segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

“O MESTRE E PASTOR”. Homenagem ao Pr. Kolenda





Em outros posts escrevi textos homenageando e lamentando o falecimento de Milton Schwantes e Robson Cavalcante. Estes, de maneira direta ou não, de alguma forma marcaram a minha vida e de muitos de seus leitores, alunos e amigos – com o professor Milton, por exemplo, relacionei-me tanto como aluno, amigo... Agora, volto a lamentar e dar as devidas honras a outro mestre, o Pr. João Kolenda.

Ainda era um menino quando o conheci – não que hoje com meus poucos 30 anos seja velho. Havia acabado de entrar no mundo protestante (pentecostal). Eram meus primeiros passos pelas duras trilhas do mundo teológico. Por isso, sinto-me tão marcado pelas aulas do Pr. Kolenda. Na época, ele era para todos nós um intelectual, que nos impressionava com sua erudição, especialmente quando com humildade revelava-se profundo conhecedor da nossa  língua e de outras tais como grego e alemão. Além disso, era um sonhador e tinha no evangelho o alimento de todas as suas expectativas e esperanças. Se não fosse assim, nunca teria coragem de enfrentar o que enfrentou, ao lado de sua esposa, a Pra. Ruth Dores Lemos, quando iniciou o IBAD (Instituto Bíblico das Assembleias de Deus). Como isso impactava-nos!   

Como é muito normal, depois de alguns anos, algumas ideias teológicas que tinha quando fui seu aluno foram reformuladas; outras, deixei por completo.  No entanto, na memória ficam as lembranças dos primeiros passos nos estudos acadêmicos e a admiração por aquele que desbravou, num contexto obscurantista e preconceituoso, os estudos  teológicos nas Assembleias de Deus.  Lembro-me muito bem das vezes quando nos contou sobre o início do IBAD e as grandes oposições das quais foi alvo. Recordo-me muito claramente, também, da sua experiência carismática vivida nos EUA, através da qual se sentiu vocacionado para iniciar de maneira oficial um instituto bíblico para a formação de obreiros/as e pastores/as em terras brasileiras, o que foi um grande passo, na época, para educação teológica em nossas terras. Não somente os ex-alunos ou os vinculados à denominação que serviu são gratos ao Pr. Kolenda, mas todos quantos militam pelos estudos teológicos brasileiros e, sem medo de exagerar, latino-americanos.

Concordo com o poeta brasileiro que diz ser estranho que os bons morrem jovens. O grande problema é que mestres como Pr. Kolenda sempre serão jovens demais para morrer. Contudo, sua vida nunca deixará de nos inspirar. As lembranças coladas em nossa memória farão com que sua história nunca se perca.  E, por onde seus alunos (como eu) passarem deixarão rastros e indícios da presença deste grande mestre, marido, pai, avô e pastor... sim, mais do que qualquer coisa, pastor.

Agora ele se reencontrará com aquela que sempre amou e honrou...

Que Deus receba em seus braços de eterna ternura aquele dentre seus filhos que nos foi tão importante! 

sábado, 29 de setembro de 2012

"Os Anjos que Caíram do Céu"



 
           É com muita alegria que anuncio o lançamento  do meu livro: "Os anjos que caíram do céu. O livro de 1 Enoque e o demoníaco no mundo judaico-cristão". Segui abaixo a apresentação feita pelo professor Dr. Paulo Nogueira da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).   
 
"Nas últimas décadas, principalmente a partir dos anos 90, a pesquisa bíblica passou por mudanças de direção muito importantes. Uma delas se refere ao fato de que os textos chamados de apócrifos, sejam do AT, sejam do NT, deveriam definitivamente “sair do armário”. Se antes o seu estudo era entendido como tarefa de pesquisadores esotéricos ou ultraespecializados, agora eles são parte da formação de todos aqueles que querem estudar a Bíblia, e, em especial, o cristianismo primitivo. Os motivos desta mudança devem ser encontrados na reflexão crítica sobre o cânon bíblico e com as novas perspectivas historiográficas que foram inseridas nos estudos exegéticos. Se antes se buscava no texto bíblico apenas doutrinas e fatos históricos, agora há uma salutar abertura para o universo cultural e religioso dos primeiros cristãos. E como eles eram, em sua maioria, judeus ou gentios afeitos à cultura judaica do seu tempo, o mergulho na literatura religiosa judaica do seu tempo é imperativo. Antes, as origens das ideias e expressões neotestamentárias eram encontradas quase que exclusivamente no Antigo Testamento, hoje este pressuposto é considerada anacrônica. O Antigo Testamento só pode ser origem das ideias religiosas do cristianismo primitivo se estudado por meio do seu grande filtro mediador cultural: a chamada literatura do Segundo Templo. Trata-se de uma grande biblioteca composta pelos escritos pseudepigráficos e pelos Manuscritos do Mar Morto. Neles encontramos uma infinidade de gêneros: viagens ao além-mundo, relatos de visões, mitos das origens, textos litúrgicos, interpretações da lei, relatos históricos, etc. Dentre estes textos destacamos um conjunto que é da maior importância para o estudioso do Cristianismo Primitivo: os escritos de Enoque. Trata-se de cinco apocalipses compostos entre o século III ou II a.C. e I d.C. atribuídos a Enoque, o visionário e sábio por excelência. Nos seus relatos encontramos um saber enciclopédico: das origens ao fim da história, da estrutura do cosmo ao sentido da história de Israel. Tudo está lá. E como o cristianismo não nasceu num vácuo cultural, ele também bebeu desta fonte, em parte mediada pela cultura popular e pela oralidade, é verdade. Neste novo momento dos estudos bíblicos podemos dizer sem medo: somos todos Enóquicos!
           É no contexto desta vertente contemporânea dos estudos bíblicos que se origina o trabalho que tenho a honra de apresentar. Com erudição, perspicácia exegética e histórica Kenner Terra nos conduz por um universo das narrativas míticas das origens, de um tempo que os seres angélicos e os humanos se relacionavam, sem garantia de bons resultados para ambos. É nestas narrativas sobre o tempo da origem que esta cultura expressa suas ficções fundadoras, suas categorias antropológicas e suas concepções psicológicas. Neste solo fértil da cultura judaica Kenner vai explorar o surgimento das ideias sobre o mal e o demoníaco; tema de tanta importância para compreendermos as sociedades do passado. Mas só do passado? Não exerce o mal ainda horror e fascínio sobre todos nós? Na verdade estes textos antigos têm o poder de nos conduzir por reflexões complexas e da maior atualidade. Afinal, quem se antecipou a relacionar o demoníaco com temas ecológicos e sociais se não Enoque, o visionário do tempo primordial? Estes textos também nos permitem um olhar mais rico sobre as crenças em espíritos imundos e demônios nos evangelhos e na tradição de Jesus. Em tempos de demônios domesticados nos programas de TV, esta redescoberta da dimensão cultural do demoníaco nos evangelhos pode ser fonte de surpresas fascinantes.  Descobriremos as transições pelas quais o mito passou até as formas assumidas na narrativa sinótica. Perceberemos também como os personagens mudam, adaptam-se e ficam cada vez mais adaptados a novos tempos. De guardiões, se transformam em demônios."
Carapicuíba, agosto de 2012.
 
Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

JESUS COM UMA ESPOSA?




Fragmento do Papiro GosJesWife (2012)

O título deste post parece ser um tanto sensacionalista, tipo Código da Vinci, mas na verdade se refere a uma publicação do fragmento de um papiro copta,  uma cópia do séc. IV de um texto da segunda metade do segundo século. O recente material foi publicado pela professora Karen King, do Harvard Divinity School. Inclusive, o  New York Times já publicou uma reportagem sobre o assunto com o título “A Faded  Piece of Papyrus Refers to Jesus’Wife” (“Um Pedaço de Papiro envelhecido refere-se à esposa de Jesus”). Este fragmento foi nomeado como “Evangelho da Esposa de Jesus” (GosJesWife). O texto é escrito em copta saídico e está bem deteriorado. 

Neste texto, Jesus dialoga com seus discípulos e fala sobre uma suposta esposa (“minha esposa”, [tahime em copta]). Vejamos a tradução feita pela Prof. King:

“     1. Não [para] mim. Minha mãe me deu a vi[da...”
       2.   [ Os discípulos disseram para Jesus, “. [
       3.   Maria é digna dele (ou "não é digna dele")
       4.  .....” Jesus disse para eles, “Minha esposa.. [
       5   [ ... Ela será capaz de ser minha discípula [
       6   [ Deixe as pessoas perversas inchar [
       7   [ Como para mim, habito com ela a fim de...  
       8   uma imagem[

Como vemos, o texto é truncado e os colchetes mostram as partes deterioradas. No entanto, na linha quatro parece que Jesus, para defender Maria, diz ser ela sua esposa. Esta "obra", como disse a Prof. King[1], deve ser inserida no contexto das disputas sobre a história e figura de Jesus, dentro do próprio Cristianismo, do segundo século (caso a data esteja certa) em diante. Clemente de Alexandria, em seu Stromateis (III, 6.49), no terceiro século, já falava de alguns cristãos que insistiam em dizer que Jesus tinha uma esposa.  

Os especialistas se dividem sobre a autenticidade deste material. Uns acham, como Mark Goodacre (http://ntweblog.blogspot.com.br/2012/09/the-gospel-of-jesus-wife.html?spref=tw), que esta reconstrução e o próprio material são legítimos e realmente revelam um grupo cristão do final do segundo século que acreditava que Jesus tinha uma esposa, mesmo que admita que haja uma confusão entre as expressões “esposa” e “mãe”.

Para quem quiser ver o texto em copta e inglês, o Harvard Divinity School disponibilizou-o: http://www.hds.harvard.edu/faculty-research/research-projects/the-gospel-of-jesuss-wife. Em português também há um interessante blog sobre este assunto: http://www.apocryphagnostica.blogspot.ca/2012/09/o-evangelho-da-esposa-de-jesus.html







 [1] KING, Karen. “Jesus said to them, ‘My wife…’”. A New Coptic Gospel Papyrus. In: http://news.hds.harvard.edu/files/King_JesusSaidToThem_draft_0917.pdf

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

A Imaginação Apocalíptica

           No ano passado escrevi uma renha sobre a recém tradução de uma obra de John Collins.Quero postá-la aqui para aqueles e aquelas que não acessaram a revista Reflexus.


COLLINS, John J.  A imaginação apocalíptica. Uma introdução à literatura apocalíptica judaica. São Paulo: Paulus, 2010.

        O texto The Apocalipyptic Imagination, traduzido em 2010 como A Imaginação Apocalíptica, pode ser considerado um clássico entre os estudos da apocalíptica judaica. A edição usada para a versão em língua portuguesa é da Eerdmans (2º ed.), por isso o capítulo sobre Qumran é bem maior do que o da primeira edição. Como diz Collins, a pesquisa a respeito dos achados de Qumran, a partir de 1991, recebeu novos ares com a disponibilização completa do seu corpus literário. Para quem leu a primeira edição, publicada pela editora Crossroad, em 1984, como eu, rapidamente percebe, também, a diferença na última parte da tradução feita pela Paulus, pois deixa de ser um epílogo para tornar-se um capítulo com mais informações sobre a relação do imaginário da apocalíptica judaica com os Cristianismos das origens.

Mesmo visitando São Paulo há alguns anos a convite do grupo Oracula[1], e sendo digno de todas as honrarias, o autor deste importante livro, professor John J. Collins, ainda não é muito conhecido em nossas terras – para uma biografia mais completa do autor, ver meu post: http://kennerterra.blogspot.com/b/post-preview?token=83quRTkBAAA.6UA_pWdD-Fa6JkX3mgNXkA.K4d02x0s66d6I8z5x2qwqQ&postId=7089794791186716220&type=POST

Em Imaginação Apocalíptica, Collins perpassa todo o corpus literário da apocalíptica judaica. Por isso, o texto pode ser tratado como uma importante introdução a esse complexo mundo literário. Utilizando-se do método das religiões comparadas, ele mostra a formação do pensamento da apocalíptica judaica em diálogo com outras religiões do mundo Antigo, tornando o livro riquíssimo. 

Na primeira parte, Collins apresenta a história da pesquisa a respeito da apocalíptica judaica. Desta forma, insere o leitor no desenvolvimento da discussão. Seu objetivo nesta parte é apresentar conceitos que servirão para análise dos textos apocalípticos. Partindo dos resultados do Projeto de Gênero da Society of Biblical Literature, Collins traça algumas características formais do gênero apocalipse, a natureza de sua linguagem, a questão do contexto e a função desse tipo de literatura. Collins divide o gênero apocalipse em dois tipos: jornada sobrenatural [além-mundo] (Apocalipse de Sofonias, Testamento de Abraão, 3 Baruc etc.) e apocalipses históricos (Daniel, 4 Esdras, Jubileus etc.). Aquele é marcado por viagens sobrenaturais com maior interesse em especulações cosmológicas, enquanto este é caracterizado pela revisão da história. Na formação do gênero, o autor deixa claro que há uma combinação distintiva de elementos, os quais se encontram também em outras obras (p. 32-33). Por isso, neste ponto, Collins gasta um bom tempo para apresentar a matriz dessa literatura, a qual se encontra na literatura profética israelita, como bem defendeu Paul Hanson, mas não se esgota nela. O autor irlandês mostra como a cultura babilônica, persa e helênica também contribuíram para o surgimento e construção do imaginário religioso dos textos apocalípticos. No entanto, Collins é sensato ao afirmar a autonomia e criatividade na formação dos textos, mesmo que bebam de outras fontes (p. 44). Por isso, o novo produto é mais do que uma soma de fontes.

