Então, nem gregos ou troianos. Atacar toda a lava-jato é demasiado equívoco, mas blindar acriticamente Moro como se ele pudesse fazer qualquer coisa, também é muito perigoso e coloca todos nós em risco, porque precisamos de tribunais submissos à ética e procedimentos aceitos legalmente. Todo rigor à corrupção, mas com todos os limites da Constituição; nem mais, nem menos.
A mesma coisa se aplica em relação ao fenômeno do anti-lulista instalado no Brasil. Por sua vez, a idolatria protecionista pró-PT é a outra face da moeda. Não podemos negar, o Brasil alcançou taxas econômicas reconhecidas no período do governo do PT, tirou milhões da miséria, levou universidades aos cantos mais esquecidos do Brasil e passou a crise econômica sem abalos. É pouco razoável fingir que não houve avanços sociais no período do governo Lula. Todavia, é preciso admitir que o PT fez alianças contrárias às suas promessas, muitos de seus políticos se envolveram em corrupção, foram seduzidos pelo poder, não fizeram as reformas prometidas e não tiveram coragem para enfrentar interesses de gente que saqueia o Brasil. É equivocado não admitir tais coisas. No entanto, seria outro extremo defender raivosamente a ideia do PT como inventor da corrupção, responsável pela instalação do saque à Petrobrás ou o criador da ilegalidade entre empresas e políticos. Essa narrativa é perigosa, porque fragiliza a consciência e torna o povo susceptível a respostas simplistas a problemas complexos. Toda escolha como fruto de ódio tem poder de nos destruir. Por isso, não seria nada inteligente interpretar os que fazem essa análise como ptistas ou antiptistas.
Dentro desse contexto Lula-PT está outro fenômeno similar, o bolsonarismo. Criou-se no Brasil desde as eleições a ideia de que qualquer análise ao governo significa ser petista ou marxista. Esse é mais um indício de extremismos e dualismos superficiais. Mesmo com a existência de outros candidatos, qualquer crítica seria sinônimo de defesa do Haddad. E o contrário, por vezes, também acontecia. Era como se Ciro, Marina, Daciolo, Alkmin e Boulos não existissem e estivéssemos em uma eleição bipartidária. Essa lógica se alargou e agora, depois das urnas, ainda permanece. Fica difícil a participação pública equilibrada, porque o protecionismo impede as críticas e avaliações necessárias. Para os mais exaltados eleitores do atual governo, não há nada para se criticar ou não existe qualquer razão para desconfianças. As falas mais radicais e os episódios estranhos são aceitos passivamente. Quando alguém, mesmo da direita, faz qualquer intervenção ou ponderação logo é chamado de esquerdista ou marxista enrustido (vejam o caso da deputada Janaína Pascoal ou do deputado líder do MBL). Na outra ponta, raciocínio similar deve ser aplicar ao ressente escândalo da cocaína encontrada na comitiva do governo. Seria também precipitação decretar sem um processo legítimo de investigação qualquer culpa ao presidente da república.
Talvez, um dos dualismos mais difíceis é a demonização mútua esquerda-direita. No Brasil, por exemplo, criminalizou-se qualquer assunto que pareça estar próximo do horizonte reconhecido como próprio dos interesses da “esquerda”. Entre tantas razões não muito louváveis, como a pouca sensibilidade com políticas e discussões sociais, o antagonismo profundo ao PT tornou pecado escabroso qualquer interesse relacionado à esquerda. Contudo, algumas coisas precisam ser ditas sobre isso. Primeiro, preocupação por justiça social, direitos humanos, bem estar social, defesa dos fragilizados sociais e direito são preciosos temas civilizatórios. Se a esquerda os tornou seus temas, é de bom alvitre reconhecer o acerto. Por outro lado, a direita clássica como sua defesa à democracia e instituições precisa ser valorizada.
Por isso, creio que a Igreja, enquanto movimento de Jesus, observa e discerne a partir dos valores do Reino tanto as escolhas pessoais quanto o funcionamento social. Assim, precisa sempre desconfiar de qualquer projeto político limitado e temporal, e reconhecer os pontos positivos dos dois ou três lados. Contudo, por sermos também historicamente localizados, precisamos continuamente colocar sob suspeita nossas leituras e sermos abertos às múltiplas possibilidades, o que ajudará na melhor aplicação e reconhecimento dos indícios do Reino em nosso contexto. Essa é a razão de não fecharmos, enquanto igreja, com nenhum projeto político partidário; nenhum! O contrário seria, sim, misturar igreja e Estado. Dessa forma, especialmente para os protestantes/evangélicos, o melhor modelo é a laicidade do Estado, o que nos projete mutuamente e nos dá liberdade de voz quando necessário para denúncia e anúncio, como a tradição bíblica e a história da Igreja testemunham.

