sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Vinho velho em odres velhos: os evangélicos e o ano eleitoral






A parábola do vinho novo em odres velhos é citada em todos os evangelhos sinóticos. Ela é tão comum que também está no evangelho de Tomé, um texto dos cristãos gnósticos, não canônico, que para alguns é até mais antigo do que os canônicos (Crossan) – mas isso é outra história. Nesta parábola, sendo bem sucinto para não ser cansativo, Jesus mostra – usando no mesmo texto a imagem de retalho novo em roupa velha – a não adequação de seus discursos e propostas à estrutura religiosa na qual estavam os líderes judeus: não é possível vinho novo em odres velhos. O vinho novo, por conta de sua fermentação, estouraria o recipiente antigo feito de pele de animal, o qual não poderia mais dilatar. Vinho novo não cabe em odres velhos! Ou muda o odre ou não tem como receber a deliciosa e importante bebida do Mundo Antigo. A maneira como a Lei era interpretada, vivida, aplicada; o modus operandi da política, do sistema religioso, das relações Roma e Jerusalém vivido pelo judaísmo palestino não comportariam/suportariam o novo vinho do reino anunciado por Jesus.


Bom, o que isso tem a ver com a questão das eleições deste ano e os evangélicos? Em uma postagem escrevi que “tenho a sensação de que a participação do mundo evangélico, na caminhada para as eleições deste ano, será uma das mais desastrosas e vergonhosas desde a redemocratização!”. Por isso, disse que “já estão me dando arrepios as falas na mídia de algumas lideranças gospels a respeito das alianças ensaiadas e dos nomes lançados”. Em minha modesta opinião, a desastrosa e infeliz participação será o resultado natural do como estão entrando no processo, porque usam os mesmos instrumentos da velha política: lógica do “toma lá da cá”, que têm em suas bases o mais chulo do clientelismo. Além disso, algumas lideranças chamam de “presença evangélica” ou “grupo de defesa da família” o que é na verdade é uma espécie de criação de oligarquias evangélicas. Os evangélicos, que por um bom tempo, especialmente os pentecostais, disseram que política é coisa do diabo, estão agora preenchendo espaços utilizando-se do “jeito velho”, da conhecida velha política. Aquela carreirista, que se movimenta pelas brechas das leis eleitorais, quando não as burlam. A mesma, que troca favores com empresários e no fim precisa pagar pelo serviço/apoio. A tão conhecida, que alimenta projetos pessoais e não interesses ideológico-partidários. A tal da “representação de nós mesmos”, na qual o “nós” são sempre os “mesmos”. A velha política dos que buscam aliados não por sua postura e capacidade de representação dos interesses do povo, mas pelo seu poder de financiamento, sua influência, suas relações com quem tem mais acessos, pelo seu lobe! Por isso, com facilidade você encontra líderes evangélicos comprando votos; usando espaços não ilegais, mas imorais; prometendo assessoria parlamentar, secretarias, cargos de gabinete em troca de apoio; vendendo favores futuros; usando caixa dois para campanhas; comprando santinhos com dinheiro indevido; filiando-se aos partidos por conta da legenda e não por seus projetos etc. É vinho velho em odres velhos. Sei que não são todos. No entanto, se é difícil separar o joio do trigo – sendo uma tarefa para anjos –, pior é o vinho velho de vinho novo! 

Por isso, como é vinho antigo em odres já dilatados, as coisas acontecem sem muita tensão. Os projetos ganham votos, são eleitos, os interesses realizados, a vontade de poder alimentada e tudo fica intacto e do jeito que sempre esteve. E assim, o povo vai bebendo dos velhos odres o velho vinho, e os irmãos tendo a sensação de que Deus está abençoando a nação com crentes no congresso nacional. 