Após essa esclarecedora introdução, Collins apresenta a vasta literatura apocalíptica do judaísmo. Ele começando pela tradição de Enoque, uma obra compósita, formada por cinco livros, e muito importante para a formação das teologias dos Judaísmos antigos. Ele apresenta o pentateuco enoquita separadamente – guardando para o final do seu texto o livro das Similitudes de Enoque (ou Parábolas de Enoque) –, não  deixando de discutir a hipótese de um movimento ou grupo pressuposto por essa literatura. No mesmo capítulo, o autor produziu um apêndice, no qual apresenta o livro de Jubileus, que para ele foi concebido em um estágio pré-Qumrânico, assunto que discutirá na obra.  

Depois ele apresenta o livro de Daniel, aproximando-o à literatura do Mundo Antigo, especialmente à literatura persa. A exposição ao livro de Daniel precede o capítulo no qual Collins expõe criticamente dois gêneros: Oráculo e Testamento. Ele aqui utiliza o mesmo método das religiões comparadas para expor o Or. Sib. 3, o qual está na coleção dos doze livros que compõe os Oráculos Sibilinos (textos judaico-cristãos). Para os Testamentos, que segundo o autor estão intimamente relacionados aos apocalipses, Collins começa apresentando o Testamento de Moisés e, a partir daí, descreve os Testamentos dos Doze Patriarcas, uma obra compósita de caráter judaico, mas que recebeu reformulações cristãs.

Continuando sua obra, e preservando seu caráter formal de introdução a textos, Collins separa um capítulo para apresentar a literatura de Qumran. Para o autor, que segue a linha de muitos outros pesquisadores, os manuscritos de Qumram iluminam as pesquisas a respeito do Judaísmo pós-bíblico e do apocalipticismo judaico.  Collins acredita na existência de uma comunidade apocalíptica que vivia em Qumran desde o segundo século a.C, na qual preservou-se, além dos textos produzidos pela própria comunidade, obras apocalípticas clássicas como Daniel, 1 Enoque e Jubileus. É neste capítulo que Collins apresente resumidamente algumas ideias encontradas nos textos de Qumran. Primeiramente, fala-se do conceito de revelação, que são informações sobre a organização, condução e operatividade do cosmos criado por Deus. Outro tema importante nos Manuscritos do Mar Morto é o dualismo, que abrange o nível cósmico, antropológico e social. Collins também mostra a pluralidade de imagens messiânicas em Qumran, expectativa que ressurge por consequência da insatisfação ao reinado asmoneu. Ligada à esperança do messias, ou messias, há a guerra cósmica entre os filhos da luz contra os filhos das trevas, que liderados por seus respectivos comandantes travarão a última batalha no fim dos tempos.

Como era de se esperar, Collins separa um capítulo somente para tratar de um dos textos da tradição enquita, as Similitudes de Enoque, que foi a única parte de 1 Enque não encontrada em Qumran. Por essa e outras razões, data-se a obra no segundo ou terceiro século d.C. Entre algumas questões apresentadas pelo autor, a do filho do homem parece ser a mais nefrálgica encontrada no texto. Fugindo da discussão de anterioridade aos evangelhos, Collins simplesmente mostra a existência de especulações judaicas  que identificava o patriarca Enoque como o filho do homem; talvez seria uma resposta óbvia ao Cristianismo, que usou a mesma expressão como título para Jesus.

Nos últimos capítulos, Collins agrupa 4 Esdras, 2 Baruc e o Apocalipse de Abraão entre os textos judaicos pós-queda do templo, que foram moldados pela catástrofe do ano 70, e fazem a partir desse evento suas teodicéias. Depois, ele reúne a literatura da diáspora do período romano. Nesse grupo, foram agrupados outros Oráculos Sibilinos ( Or. Sib. 5, 1, 2 e 4), que podem ser considerados apocalípticos em sentido lato do termo (p. 344). Entre os apocalipses da diáspora, encontram-se também 2 Enoque, 3 Baruc, Testamento de Abraão, assim como, o Apocalipse de Sofonias, do Judaísmo egípcio, que sobreviveu apenas em uma citação de Clemente.

No final da obra, Collins relaciona a apocalíptica judaica com a literatura do Novo Testamento. Nesta parte ele deixa claro que conceitos e ideias tais como Reino de Deus, filho do homem, messias, ressurreição, parousia, vida após morte, papel dos anjos e demônios e outros presentes nos Cristianismos das origens estão intimamente ligados à literatura apocalíptica, seja relendo e aplicando à figura de Jesus, como, também, para construção das expectativas escatológicas das comunidades paulinas. Collins é sensato em afirmar que só há um apocalipse no Novo Testamento, o apocalipse de João, mas tanto os evangelhos sinóticos como Paulo, no entanto, são matizados em um grau significativo pela visão de mundo apocalíptica.      

Como toda obra introdutória, o texto acaba tornado-se superficial em alguns temas, especialmente no capítulo sobre Qumran e a relação da apocalíptica judaica com os Cristianismos das origens. No entanto, essa tradução ajudará os pesquisadores brasileiros na aproximação aos textos ainda desconhecidos do público em geral, e popularizará uma das pesquisas desse importante autor. Este livro é mais do que recomendado!



[1] O paper apresentado no encontro foi disponibilizado no site do grupo Oracula: www.oracula.com.br

sábado, 28 de julho de 2012

Sobre o Crescimento dos Evangélicos


        Segundo os dados do Senso de 2000, os evangélicos eram 15% da população brasileira, o que significava, na época, um crescimente significativo. Há pouco, o IBGE anunciou, com base nos dados de 2010, que o número de evangélicos aumentou, chegando à marca de 22% da população. Diante destas informações, talvez, rapidamente afirmemos: “estamos tendo sucesso na missão”. Sim, podemos afirmar que estamos crescendo, e este notório alargamento do número de membros é um bom sinal da nossa potencialidade. No entanto, o crescimento numérico em si não basta. Antes, precisamos crescer, também, em compreensão do que seja a nossa missão.
Nosso chamado é para sermos luz e sal da terra (Mt 5, 13-16). Ser sal e luz é sinalizar a presença do Reino de Deus, que já está entre nós (Lc 17,24). A sinalização pode acontecer em todas as influencias que pudermos exercer. Como questionou Ariovaldo Ramos em um de seus livros: “fico a pensar, que mudanças poderiam ocorrer na sociedade se, por exemplo, evangélicos advogados se reunissem para aperfeiçoar as leis do país; se evangélicos engenheiros se reunissem para propor o jeito do Reino de construir cidades; se evangélicos jornalistas se reunissem para discutir e propor um novo jeito de tratar a notícia; se evangélicos empresários se reunissem para celebrar um pacto de ética; se evangélicos economistas e tributaristas desenvolvessem um projeto de reforma tributária?”. Nesta lista poderíamos  acrecentar os grande proprietários de terra evangélicos pensando em formas para começarem uma justa distribuição de terras ou de alimentos produzidos, iniciadas por suas própriedades. De maneira geral, o que aconteceria se em cada oportunidade, no nosso dia a dia, sinalizassemos os valores do Reino?  
       Acredito que o grande desafio não seja somente acrescentar o número dos que se tornam membros, mas de levar em consideração, também, a missão de sinalizar na prática, iluminados pelo evangelho, o Reino de Deus.  