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Apocalipse 13 e a Marcha para Jesus em SP






O Apocalipse de João foi interpretado de várias maneiras. Na tradição futurista, comum entre os dispensacionalistas, as trombetas, taças, selos, monstros, mortes e demais imagens preservadas no texto são lidas como eventos da história da Igreja ou, em grande parte, presságios do fim dos tempos. Mesmo importante entre tantas denominações, essa perspectiva acaba perdendo de vista, ou eufemiza, a dura crítica do visionário. Seguindo tantas pesquisas já bem estabelecidas, o contexto do Império Romano, sob a égide de Domiciano, é uma boa hipótese para compreensão na narrativa apocalíptica. Sem negar seu caráter “por vir”, há tantos indícios no próprio texto que mesmo os futuristas admitirão o primeiro nível de compreensão. Hermeneuticamente, a perspectiva do texto como denúncia ao discurso imperial e sua falsa paz, Pax Romana, serve-nos ótimos óculos para interpretação e leitura contextual. Mais do que fonte de antecipação para eventos futuros, esse horizonte ajuda-nos analisar, à luz das Escrituras, a relação da igreja brasileira com o Estado.

Entre os textos do Apocalipse, o capítulo 13 é o mais instigante. Na tarefa de entendê-lo, precisamos dar uma olhada na narrativa anterior, Ap 12, no qual aparece uma mulher vestida de sol com a lua nos pés. Ela estava para dar à luz. Inesperadamente, aparece um Dragão, com sete cabeças, dez chifres... horrível! O ser caótico desejava devorar o filho da mulher cósmica, mas antes disso Deus o arrebatou para o trono. Na mesma parte, outra cena é pintada. Há uma briga no céu entre Miguel e os anjos contra o Dragão. Chamado de antiga serpente, Diabo e Satanás, ele cai precipitado na terra, quando volta a perseguir a mulher e seu filho. Novamente seu intento violente é frustrado. Contudo, João informa que agora suas forças seriam canalizadas contra os seguidores de Jesus, talvez por serem os representantes da criança livrada. Entenda, o visionário está descrevendo sua experiência e indicando as características do demoníaco para serem capazes de resistir e habilidosamente discerni-lo quando despontasse. Ele está preparando-nos para o cap.13 e mostrará onde o encontraremos. Deixe-me explicar algo. Hoje em dia não defendemos nas pesquisas a teoria da perseguição. É o contrário. Com as cartas enviadas às igrejas da Ásia, percebemos que as comunidades viviam certas benesses e estavam felizes no império (“rico sou e de nada preciso... [Ap 3.17]”, lembra?) . Todavia, João percebeu esse risco e alertou as igrejas e lideranças a respeito dos perigos dessa relação e desnudou a falsidade do discurso de paz veiculado pelo Império, porque negava princípios básicos da fé anunciada pelo Cordeiro.