Infelizmente, como acerta o Evangelho de Lucas, quem prova do velho, especialmente o que se beneficia dele, diz: “o velho é que é bom!”.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Discurso de Defesa de Qualificação da Tese

     
Depois de muito tempo sem postar nada no Blog, retomo as atividades. Espero que este post sirva de motivação para continuar colocando textos aqui... 
      Quero disponibilizar neste post meu discurso de qualificação na UMESP, proferido nesta segunda-feira (02/06/2014) para aprovação do projeto e 1º capítulo da tese. Este texto li para a banca formada pelos professores doutores Paulo Nogueira, Paulo Garcia e Helmunt Renders. 



Discurso na defesa de qualificação da tese:


          O Título de minha tese é: “‘Quando os Espíritos saem do Abismo’. O Estabelecimento Narrativo do Terror Escatológico em Apocalipse 9,1-21”. Este trabalho é resultado de longa caminhada no grupo de pesquisa Oracula e de diversas discussões metodológicas neste espaço aventadas para leitura e interpretação da cultura e de textos. Por isso, mesmo que eu responda por todas as informações e afirmações expostas neste projeto, devo indicar o contexto no qual ele se insere. 
Durante um bom tempo o livro do Apocalipse foi lido como uma espécie de linguagem cifrada, através da qual o visionário teria empreendido o alívio das angustias e gerado esperança para cristãos que viviam perseguições no império Romano. Especialmente na exegese latino-americana, o livro foi lido como um texto que reflete ou nele subjaz, realidades de opressão e até mesmo martírio sob a coroa de Domiciano. Nesta perspectiva, o Apocalipse seria um escrito para ajudar os seguidores de Jesus a manterem a fé em meio à desgraça, com a promessa de que a iminência do fim encerraria uma grande tribulação. Este tipo de interpretação, resultado natural dos referenciais histórico-sociais, levou, e ainda leva, muito a sério o mundo romano pintado pelo texto.
Não podemos negar as muitas contribuições que esta leitura nos legou. Contudo, precisamos levar em consideração que vivemos uma mudança de paradigma nas pesquisas sobre o acesso à realidade. A ordem social não existe como algo dado, simplesmente para ser observada com corretas ferramentas históricas. O que se faz é a interpretação, logo, ficção da realidade.
  Por isso, nos últimos anos a exegese tem passado por renovações permitindo ser interpelada por referenciais teóricos expostos pelas ciências humanas em geral, semiótica e teorias literárias, o que conduziu à aproximação ao Apocalipse como instrumento de persuasão retórica, que lida com imagens para criar mundos e interpretar a realidade.
Os trabalhos de Leornad Thompson, por exemplo, levam em consideração, de maneira radical, o Apocalipse não como reflexo do mundo romano, mas criação discursiva deste. Ele mostra que o livro é rico enquanto documento literário. Através da linguagem poética e imaginária, o visionário cria um mundo que não pode ser interpretado simplesmente como alegoria do tempo histórico-social ao qual se refere. Como diria Umberto Eco em seu “Da Arvore ao labirinto”: significado e referência precisam ser diferenciados, mesmo no nível de dicionário. Quando o profeta faz comentários a respeito da vida dos membros e não membros da igreja, ou sobre os judeus da “sinagoga de satanás”, quando cita os nicolaitas ou indica coisas relacionadas a Roma com a Grande Babilônia, não está simplesmente fazendo uma descrição em código universal observável da realidade social dos Judeus, dos cristãos ou do Império Romano; na verdade, a linguagem cria um simbólico universo que transforma e representa a realidade social em termos de sua própria observação. Por isso, o “real” do texto de João se encontra na interconexão de sua linguagem e não em qualquer correspondência externa no mundo romana[1]. Desta forma, há um distanciamento entre a realidade e o discurso; Roma e o livro do Apocalipse estão no mesmo espaço, mas construídos retoricamente.