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Reforma Agrária? O que dizem Jeremias 39-40 e Lamentações 5?


Como bem sabemos, a Bíblia assim como é formada por diversos livros, também o é por variados e divergentes pontos de vista, às vezes até mesmo sobre o mesmo assunto.  Isso não deve nos surpreender. Como Palavra de Deus intermediada por palavra de homem carrega as idiossincrasias de seus respectivos contextos e experiências. Um exemplo desta variação de perspectivas encontra-se no “como” dois textos interpretam um momento do povo de Judá. Refiro-me a Jr 39-40 e Lm 5 a respeito da realidade dos que ficaram na terra depois da segunda deportação para Babilônia e sobre a “reforma agrária” no período da liderança de Godolias, antes da terceira intervenção de Nabucodonosor.
Vou explicar o contexto disso em poucas linhas. O exílio na Babilônia ocorreu depois das investidas de Nabucodonosor, quando alguns da elite e da aristocracia foram levados para as regiões da Mesopotâmia. Nesta ocasião, os mais pobres e as pequenas famílias camponesas permaneceram na devastada terra de Judá. Estes – chamados de “pobres da terra” (2 Rs 24,14) que permaneceram em Jerusalém – foram beneficiados com doações de terras (Jr 39,10; cf. também 2Rs 25,12). Isso foi muito significativo, pois desde o séc. VIII a.C tanto o norte como o sul foram marcados por crescente concentração de terras para uns; endividamento, perda de propriedades (terra) e liberdade pessoal (escravidão) para outros. Esse é o quadro pintado por Jr 34,8-22 a respeito de alguns israelitas, os quais são os mesmos que permaneceram na terra, mencionados em Jr 39, 10, no período da intervenção babilônica. Estes pobres da terra, na ocasião da deportação receberam as terras que pertenciam à elite deportada, da qual eram escravos e para a qual perderam suas propriedades em tempos anteriores. No livro de Ageu, em certo nível, encontraremos reflexos das divergências dos grupos que permaneceram e a antiga elite judaíta deportada.
    
A primeira investida babilônica ocorreu em 597 a.C, quando foram levados parte do povo e Joaquim, filho de Jeoaquim (que morre pouco tempo antes da primeira deportação) (2 Rs 24,4-6), ficando como rei Zedequias, tio de Joaquim. Quase dez anos depois, Zedequias ensaia um levante contra o domínio de Nabucodonosor. A consequência imediata foi outra intervenção babilônica, depois de um demorado cerco à cidade. Na ocasião o templo e cidade foram destruídos e outra parte da elite e artesãos deportados (2Rs 25, 1-21; Jr 39, 1-10; 52,1-27). Segundo Jr 50,30, uma terceira deportação aconteceu no ano 582 a.C. Em termos gerais, por Judá ser um lugar estratégico, a associação com o Egito e sua resistência, a invasão babilônica tornou-se inevitável.

Os capítulos 39 e 40 de Jeremias é uma descrição da realidade do povo que ficou na terra, os mesmos pobres oprimidos durante um bom tempo pela elite agora deportada. Em 39,10 ele fala das terras que foram doadas para este pequeno campesinato; uma espécie de reforma agrária. A elite estava longe e as terras deixaram de pertencer a esta classe favorecida. A imagem dada pelo profeta é de abundância (Jr 40,12) e cheia de esperança de recomeço (Jr 40,9). Como diz Kessler: “O tempo do domínio babilônico sobre Judá é um tempo em que aqueles que durante a monarquia concentravam muitas propriedades agora as perderam parcial ou totalmente. Estas terras são apropriadas por aqueles que em outros tempos as perderam para os poderosos (...)[1]. É o tempo da divisão e libertação para os que viviam com muito pouco. Os “pobres da terra” agora podem se regozijar; comer do fruto da terra, beber do vinho da vide! (Jr 40,10).

Contudo, o livro de Lamentações, que também interpreta o mesmo momento, parece não gostar muito deste negócio de terra para pobres. Como diz Lm 5,2: “nossa herança foi entregue a estranhos, nossas casas, a estrangeiros”. O que Jeremias chama de reforma agrária (39, 10), Lamentações vê como terra na mão de estrangeiros. Para um grupo a redistribuição de terra é uma implantação da justiça (Jeremias), enquanto para outro é desapropriação (Lm 5). Os pobres no comando para este é liderança de escravos (Lm5,8).
Talvez Lamentações represente a voz dos que perderam as terras. Mas isso não deve nos assustar; pelo menos a mim não assusta. Sempre será assim, pobre quando alcança seus direitos é motivo de açoites, verbais ou físicos; mas quando ricos enche-se e transbordam é oportunidade de propaganda. Mas, um dia é da caça e outro do caçador; um dia é dos poderosos, mas chegará também o dos pequeninos, os “pobres da terra”. Como devemos interpretar nossos “povos da terra” hoje em dia? Como Lamentações ou Jeremias? Que digam os grandes latifundiários; que digam os Sem Terra.



[1] KESSLER, Rainer. História Social do Antigo Israel. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 146 

sábado, 19 de maio de 2012

ANJOS QUE TOMAM BANHO? Variações textuais de Jo 5,4



Como já sabemos há um bom tempo, os textos bíblicos autógrafos (os “originais”, os que saíram das mãos de Paulo, por exemplo) passaram por diversas cópias, que por sua vez foram copiadas, recopiadas etc. Por isso, temos testemunhadas variantes textuais em vários manuscritos. Basta-nos comparar alguns manuscritos e veremos isso com clareza. É por isso que encontramos, às vezes, em algumas traduções a expressão “não se encontra nos melhores manuscritos”. Ou seja, nem sempre os textos reproduzidos eram iguais aos “originais”. A ciência que trabalha com a comparação destes manuscritos, para chegar ao mais próximo possível do “original” é a “Crítica Textual”.  Os manuscritos do Novo Testamento, por exemplo, passaram por esse processo e hoje em dia temos duas edições críticas mais populares, o United Bible Societies’ Greek New Testament (atualmente na 4º edição) e o Novum Testamentum Graece (atualmente, na 27º edição). São duas edições gêmeas, que têm os textos reconstruídos, dos quais saem as traduções. No rodapé dessas edições críticas, encontramos o “aparato crítico”, no qual há as variantes textuais, as outras leituras sobre o mesmo texto.