Bom, agora podemos ler o capítulo 13. Se olharmos com cuidado veremos a descrição de duas bestas: do mar e da terra. A primeira condensa em si todas as características dos animais de Dn 7. Ou seja, ela reúne as mazelas e monstruosidades dos reinos contrários a Deus na história. Por sua vez, a segunda besta está a serviço da primeira e leva o povo à adoração idólatra e aceitarem-na como digna de valor religioso. Seus sinais e linguagem seduzem alguns das igrejas. Eles recebem uma identificação de pertencimento e sem a marca não entrariam no necessário sistema de compra e venda. Dentro dessa densa descrição, quando a primeira besta é descrita, lemos em Ap 13 uma informação fundamental, o que coloca João no lugar de enfrentamento direto: “E deu-lhe o Dragão o seu poder, seu trono e sua autoridade”. Pasmem, o Apocalíptico está chamando o sistema imperial de representante do Dragão, do próprio antagonista de Deus e do Cordeiro! Não menos perigosa é a besta da terra, porque ela tem aparência de cordeiro, mas na realidade é eco do Dragão e está a serviço da primeira Besta.


Não sei se você percebeu, mas João desconfia do Estado. Mesmo se auto-afirmando como promotor de paz, os indícios sociais e a revelação denunciam para o visionário o engodo da relação espúria entre religião e Besta, Igreja e Estado. Deus mostrou ao profeta os indícios, ações e práticas do Império contrários ao projeto de Jesus. O visionário percebeu que a violência era maquiada por um discurso de paz, suas taças estavam cheias de sangue e a balança desigual. No entanto, os benefícios e trocas cegavam os seguidores de Jesus na Ásia, amordaçavam a denúncia dos crimes e impediam a igreja de se afastar. Alguns não tinham manchado suas roupas, mas muitos sucumbiram e foram seduzidos. Se levarmos a sério o Apocalipse de João, encontramos importantes advertências: 1. não é possível seguir o cordeiro sem desconfiar do Estado; 2. cuidado, não deixe os benefícios do sistema político favorável cegarem-no a ponto de passarem desapercebidamente os indícios de projetos contrários ao evangelho; 3. a única relação entre igreja e Estado é a profética.

E a marcha para Jesus desta semana em SP? Eu vi pastores e pastoras ovacionarem e conduzirem a multidão aos pés do Estado que usa o símbolo de uma arma em punho como parte de sua proposta e imagem. Assisti consternado, a Igreja e seus líderes, no meio de louvores e culto, em gritos, repetirem o slogan de um projeto político partidário por vezes cheio de violência. Ouvi chamarem de mito um político e fizeram do púlpito palanque – interessante, o dragão está presente em vários mitos cosmogônicos do Mundo Antigo.

Não se engane, quando a igreja perde seu lugar profético e se mistura com o Estado, seja por inocência ou desejo de poder, os pastores se tornam representantes da Besta e os membros candidatos a serem marcados por ela.

sexta-feira, 24 de maio de 2019

O uso do Método Histórico-crítico na erudição bíblica pentecostal: Robert Menzies



Já tenho demonstrado em livro (“Experiência e Hermenêutica Pentecostal” - CPAD), artigos e publicações menos técnicas em posts, que a hermenêutica pentecostal tem uma história dinâmica, dialogal e multifacetada. Se no início do Pentecostalismo os fiéis pentecostais liam a Bíblia de maneira “pragmática” (Stronstad), com horizontes muito próximos do “Bible Reading Method” dos movimentos de santidade, o mesmo não pode ser dito em relação às décadas posteriores, quando acadêmicos (Fee e outros) se deram o trabalho de responder à acusação de ser a leitura pentecostal eivada de alegorias imprecisas. É nesse contexto de aproximação com a academia que encontraremos estudiosos pentecostais dialogando com as modernas pesquisas bíblicas e se valendo de ferramentas da exegese acadêmica.