No livro do Apocalipse, o grande problema não está nas perseguições, mas na retórica do Império e a interpretação do visionário. O discurso de paz e a prosperidade da sociedade romana, no ponto do vista do visionário, não pode ser celebrado pelos cristãos fiéis. No Apocalipse, o enunciado de ordem política-econômica-estética-social de Roma é totalmente enganoso, pertence ao reino satânico, mesmo que isso não se perceba no cotidiano dos cidadãos. Eis aí a grande contribuição da linguagem apocalíptica, que possibilita o acesso a outros níveis de realidade.  Assim, o conflito está na perspectiva de João e não na sociedade. E, ainda, a crise é uma orientação própria do gênero apocalíptico, e não necessariamente a realidade social.  A situação de crise é mais um “topos” do gênero apocalipse[2] do que reflexo histórico-social.
Desta forma, devemos tratar o Apocalipse como um contradiscurso, que desqualifica retoricamente, usando os “topoi” próprios do gênero, para mostrar que o discurso de ordem e paz não são reais, pois por intermédio de meios autorizados, como a visão, interpreta-se o mundo Romano de maneira completamente diferente. A linguagem de monstros e mártires diz: “o que há é caos e perseguição prevista”! O livro do apocalipse torna-se nesta leitura uma estratégia discursiva para interpretar o mundo e criar expectativas sobre os narratários.
São com estes pressupostos que leremos a micronarrativa 9,-21 do livro do Apocalipse e sua sequência narrativa das sete trombetas. Nela perceberemos suas estratégias narratológicas para interpretação e criação de terror escatológico sobre seus leitores implícitos, seus narratários. O texto, para construção retórica de caos e desordem da realidade, pinta um quadro de seres que sobem e descem, fala de figuras hibridas, insere uma interessante discussão sobre a impureza, e como um verdadeiro instrumento de terror, usa linguagem cheia do grotesco, que serve, como dizem os críticos literários, como desconfiguração carnavalesca da realidade, tratando-a como aberração.
Se devemos observar a obra como estratégia retórica – claro, sem perdermos de vista sua origem na experiência visionária – é de fundamental importância colocarmos na discussão as intuições da semiótica da cultura, das quais legamos os conceitos de texto, cultura e memória comum; como também seus corolários nos trabalhos dos Assman, os quais nos ajudam na observação dos movimentos das memórias na cultura, o que poderíamos chamar de “movimentos semióticos das memórias”. Com estes referenciais, podemos superar a ideia de contexto histórico para pensarmos o contexto das memórias na tessitura da cultura, a qual é formada por textualidades que estão em relações infindáveis e vivem explosões semióticas constantes. 
Segundo a semiótica da cultura, o texto é texto da cultura; ou seja, ele é como microcosmo do mundo dos textos que circulam na semiosfera. A Semiosfera é um conjunto de textualidades, é algo formado por uma rede (interminável) de interpretações; é a esfera da comunicação; é uma rede processual de signos ou semiose; é o lugar de interconexões. Este conceito revela a dinâmica da cultura que é a formada por textos, os quais são perenizados, tornado-se o cânon da cultura (como diriam os Assmann) e formam a chamada “memória comum”. Assim, a cultura pode codificar e decodificar mensagens de períodos diversos, traduzindo-as em novos sistemas de signos e de textos, agindo como uma engrenagem complexa de seleção das informações mais necessárias[3]. Por isso, as culturas, enquanto textos, sempre se enriquecem recíproca e constantemente, pois é circular.  
A “memória comum” preserva textos em nível diacrônico, que servem para interpretações dos textos da cultura que circulam em nível sincrônico. Nossa hipótese é que a memória comum através da qual o livro do Apocalipse interpreta os textos da semiosfera grego-romana, preserva a literatura apocalíptica. Ou seja, este conjunto de textos da cultura forma um instrumento heurísticos para interpretação do texto/discurso greco-romano de paz e ordem. Por isso, percebemos que o livro de 1 Enoque e suas traduções na cultura judaica e cristã, compôs seu o cânon da memória comum. Neste sentido, o Apocalipse de João se insere de maneira discursiva no conjunto de memórias por ele retomadas e organizadas no eixo do terror escatológico, servindo de expressão discursiva de olhar sobre o mundo Romano, através do qual se nega em última análise a ordem e paz (Pax) da propaganda imperial.