Papiro 66 (séc. II) 
Bom, tendo feito esta superficial descrição da Critica Textual,  quero apresentar um versículo bíblico que possuiu curiosas leituras, as quais dizem muito sobre como ele foi lido e a respeito das memórias subsequentes a sua circulação posterior. Refiro-me ao texto de Jo 5,4: "anjo, porém, do Senhor no devido tempo descia no tanque e agitava a água; porém o primeiro que entrava com o agito da água curado ficava de qualquer doença que tivesse" (tradução literal). A Almeida Revista e Corrigida preserva este texto. No entanto, o Papiro 66 (séc. II), Papiro 75 (séc. III), o códice Sinaítico (séc. IV), o códice Vaticano (séc.  IV) e outros manuscritos não têm este verso. 

 O interessante é que depois do surgimento desta variante, outras cópias foram feitas surgindo novas e divertidas leituras. O texto diz que o “anjo do Senhor, na hora certa, descia (katabaínen) no tanque e agitava a água...”, mas no códice Alexandrino (séc. V), no códice K (séc. IX) e outros manuscritos, no lugar do verbo “descer”, colocam o verbo "lavar" (loúo), ou seja, segundo estas testemunhas textuais, o anjo se “lavava” e a água se agitava. Uma cena no mínimo curiosa! Com esta leitura, o texto diria que os enfermos esperavam o anjo se lavar no tanque, e quando a água se agitava eles aproveitavam a oportunidade para mergulhar e receber a cura.

Provavelmente, este verso não pertença ao texto original, como indica a Crítica Textual e algumas traduções. Contudo, mostra-nos algumas crenças que faziam parte do imaginário religioso em torno do templo (!) no judaísmo dos primeiros séculos, como também as memórias textuais. Se isso está testemunhado em alguns manuscritos é porque revelam a presença de expectativas de certos grupos do passado.

Anjo tomando banho, que coisa em...  

sábado, 28 de abril de 2012

Pastor de Hermas: um livro cristão desconhecido, mas importante (Final)


 Ícone da Visão de Hermas








Continuação e encerramento dos posts sobre Pastor de Hermas....



O conteúdo do Pastor de Hermas

O conteúdo do livro, como já disse, é dividido nos blocos das Visões, Mandamentos e Parábolas.

Na Visão I  está o início da história. Hermas vê sua antiga dona banhando-se no Tíbre, por ser muito bela deseja tê-la como esposa. O relato segue e inicia a visão progriamente dita. Alguns dias depois no caminho para Cunas, Hermas é levado pelo Espírito para uma região estranha e vê sua antiga dona como aparição celestial, que lhe mostra como seu desejo foi pecaminoso. Depois, aparece-lhe uma anciã com vestes resplandecentes com um livro na mão. Ela senta-se em uma grande poltrona branca, prega arrependimento para Hermas e sua casa e lhe lê um hino de glorificação a Deus (2.3). No mesmo contexto, aparecem-no anjos que levam a poltrona e depois a própria anciã.

A Visão II acontece um ano depois no mesmo lugar. A anciã entrega a Hermas uma carta celestial, a qual ele copia sem entendê-la e que em seguida desaparece misteriosamente. Somente depois de catorze dias, após oração e jejum, Hermas consegue ler a carta. Nela há uma mensagem divina de que a atual cristandade ainda teria uma única possibilidade de penitência, e Hermas recebe a missão de transmiti-la aos dirigentes da comunidade (2 e 3). Seguem duas visões complementares: durante o sono Hermas recebe a revelação de que a anciã não seria a Sibila, como acreditava, mas a Igreja; depois a anciã aparece em sua casa e lhe passa instruções sobre a divulgação da carta celestial.

Na Visão III, encontra-se a construção da torre. Depois de um longo periodo de oração e Jejum, Hermas recebe da anciã a ordem de ir a seu campo. Lá encontra um banco de marfim sobre o qual a anciã se senta e lhe mostra o lugar para sentar.  Ela lhe mostra seis jovens construindo uma imponente torre edificada sobre a água, que  é construída de pedras brancas trazidas por milhares de homens (l e 2). Esta torre é identificada, alegoricamente, com a Igreja (3-7). Além disso, ela lhe mostra sete virgens em volta da torre e as interpreta como represen­tantes das virtudes (8.1-7), e lhe transmite admoestações direcionadas a comunidade cristã (8.11-9.10). Em um longo adendo, que ainda fala de duas visões, fica-se sabendo que nos três encontros até então, a anciã havia aparecido com diversas aparências. Hermas recebe uma interpretação alegórica da triede aparencia da anciã (10-13).

Na Visão IV temos as bestas. Vinte dias depois, no caminho a seu cam­po, Hermas se encontra com um gigantesco monstro marinho (1) e com a anciã transformada em donzela, a qual lhe explica que o monstro repre­senta a tribulação iminente (2.1-3.6), desaparecendo depois misterio­samente para sempre.

A VisãoV, por sua vez, serve como introdução aos Mandatas [mandamentos] e às Similitudines [parábolas]. O novo portador da revelação, o pastor, aparece a Hermas em sua casa e Hermas o reconhece como "o anjo da penitên­cia". O pastor ordena que Hermas anote seus mandamentos e suas parábolas.

O bloco das mandatas tem tem em seu conteúdo o discurso sobre o Deus único, a simplidade, confinça, castidade, verdade, penitência cristã, paciência e ira, dois tipos fé, dupla espécie de temor, dúvida , tristeza, o falso profeta, verdadeira e a falsa profecia, dupla espécie de cobiça e epílogo aos Mandamentos.

Depois dos Mandamentos, temos as parabolas, sob a forma de visões, as quais são explicadas pelo anjo: 1. a parabola sobre a cidade verdadeira; 2. o olmeiro e a videira, 3. as árvores sem  folhas, 3. as árvores verdes e as árvores secas, 4. o escravo fiel, 5. o anjo da volúpia e do erro, 6. o grande salgueiro, 7. os doze montes da Arcádia. Encontramos também a repetição da visão da construção da torre e a purificação da torre e dos montes. Depois disso, o livro encerra com a aparição de Cristo a Hermas e ao Pastor, e uma exortação final com promessas.               