Na esteira desse fenômeno, está o importante biblista pentecostal Robert Menzies. Conhecido entre nós brasileiros, o doutor pela Universidade de Aberdenn é um exemplo da utilização de métodos críticos na erudição pentecostal. Como sabemos, o Método Histórico-crítico (MHC) é um conjunto de ferramentas desenvolvidas no período da Modernidade, sob os auspícios do paradigma do sujeito. Entre essas estão a Crítica Literária, Crítica das Formas, Crítica da Tradição e Crítica da Redação. Se por um lado o MHC era tratado como destruidor da fé e da veracidade ou historicidade das narrativas bíblicas, por outro, alguns evangélicos de perspectiva mais neo-ortodoxa utilizavam-no de maneira moderada. Consequentemente, mesmo que isso levasse à confirmação de que a Bíblia é um conjunto de tradições e fontes redigidas teologicamente, ela não perderia o caráter de obra divina e não seria tocada a certeza de que seus autores foram instrumentos da ação do Espírito Santo.

Percebemos nitidamente essa predisposição metodológica na belíssima obra de Menzies publicada pela CPAD, “Pentecostes: essa história é a nossa história”. Nesse livro, quando no final do parágrafo no qual se discute o uso de Joel, afirma-se que At 2 “mostra sinais de edição cuidadosa por parte de Lucas”. Para entendermos o que isso significa, antes é necessário saber que a Crítica da Redação avalia o processo da produção dos textos bíblicos e pressupõe que o autor fez esse trabalho dentro do escopo redacional pretendido para sua obra. Essa crítica observa a orientação teológica que guia a seleção das fontes e as mudanças realizadas nas tradições recebidas. Temendo ser mal interpretado, Menzies faz uma nota de rodapé explicando que mesmo instrumentalizando-se dessa perspectiva própria do método crítico, ele não pretende desconsiderar a historicidade da Bíblia ou desqualificá-la. Veja o que ele diz: “Quando me refiro à atividade editorial de Lucas, não quero de forma alguma dar a entender que a narrativa de Lucas é historicamente inexata. O que desejo é apenas salientar que, enquanto Lucas escreve história e história com precisão, ele o faz com o propósito teológico em vista [...]. Embora seja suposição minha de que o trabalho editorial de Lucas reflete com precisão e enfatiza temas dominicais e apostólicos, a questão essencial que procuro responder centraliza-se no conteúdo da mensagem de Lucas. Afinal de contas, é essa mensagem que acredito ser inspirada pelo Espírito Santo e autorizada para a igreja” (p.26).

Com essa moderação, sob as luzes do evangelicalismo americano, Robert Menzies usou o MHC na leitura de Atos dos Apóstolos. Menzies, ou o próprio Stronstad, percebeu estratégias redacionais teologicamente articuladas em Lc-At e afirmou que o autor editou tradições anteriores modelando-as em um processo redacional, o que só seria possível afirmar aplicando a crítica da redação. E, por incrível que pareça, foi exatamente esse uso do MHC pelos eruditos pentecostais que possibilitou tratar Atos não como simples descrição do passado, mas história teológica, perpassada por padrões literários organizados com objetivos também didáticos; assim, aumentou-se a ênfase no caráter teológico da narrativa de Atos tornando-a mais do que exposição de acontecimentos do passado, mas afirmações pneumatológicas, eclesiológicas, missiológicas etc. Tanto Paulo quanto Lucas, nesse sentido, são verdadeiros teólogos.

Na obra “Empowered for Witness”, Menzies mostra mais uma vez sua dependência às ferramentas histórico-críticas. Em seu importante e refinado livro, ele lerá a pneumatologia de Lucas-Atos em diálogo com a tradição do Judaísmo do Segundo Templo e a vasta literatura apócrifa e pseudepígra – como a Crítica da Tradição do MHC recomenda fazer. Por isso, seu trabalho mapeará os textos da diáspora, Sirácida, a literatura apocalíptica (1 Enoque e outros) e a literatura de Qumran (Testamento dos dois Espíritos [1QS]). Ou seja, para descrever o Espírito Santo em Lucas ele considera as tradições judaicas, em uma perspectiva da história da tradição e história comparada das religiões. Citando especialistas do judaísmo do Segundo Templo e eruditos do NT como G. Vermes, E. P. Sanders e J. Neusner, Menzies lerá a experiência do Espírito das comunidades cristãs neotestamentárias a partir do background judaico. Leia o que Menzies afirma: “reconheço que o Judaísmo providenciou o contexto conceitual para a reflexão pneumatológica de Lucas, assim como para a igreja primitiva” (p.49).