Em suma, para a interpretação do livro do visionário João, o conceito de memória comum ou memória cultural ajudará na observação da reconstrução das memórias apocalípticas, presentes na construção do quadro referencial do terror escatológico produzido como um contradiscurso, que nega a ordem proclamada pelo império romano e seus mitos/discursos.  Além disso, perceberemos como a literatura enoquita, em suas releituras, esteve sempre na interação “cânon x arquivo” na memória comum/cultural. Podemos, neste intento, afirmar que o Apocalipse interpretou os textos da cultura que o cercavam a partir deste conjunto de textos da semiosfera judaico-cristã (greco-romana) para denunciá-la, e mais do que isso: inventá-la narrativamente.
    Para isso, pretendemos seguir um caminho que nos parece mais eficiente. Como temos usado alguns conceitos vinculados à teoria da memória e semiótica da cultura, no início do trabalho pretendemos organizar o arcabouço metodológico que faça convergir estes referenciais em diálogo com as ferramentas da Narratologia. No início, faremos uma exposição do conjunto dos referenciais teóricos para organização metodológica e caminho heurístico. Como seus conceitos estão muito presentes na exegese, começaremos expondo suas intuições, aplicabilidade e limites.
Munidos com as intuições metodológicas acima expostas, pensaremos na literatura apocalíptica como conjunto de textos da cultura judaico-cristão e mostraremos como mitos de seres causadores de impurezas e aprisionados da tradição apocalíptica fixaram-se no cânon desta cultura e serviram de pano de fundo semiótico para organização de mundo e interpretação da cultura do Séc. I.
Depois, proporemos a observação das imagens caos e ordem na construção discursiva do Apocalipse, as quais estão em relação dialógica e intertextual no Ap 8-10, para percebermos o livro como instaurador de caos através da linguagem grotesca e monstruosa para estabelecimento discursivo do terror.
A partir de esse olhar sobre o Apocalipse, analisaremos exegeticamente a micronarrativa (Ap 9, 1-21), utilizando instrumentos da Narratologia em diálogo com a exegese tradicional para observação a ideia de tempo, espaço (geografia apocalíptica), enredo, personagens e quadros narrativos. Neste ponto, indicaremos a presença dos seres aprisionados e suas relações com o discurso escatológico da micronarrativa em diálogo com a macronarrativa. Por isso, voltar-se-á às tradições que provavelmente serviram as memórias de queda celestial, aprisionamento de seres e a topografia escatológica ao mundo judaico-cristão. Para tal feito, primeiramente, mostraremos a presença do Mito dos Vigilantes na tradição judaica e cristã e, assim, perguntaremos pela presença da memória dos seres aprisionados na semiosfera judaico-cristã. Desta forma, saberemos como o Mito dos Vigilantes tornou-se uma espécie de texto de centro da cultura e como suas memórias foram traduzidas para estas tessituras discursivas, e em que nível estavam ligadas às perspectivas escatológicas de julgamento e punição.
Assim, este trabalho pode ser importante não somente por suas intuições a respeito do livro do Apocalipse, tão estudado nos últimos anos, inclusive em nosso programa, mas também pela aplicação da Teoria da Memória e Semiótica da Cultura, o que tem sido uma preocupação atual do Grupo de Pesquisa Oracula e de pesquisadores como Paulo Nogueira.   





[1] THOMPSON, Leonard. A Sociological Analysis of Tribulation in the apocalypse of John. In: Semeia 36 (1986): p. 147-174. p. 147. 
[2] THOMPSON, Leonard. The Book of Revelation... p. 175.
[3] FERRARI, Mônica Rebecca. A memôria da cultura e a memória na mídia em produtos autovisuais infanto-juvenis. In: MACHADO, Irene (org.). Semiótica da Cultura e Semiosfera. São Paulo: FAPESP/Annablume, 2007, p. 255-266, p. 256.