O discurso teológico do Pastor de Hermas
         

O livro trata de alguns temas eclesiológicos e práxis social. Em Pastor de Hermas a Igreja é uma instituição necessária para salvação, vista como uma entidade primordial – primeira de todas as criaturas (Vis. II, 8.1). Tudo foi criado por causa dela (Vis. II, 4.1). A alegoria utilizada por Hermas para representar a Igreja é a torre que está em construção (Vis. III, 3-5). Este edifício espiritual feito de pedra tem o filho de Deus, os patriarcas, profetas do Antigo Testamento e, depois, os apóstolos, os bispos, doutores e os servidores humildes como fundamento. Segundo a obra, enquanto a Igreja estiver no mundo estará sempre em construção, aguardando sua perfeição final até o último dia.

A respeito da questão cristológica, percebe-se que não é empregado no livro, nenhuma vez, os termos “Jesus Cristo” ou “Logos”. No texto (par. IX. 1.1-2), a anciã (Igreja) é identificada com o Espírito Santo e o Espírito Santo é identificado com o Filho de Deus.  Assim, a figura do Espírito Santo identifica-se como o próprio filho de Deus. Por isso, a cristologia de Hermas obteve muitas dificuldades de ser aceita pelas comunidades cristãs. Segundo Hermas, teríamos duas pessoas em Deus: Deus Pai e Deus Espírito Filho, cujas relações se configuram com as de Pai e Filho.

A preocupação primordial de Hermas é a penitência. Por isso, sua maior ênfase não é a questão doutrinário/dogmática, mas moral. Sendo seu argumento principal a necessidade da penitência. Desta forma, o texto está dialoga polemicamente com os rigoristas, corrente que afirmava não haver outra penitência senão aquela do batismo. Contudo, Hermas não tinha a intenção de desvalorizar o batismo, mas simplesmente apresentar a possibilidade de penitência ainda depois deste. Isso se percebe quando ele afirma que os apóstolos e os mestres desceram, após a morte, ao limbo para batizar os justos mortos antes de Cristo. Esta tradição de descida ao lugar dos mortos tem paralelo com interpretações cristãs da tradição petrina e com narrativas antigas de deuses e filósofos que desceram ao inferno, ou local dos mortos.

A tendência do livro é parenética e voltada, como disse, para a defesa da penitência. Nele, temos a notícia de que essa prática só será possível enquanto a torre estiver em construção, depois disso será impossível. Esta prática é tão importante, que a construção da torre foi interrompida, para que ocorra a renovação do espírito, ou seja, a penitência.

No setor das ações ascetas, Hermas chama a atenção para o grande valor do jejum, do celibato e do martírio.  

O Pastor de Hermas também trata da questão do rico e do pobre, mas diferente da maneira como é tratada em Tiago. Enquanto este tem os ricos como condenados e opressores, destinados à destruição (Tg 4, 13-17; 5,1-6), o Pastor abre as portas para a possibilidade de arrependimento e ajuda recíproca entre rico e pobre[1].

Neste sentido, a riqueza é tratada como uma dádiva de Deus e deve ser utilizada para ajudar o pobre. Assim, o pobre agradecido oraria a Deus, “porque a oração do pobre é bem acolhida diante de Deus” (Vis. 6). Nesta reciprocidade, cumprir-se-ia o propósito de Deus: o rico usaria bem sua riqueza e o pobre mediaria o rico em oração. Percebe-se a influencia da tradição do pobre como sinônimo de piedade e preferido de Deus, mas isso no Pastor de Hermas não condena o rico. Pelo contrário, os abastados tornam-se canal para o cumprimento do projeto de Deus. E, quem agisse assim, reciprocamente, seria escrito no “livro dos viventes” (Vis. 9)

Este avanço em Pastor de Hermes em relação ao rico e pobre, marca um período posterior explicito na carta de Tiago. Enquanto o texto canônico marca um tempo de predomínio de pénes e ptochós (miseráveis e pobres) na Igreja, o Pastor pressupõe um momento em que “pessoas de classe sociais mais elevadas começaram a participar da Igreja”[2].                             

Com este post encerro os textos sobre Pastor de Hermas. Esta obra, como percebemos, é um rico material para estudarmos o desenvolvimento do discurso teológico de algumas comunidades cristãs, e serve-nos de indicador da multiplicidade de Cristianismos, que fervilharam desde os primeiros séculos após o inicio do movimento iniciado por Jesus. Como vimos, as igrejas viviam novos desafios, em especial o aumento do número de ricos entre os seus membros, e por isso urgia a necessidade de releituras de suas próprias tradições e teologias. A própria alegoria da torre em contínua construção, como uma espécie de ecclesia reformate et semper reformanda est, diz muito do processo dinâmico das comunidades cristãs desde seu nascedouro.

Assim, espero ter conseguido, pelo menos, incentivar a leitura dessas obras, às vezes tão esquecidas, para percebermos a dinamicidade da história do Cristianismo e a fluição das ideias teológicas para, no mínimo, criarmos um ambiente de tolerância e respeito com o outro, que – como “eu” – também faz parte desse processo de formação histórica dos discursos sobre fé cristã.         



[1] FILHO, José Adriano. Op. Cit. .
[2] FILHO, José Adriano, p.157. 

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Pastor de Hermas: um livro cristão desconhecido, mas importante (II)"










Pápiro Oxyrhynchus, 1783
manuscrito do Pastor de Hermas do Séc. IV (Mandatas IX).


Continuando nossa discussão sobre Pastor de Hermas, trataremos das questões sobre datação do textos, autor, suas traduções, tradições etc.

Data, traduções, uniformidade...  