Contudo, isso não deveria incomodar o/a leitor/a, porque ao introduzir algumas das partes do mesmo livro ele admite o uso de pelo menos duas ferramentas do MHC, Crítica Literária e Crítica da Redação. Ainda citando Menzies: “o estudo que se segue é uma tentativa de reconstruir o papel de Lucas no desenvolvimento da pneumatologia do Cristianismo das Origens. A perspectiva da pneumatologia lucana pode ser elucidada através de uma análise da maneira como ele usa e modifica Marcos e Q [fonte reconstruída pela crítica literária]” (p 17). Mais a frente, de forma contundente, ele afirmará: “o método de análise empregado é a crítica da redação. Eu examinarei relevantes passagens em Lucas-Atos no esforço de detectar os aspectos da criativa contribuição de Lucas para a tradição concernente à obra do Espírito Santo” (“Empowered for Witness”, p. 104).

Na história da hermenêutica pentecostal, percebemos que não há “o” método que seja próprio da sua identidade. Mesmo os pentecostais mais animados com a maneira reformada de ler a Bíblia, os quais, por vezes, citam R. Menzies, não podem se esquecer da presença, em sua forma mais moderada, do “malquisto” Método Histórico-crítico. Entendam: Santo, perfeito e bom é Deus e não o método exegético. A despeito dessa obviedade, infelizmente percebemos, aqui e acolá, fundamentalismos metodológicos alimentados de apologética rasa e infantil.


terça-feira, 21 de maio de 2019

“TODA AUTORIDADE GOVERNAMENTAL VEM DE DEUS”. ISSO SIGNIFICA LEGITIMAR QUALQUER GOVERNO?




Entre as suas últimas publicações, o presidente divulgou um vídeo no qual o pastor congolês Steve Kunda exorta o Brasil a aceitá-lo (Bolsonaro) como enviado ou empoçado por Deus. Por isso, não deveríamos, disse o pastor, criticá-lo, mas simplesmente aceitar a soberana vontade do Senhor. Essa afirmação, entre tantos outros problemas, tenta criar em torno do presidente uma redoma divina, desqualificando qualquer crítica ou oposição, porque significaria ser contra o próprio Deus. O cinismo antidemocrático dessa publicação ecoa o uso desonesto de uma série de textos bíblicos e discursos teológicos, os quais, por vezes, são aplicados aos pastores e pastoras que buscam neutralizar pelo medo qualquer objeção. Contudo, quando a mesma estratégia é instrumentalizada pelo representante da República, estamos diante de grande ameaça à democracia e legitimação religiosa do autoritarismo contra o Estado Democrático de Direito. Um texto não citado pelo bispo congolês, mas presente nas memórias de seu discurso é Rm13. Quero aqui esclarecer alguns detalhes sobre essa passagem bíblica, o que impedirá ser usada de base para desarranjos e malabarismos contra a democracia.

Em Romanos 13.1 lemos: “Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas”. Essas palavras precisam ser lidas à luz da estrutura política romana. Paulo não presumia relações democráticas no Império, mas tratou pastoralmente a maneira como os cristãos deveriam lidar com a tarefa de vivenciar a fé no mundo estabelecido sob a égide imperial. Vejamos o texto. O apóstolo começa, de maneira abrupta, depois de discutir sobre as relações pessoais (Rm 12.21), afirmando que “toda alma” (pâsa psyché), referindo-se a todas as pessoas, deveria se “subordinar”. O verbo hupotásso tem sentido de ação livre em relação a alguma coisa. A submissão aqui é aplicada às autoridades constituídas. Paulo diz que toda e qualquer autoridade é estabelecida por Deus seguindo algumas tradições judaicas (Dn 2.21; Is 41.2ss; Pr 8.15; Eclo 17.7; Pr 8,15-16). No entanto, ele também diz: “é instrumento de Deus para estabelecer o bem” (v.4). Esta última afirmação precisa ser lida como uma “generalização” ladeada por “idealização”. Ou seja, em termos ideias as autoridades estão a serviço da promoção do bem. E quando o contrário acontece, como no Nazismo, por exemplo?

A ideia é a seguinte: ora, se a origem das autoridades é divina, logo esta estará sempre a serviço do bem e qualquer que se atrever questioná-la será contrário aos desígnios divinos (v.2). Isso quer dizer que Paulo desconhecia autoridades que descumprem esta função ideal? Pelo contrário, em 1Co 6,1-11 ele tece críticas aos juízes injustos. Contudo, em Rm 13 ele não leva em consideração o desvio desse projeto ideal, mas estabelece o que é em termos paradigmáticos – ou seja, ele parte do modelo previsto para as autoridades. Por isso, esse texto não pode ser usado como instrumento de aceitação passiva diante de lideranças autoritárias e injustas, ou para desqualificação, por exemplo, da luta contra as ditaduras. Só há espaço para essa perigosa interpretação se lermos os versos 1-2 separando-os dos versos 3-4. A abstração de que os governos servem para conduzir ao bem e punir o mal é o que legitima a afirmação de que são instituídos por Deus. A mesma ideia aparece no livro Sabedoria (6,1-11) , no qual se diz que o Senhor é quem dá o domínio aos governos (v.3), mas estes devem servir ao Reino de Deus (v.4), pois se não o fizerem serão punidos (v.5). Então, em Rm 13 Paulo não está interessado em falar das autoridades que não seguem sua vocação de serem promotores da justiça, mas em apresentar o plano original das autoridades, o que legitima o pagamento de impostos. Conseguintemente, qualquer autoridade que seja injusta, corrupta ou desumanizadora não é legítima, porque não está seguindo o estabelecido por Deus para sua vocação.

O apóstolo simplesmente constrói sua argumentação seguindo um princípio teológico: “Deus governa este mundo em oposição aos tiranos e a pesar deles mesmos” [Uwe Wegner - RIBLA 4] . O texto bíblico preocupa-se em defender o pagamento de impostos e tributos por consciência e liberdade, como um bom cidadão, e não por medo de punição ou imposição (v.5-7). Por sua vez, só é possível entender essa discussão lendo o contexto de generalização e idealização. O governo estabelecido por Deus e promotor da justiça é digno de receber os tributos, como ministro de Deus (v.4). Assim, deve-se honrar ou resistir à luz do quanto se adéqua ao projeto idealizado para as autoridades. Consequentemente, resistência e honra devem ser observadas e aplicadas a partir do contexto da materialização ou não do propósito da instituição estabelecida por Deus. Assim, percebe-se aqui o interesse pastoral paulino com a participação cívica da igreja.

Ainda, no contexto que precede Rm 13,1-7 (Rm 12, 9.17.21) está em jogo a prática do bem, que aqui pode ser realizada na justa participação civil de pagamento de tributos e, como contrapartida, o governo exercer com equidade sua função de estabelecimento do projeto exposto em Rm 13.3-4. O papel do governo é imunizar o povo das ações desumanizadoras e injustas. Nessa liderança idealizada, quem pratica o mal precisa temer as autoridades; enquanto os bons e justos, honrarem-na. Nesse sentido, a melhor interpretação dessa discussão paulina não é defender a aceitação de qualquer ação governamental, como se Paulo estivesse anulando a crítica profética. Pelo contrário, em sua parénese ele defende a participação cidadã consciente e livre pelo bem social. Além disso, não é possível afirmar que o texto nega a oposição política adequada aos governos e autoridades que não cumpram seu papel no serviço estabelecido por Deus.