       O texto original, em grego, não ficou preservado integralmente. Ele se encontra no Códice Sinaítico e no papiro de Michigan, além de fragmentos de papiros menores. Pastor de Hermas foi preservado integralmente em duas traduções latinas. Existe, também, a tradução etíope e partes de uma tradução copta. Tradicionalmente, a obra se divide em três partes: 5 Visões, 12 Mandatas (mandamentos) e 10 Similitudes (parábolas).
Debellius observou algumas rupturas literárias e repetições, identificando-as como acréscimos. Com essas observações algumas hipóteses são levantadas: 1) o livro das Visões (Vis. I-V) e o livro dos Mandamentos e das Parábolas (Vis. V – Par. VIII) surgiram e existiram independentemente um do outro; 2) O livro das Visões é o mais antigo dos dois; 3) na unificação dos livros foram acrescentadas as Similitudes (parábolas) IX e X.
Vielhauer acredita que a terceira hipótese seja mais provável. E que a unificação bem como a composição é obra de um único autor. Ele até afirma que a história da tradição resolveria melhor as incorreções do que a crítica literária[1]. E, somente o epílogo dos Mand. XII 3.2-5.5 seria uma interpolação. Partindo da hipótese de único autor ou redator, temos como informações duas fontes: O Cânon de Muratori e a própria obra.
No Cânon Muratori, tem-se a informação de que Hermas escreveu O Pastor na época do bispado de seu irmão, o bispo Romano Pio. O bispado de Pio ocupou os anos de 141 até 155, por isso podemos datar sua obra por volta do ano 150, pois trinta ou cinquenta anos depois, o Cânon Muratori daria evidências de sua existência. A hipótese é de que o lugar marcado para a redação do Pastor seria Roma[2].
Na obra temos algumas informações biográficas de Hermas – mesmo sendo tratadas por alguns como fictícias e façam parte de seu projeto literário. Por intermédio delas, torna-se possível, com reservas, retirar alguns detalhes gerais a seu respeito.
Segundo a própria obra, Hermas seria cristão, escravo de nascença e que fora vendido em Roma a uma mulher chamada Rode. Posteriormente, libertado por ela, casou-se com uma mulher identificada como “linguaruda”. Enriqueceu-se, mas não era feliz. Seus filhos, além de traidores, eram debochados e blasfemadores. Por castigo, Deus entregou a casa de Hermas à ruína. Esse momento decisivo em sua vida, porque foi a ocasião provocadora da matéria do livro.
O que se pode concluir, com mais certeza, é que o autor viveu em Roma pelos meados do século II. Era leigo, adocionista, casado, sem grande cultura e que não conhecia muito bem teologia.
O Pastor de Hermas pertence à tradição da profecia cristã primitiva[3]. Isso, porque, possui alguns elementos formais comuns com o discurso profético. Assim, o livro busca encorajar e desencorajar reivindicando autoridade promovida por revelações, nos oráculos. Paulo Nogueira, citando David Aune, afirma que há duas formas de oráculos proféticos no livro: a primeira encontrada nas visões I- IV e a segunda nos Mandamentos e nas Parábolas. As duas fazem são similares e exibem um equilíbrio entre promessa de salvação e ameaça de julgamento[4]. Contudo, nos oráculos dos Mandamentos e nas Parábolas “o centro destes é um oráculo (ou oráculos) de segurança, uma forma encontrada na literatura apocalíptica judaica e cristã”[5].
Neste ponto, Vielhauer confirma o queeu disse no primeiro postI, mas com algumas modificações. Segundo ele, o Pastor utiliza o estilo apocalíptico, ou figuras apocalípticas (gafanhoto, simbolismo de cores, monstro marinho) que servem para descrever acontecimentos futuros e finais. Até aí, parece-me que ele está caminhado estamos caminhando juntos, mas ele acrescenta e diz que o livro faz isso de forma “desescatologizada”, ou seja, ele individualiza essas figuras e declara uma ameaça pessoal e presente. Segundo ele, não é mais o destino dos homens que está em jogo, mas o destino do indivíduo. E mais, a forma visionária serve para demonstrar o sucesso da penitência. Assim, o autor conclui, neste ponto, que o Pastor utiliza a forma do apocalipse, mesmo não intentando anunciar acontecimentos escatológicos, para dar caráter de revelação à sua experiência religiosa. Vielhauer ainda diz que os temas apocalípticos dentro da história dos gêneros faltam em Hermes, assim o livro deve ser tratado como “pseudoapocalíptico”.[6] Bom, não sei se isso seria muito aceitável, mas nos serve como proposta de leitura do texto.      

Continuaremos no próximo post...


[1] VIELHAUER, Philipp
[2] Ver in: PADRES APOSTÓLIOS. São Paulo: Paulus, 1995 (patrística); VIELHAUER, Philipp.
[3] NOGUEIRA, Paulo A. de Souza et al. Apocalíptica cristã- primitiva: uma leitura para dentro da experiência religiosa e para além do cânon. RIBLA, n. 42/43 (2002): p. 162 -191.       
[4] NOGUEIRA, Paulo A. de Souza et al. Apocalíptica cristã- primitiva... p. 186. 
[5] NOGUEIRA, Paulo A. de Souza et al. Apocalíptica cristã- primitiva...  p. 189.  
[6] VIELHAUER, Philipp... 549.  

sábado, 31 de março de 2012

Pastor de Hermas: um livro cristão desconhecido, mas importante (Part. I)




"Pastor de Hermas", Séc. III, (Catacumbas de Roma)

        
        Nestes próximos posts apresentarei uma obra desconhecida hoje em dia, mas muito importante para os primeiros cristão, a saber, Pastor de Hermas.   

Considerações Iniciais: Literatura Apocalíptica e Pastor de Hermas


O livro Pastor de Hermas foi muito apreciado na antiguidade cristã, a ponto de alguns Pais Apostólicos tratarem-no como canônico. Em questão de gênero, por causa de sua linguagem, seria possível concebê-lo como literatura apocalíptica.
A famosa definição de apocalipse como gênero literário pode nos ajudar na leitura do Pastor de Hermas:

Apocalipse é um gênero de literatura revelatório com uma moldura narrativa em que a revelação é mediada por um ser de outro mundo para um receptor humano, revelando uma realidade transcendente que é tanto temporal, enquanto visa salvação escatológica, e espacial enquanto envolve outro mundo, sobrenatural[1]. 

Com essa definição, entende-se apocalipse como um gênero literário, comum entre grupos que experimentam ou antecipam a experiência de uma realidade tão agressiva, que o que resta é  interrupção da própria história[2]. Este tipo de literatura tem uma leitura pessimista de seu tempo, pois não encontra nele possibilidade de salvação e, diferente da literatura profética, que focaliza o cenário terreno, sua preocupação está no mundo transcendente.
Sua visão de mundo é dualista: há dois caminhos, dois eones, duas forças. O presente éon é mau, dominado pelo Satanás, e a salvação não pode ser esperada neste. A expectativa é que o hodierno éon será consumado pelo novo, que virá do além. O gênero apocalipse não sabe quando isso ocorrerá, mas o vive como se estivesse próximo.    
Como gênero literário, em resumo, o apocalipse possui estrutura formal com elementos estilísticos que o identificam: 1) pseudonomia; 2) relato de visões: em êxtase ou em sonho, o visionário é arrebatado ao mundo celeste; 3) linguagem simbólica: aparecem figuras de animais, plantas, temporais, estatuas com significados simbólicos; 4) sistematização: ele sistematiza a pluralidade dos fenômenos; 5) panorama da história: ocorre uma periodização da história; 6) descrição do além: o apocalipse informa ao leitor a respeito da existência no “além-mundo”. O visionário desce ao inferno ou sobe ao céu e expõe sua funcionalidade, sua topologia, as hierarquias dos anjos, astronomia e etc; 7) A visão da sala do trono: em alguns apocalipses o visionário, que foi ao céu, vê a sala do trono de Deus. Essa visão aparece na mística judaica, que tinha como campo simbólico as viagens místicas pelos céus, que ficou conhecido como o misticismo da Merkavah, o trono carruagem de Deus.
Em questão de função, a mensagem apocalíptica, legitimada por sua autoridade divina, deseja que seus receptores sejam encorajados a modificar suas instâncias contemporâneas e cognitivas com uma perspectiva transcendente[3].
Neste sentido, apocalíptica é uma expressão religiosa, um “espírito”, uma visão de mundo que tem no gênero apocalíptico seus pressupostos. Como diria Peter Beger, a religião serve para conhecer o mundo e situar-se nele[4]. Nesta mesma linha de raciocínio, a apocalíptica é uma forma de explicar e situar-se no mundo[5].
Observando as definições propostas, pode-se afirmar que a estratégia literária de Pastor de Hermas está vazada do gênero apocalíptico, mas com algumas diferenças. A sua linguagem é de uma apocalíptica particular, pressupõe a grande tribulação[6] e utiliza-se de diálogos obtidos através de visões de seres celestes. Essas visões são certamente formas literárias, imaginadas, com o intuito de traduzir e transmitir a preocupação religiosa de Hermas: o direito do pecador ao perdão de seus pecados, mesmo após o batismo.
Eusébio de Cesárea acreditava que Pastor de Hermas era tratado como Escritura por Irineu (130-200 d.C), isso por causa de um texto encontrado na sua obra adversos haereses 4,20.2. Clemente de Alexandria, também o cita, em sua obra stromates.