Assim, como – por incrível que pareça – fez Janaina Pascoal, deputada do PSL, precisamos nos perguntar “se um presidente da república na plenitude de suas faculdades mentais publicaria um vídeo desses”. Eu estenderia a pergunta da nobre deputada, a mesma que pediu o impeachment da Dilma e antiga defensora do Bolso, se os evangélicos desse país cairão nessa insanidade e se permitirão ser usados sob a tutela de desonestas leituras da Bíblia.

sábado, 27 de abril de 2019

ELOGIO DO ABSURDO: QUANDO A IGNORÂNCIA TOMA AS RÉDEAS DO MINISTRO E PRESIDENTE






          Na obra “Elogio da Loucura”, de Erasmo de Roterdã, a Loucura é descrita como um ser e divindade do Olimpo. No livro, ela fala de si mesma como guiadora e realizadora de diversas práticas cotidianas e intelectuais. O humanista insinua que algumas falas, práticas e perspectivas, por vezes comuns e corriqueiramente estabelecidas, eram aberrações e materialização da deusa Loucura. Os silogismos aristotélicos inférteis, a ilusão consumista, a teologia escolástica e diversas outras práticas e discursos foram tratadas como formas de manifestação da deusa insana. Erasmo, com acidez irônica, estava dizendo que as pessoas emprestavam suas bocas e corpos para alucinações intelectuais.


          No nosso caso, o Absurdo e Ignorância, filhos mais velhos da Loucura, mais uma vez instrumentalizaram o Ministro da Educação e o Presidente da República. Pelo Twitter, Bolso disse que “o Ministro da Educação Abraham Weintraub estuda descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas). O objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina [...]”. Disse mais: “A função do governo é respeitar o dinheiro do pagador de impostos, ensinando para os jovens a leitura, escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta”. Como assim descentralizar? Quem disse que essas instituições recebem prioridade (“centralização”) de investimentos? Esse tipo de afirmação é bem próxima daquela mentira imprecisa dita há pouco sobre a produção intelectual do Mackenzie. O que realmente significa isso? Haverá cortes de financiamento de projetos? Serão realizadas desautorizações de cursos de graduação e pós-graduação Lato e Stricto sensu (mestrado e doutorado)? 


       E pior, isso se refere às ciências humanas em geral: Administração, Pedagogia, Arquitetura e Urbanismo, Direito, Ciências Sociais, Ciências Públicas e as demais áreas do conhecimento a respeito das práticas e desenvolvimento humanos? Na verdade, os dois reproduziram aquelas interpretações de senso comum de bar e zap em que “humanas’ é sinônimo de filosofia e sociologia, que não servem para nada a não ser perverter alunos ou, ainda, são coisas de comunistas e que engenharias, física e matemática são as que importam e o resto é coisa de desocupado etc”. O óbvio: claro que estas últimas são importantes, mas sem as demais elas não seriam possíveis. Para colocar a lume o absurdo, os órgãos responsáveis por estatísticas, projetos municipais, mapeamento territorial, as políticas públicas, projetos pedagógicos nacionais, redução de danos e tantas coisas imprescindíveis para ação do Estado e bem estar social dos “contribuintes” dependem profundamente de profissionais com formação nessas áreas achincalhadas pelos dois representantes da República. Além disso, para ler, escrever e fazer conta (um reducionismo bestial das práticas científicas, diga-se de passagem) é indispensável exatamente a boa formação nas áreas por eles ameaçadas.          No fundo, Ministro e Presidente, totalmente intoxicados e emburrecidos por uma visão de mundo (ideologia) extremista, mostraram como são incapazes de darem conta da grandeza de suas responsabilidades republicanas e, por outro lado, “jogaram para galera”, aplacando e alegrando as consciências marcadamente ignorantes de parte do povo, cuja compreensão em relação às ciências e suas especificidades não passam da superficialidade. Até entenderia isso em qualquer outro espaço, mas ouvir tal coisa do Presidente da República e Ministro da Educação é inaceitavelmente perigoso. 