História da Leitura e Recepção do Pastor de Hermas.

 Na Patrística aparecem várias citações desta obra, mostrando sua influência. Mesmo as passagens mais enigmáticas foram utilizadas, como se percebe em Clemente de Alexandria. Na obra Stomatas (1,29; 2,10) encontramos a citação da complexa passagem da Parábola 9,16 do livro de Hermas. A história de sua recepção e leitura é muito interessante e mostra o quanto esteve presente na cristandade desde metade do segundo século.
Assuntos como batismo, penitência, Igreja, fé, atributos divinos, salvação, pobre/rico e perdão estão pincelados no conteúdo da obra. O texto não demonstra domínio teológico, mas experiência de fé e ideias ascetas de piedade.    
Seu contado com a literatura que seria posteriormente canônica não é perceptível. No entanto, alguns acreditam que Hermas inspirou-se no Evangelho Segundo os Hebreus, outra obra apócrifa.
Outro nome ligado ao Pastor de Hermas é Orígenes (185-254 d.C). Este fez uma pesquisa nas varias províncias da Igreja para perceber os costumes, no seu tempo, dos cristãos. Com isso, tirou algumas conclusões a respeito dos livros mais usados nas comunidades, dividindo-os em Classes. Segundo ele, a primeira classe seria a dos anatírreta ou homologoúmenen (os incontestáveis). A segunda classe seria os amphiballómenas (escritos duvidosos). A terceira pseudé (os heréticos)[7]. O livro Pastor não aparece nesta lista, mas Origines diz ser um livro “divinamente inspirado” (Rom. 10,31). O mesmo teólogo, posteriormente faz alusão a partes do Pastor com caráter de inspirado (Comment. in Mat. 14,21). O mesmo Orígenes identifica o “Hermes” citado em Rm 16,14 com do Pastor de Hermas.
A lista de livros do Cânon Muratori, obra do Séc. II, não dá ao Pastor valor canônico, mas o admite como leitura privativa. Mesmo assim, o livro foi incluído no Códice Sinaítico[8].
Tertuliano (160-230 d.C), a princípio aceitou-o como texto inspirada (De Oratione 16). No entanto, na época em que aderiu ao montanismo, tratou Pastor de Hermas como “adúltera e patrona dos adúlteros” (De Pudicitia 10,11).
Na história da recepção do livro Pastor, encontra-se a obra de Eusébio de Cesaréia. Ele divide em dois grupos os escritos cristãos: 1) homologoúmena (autênticos); 2) antilegomena (inautênticos) e 3) os completamente destituídos de sentido e impiedosos.  Entre os antilegomena ele destaca dois grupos, um que merece maior e outro que merece menor estima. O Pastor está no segundo grupo desta lista, os de menor estima.
Atanásio em 367 d.C, na sua carta pastoral, onde escreveu a lista dos 27 livros (mais tarde tratados como canônicos), não colocou Pastor de Hermas. Contudo, por causa dos Mandatas (mandamentos), uma das partes do Pastor, colocou-o entre os livros que deveriam ser lidos em voz alta na Igreja e na instrução batismal.
Jerônimo (340-420 d.C) também identificou o “Hermes” de Rm 16,14 com o autor da obra Pastor, e expôs a utilidade desta obra para os escritos antigos e seu desconhecimento entre os latinos (De Viris Illustribus, 10).
Depois de sua larga difusão no Oriente, nas igrejas gregas, visto como inspirado para uns e inautêntico por outros, o Pastor foi colocado definitivamente, durante o papado de Gelásio (492-496), entre os apócrifos. 

No próximo post continuaremos o assunto...



[1] COLLINS, Adélia Yarbro (org). Early Chistian Apocalyptcism: Genre and Social Setting. In: SEMEIA, n.36 (1986): 2.     
[2] FILHO, José Adriano. Caos e Recriação do Cosmos. A percepção do Apocalipse de João. In: RIBLA, n. 34 (1999): 7-30.        
[3] COLLINS, Adélia Yarbro (org). Temporalidade e Política Na Literatura Apocalíptica Judaica.In:  Oracula, n. 2 (2005): 6-7.   
[4] BEGER, Peter L. O Dossel Sagrado: Elementos Para Uma Teoria Sociológica Da Religião. São Paulo: Paulus, 1985.    
[5] Para os conceitos apocalipse, escatologia apocalíptica e apocalipsismo ver: HANSON, Paul D. “Apocalypse, genre” and “Apocalypticism”. In: Interpreter’s Dictionary of the Bible. (Suplementary Volume). Nashville, Abingdon Press, 1976. p. 27-34; DITOMMASO, Lorenzo. Apocalypses and Apocalypticism in Antiquity (Part I). In: Currents in Biblical Research 5.2 (2007): 235-268; COLLINS, J.J (ed.) Apocalypse: The Morphology of a Genre. In: Semeia 14 (1979); BOER, Martinus de. A influência da apocalíptica judaica sobre as origens cristãs: gênero, cosmovisão e movimento social. In: Estudos de Religião 19 (2000): 11-24.
[6] FILHO, José Adriano. O Pobre e o Rico em Tiago e no Pastor de Hermas. In: RIBLA, n.31 (1998): 143-157.   
[7] KÜMMEL, W.G. Introdução ao Novo Testamento.São Paulo: PAULUS, 1905. p.p. 653-654.   
[8] VIELHAUER, Philipp. História da Literatura Cristã Primitiva: Introdução ao Novo Testamento, aos livros apócrifos e aos pais apostólicos. Santo André: SP: Academia Cristã de Ltda, 2005.p. 541.