          Amigo Erasmo, a Loucura habita nossa nação com os braços do Absurdo e da Ignorância.




domingo, 21 de abril de 2019

DOMINGO DA RESSURREIÇÃO: ESPERANÇA







Nada é mais belo no Cristianismo do que a memória da ressurreição. Se Cristo não ressuscitou, disse Paulo temendo pelos coríntios, não haveria substância em seu ato proclamatório e nem poesia na nossa fé. O mestre no madeiro mostra a morte em sua crueldade, a esperteza má da injustiça, a irracionalidade da violência. Na sexta-feira há agonia, lamúria é caos. Na cruz desnuda-se a irracionalidade do mundo e sua eloquência para derramar sangue e perfurar corpos. Se nos houvesse somente o Cristo morto, seríamos os piores desalentados cuja viuvez tornar-se-ia irremediável, trevas e águas amorfas sem solução, engolidos garganta adentro da desesperança. Por isso, somos convidados, como as mulheres do sepulcro violado, a sairmos da perplexidade da ausência do corpo morto em direção à segurança da exortação angelical: “Por que vocês estão procurando entre os mortos aquele que vive? Ele não está aqui! Ressuscitou!” (Lc 24,5-6). Assim, a eternidade constrói uma ponte entre lágrimas e júbilo, lamento e celebração. É o “haja luz” ordenador que diz: “mar: cala-te, acalma-te!”. O corpo ressurreto e cósmico ressignifica o sentido da Vida. A ressurreição anuncia a novidade da vitória, abre um sorriso no pranto e possibilidades entre os destroços. Na paixão Cristo partilha o caos em seu próprio corpo; na ressurreição aponta para a criação e ordenação.

Se na obra “O corpo de Cristo morto no túmulo”, 1521/22, de Hans Holbein, o mestre está esquálido, em “A Ressurreição” (1460), do renascentista italiano Piero della Francesca, a luz do Cristo vivo suplanta a silenciosa dor. Preservada no Museu Cívico de Sansepolcro, em Toscana, “A Ressurreição” está na lista das grandes obras de arte da humanidade. Com justiça, Aldous Huxley a descreveu como “a maior pintura do mundo” e por conta de sua grandeza, durante a Segunda Guerra, o capitão britânico Anthony Clarke ordenou parar o bombardeio a Sansepolcro poupando a cidade e essa importante obra.

Com intuição estética e intensidade, Piero della Francesca mostra Jesus saindo do sepulcro. Abaixo, em seus pés, estão os guardas dormindo e estáticos sem qualquer possibilidade de reação, como se a pintura dissesse: o Império Romano e seus instrumentos não foram capazes de enclausurar o Senhor da vida. No fundo, enquadrando a cena, vemos uma vegetação sóbria e em contraste: à esquerda, um tronco seco logo atrás de Jesus; à direita, vemos árvores com folhas em destaque. Com isso, o pintor italiano reforça a diferença entre morte e vida. No centro, Cristo surge em plena ressurreição. Ele carrega a bandeira em símbolo de vitória. Em perspectiva frontal, o mestre olha diretamente para os espectadores convidando-os a partilharem do seu triunfo. Por sua vez, as marcas da lança e pregos valorizam ainda mais a destruição dos grilhões. 

A obra exposta em Toscana lembra-nos o “não” profético de Deus. Toda a força da morte é enfrentada, seus agentes desarmados e desmascaradas suas perversas estratégias. No Domingo da ressurreição somos convidados, então, ao anúncio subversivo da teimosa esperança, cuja força instaura o horizonte do novo mundo possível e chama aqueles/as que cantam o cordeiro que venceu a serem seus semeadores, porque onde houver ódio a ressurreição levará amor, onde houver ofensa levará perdão, onde houver discórdia levará união, fé, verdade, paz e alegria.

(imagem: Piero della Francesca, "A Ressurreição", 1460)