sábado, 28 de abril de 2012

Pastor de Hermas: um livro cristão desconhecido, mas importante (Final)


 Ícone da Visão de Hermas








Continuação e encerramento dos posts sobre Pastor de Hermas....



O conteúdo do Pastor de Hermas

O conteúdo do livro, como já disse, é dividido nos blocos das Visões, Mandamentos e Parábolas.

Na Visão I  está o início da história. Hermas vê sua antiga dona banhando-se no Tíbre, por ser muito bela deseja tê-la como esposa. O relato segue e inicia a visão progriamente dita. Alguns dias depois no caminho para Cunas, Hermas é levado pelo Espírito para uma região estranha e vê sua antiga dona como aparição celestial, que lhe mostra como seu desejo foi pecaminoso. Depois, aparece-lhe uma anciã com vestes resplandecentes com um livro na mão. Ela senta-se em uma grande poltrona branca, prega arrependimento para Hermas e sua casa e lhe lê um hino de glorificação a Deus (2.3). No mesmo contexto, aparecem-no anjos que levam a poltrona e depois a própria anciã.

A Visão II acontece um ano depois no mesmo lugar. A anciã entrega a Hermas uma carta celestial, a qual ele copia sem entendê-la e que em seguida desaparece misteriosamente. Somente depois de catorze dias, após oração e jejum, Hermas consegue ler a carta. Nela há uma mensagem divina de que a atual cristandade ainda teria uma única possibilidade de penitência, e Hermas recebe a missão de transmiti-la aos dirigentes da comunidade (2 e 3). Seguem duas visões complementares: durante o sono Hermas recebe a revelação de que a anciã não seria a Sibila, como acreditava, mas a Igreja; depois a anciã aparece em sua casa e lhe passa instruções sobre a divulgação da carta celestial.

Na Visão III, encontra-se a construção da torre. Depois de um longo periodo de oração e Jejum, Hermas recebe da anciã a ordem de ir a seu campo. Lá encontra um banco de marfim sobre o qual a anciã se senta e lhe mostra o lugar para sentar.  Ela lhe mostra seis jovens construindo uma imponente torre edificada sobre a água, que  é construída de pedras brancas trazidas por milhares de homens (l e 2). Esta torre é identificada, alegoricamente, com a Igreja (3-7). Além disso, ela lhe mostra sete virgens em volta da torre e as interpreta como represen­tantes das virtudes (8.1-7), e lhe transmite admoestações direcionadas a comunidade cristã (8.11-9.10). Em um longo adendo, que ainda fala de duas visões, fica-se sabendo que nos três encontros até então, a anciã havia aparecido com diversas aparências. Hermas recebe uma interpretação alegórica da triede aparencia da anciã (10-13).

Na Visão IV temos as bestas. Vinte dias depois, no caminho a seu cam­po, Hermas se encontra com um gigantesco monstro marinho (1) e com a anciã transformada em donzela, a qual lhe explica que o monstro repre­senta a tribulação iminente (2.1-3.6), desaparecendo depois misterio­samente para sempre.

A VisãoV, por sua vez, serve como introdução aos Mandatas [mandamentos] e às Similitudines [parábolas]. O novo portador da revelação, o pastor, aparece a Hermas em sua casa e Hermas o reconhece como "o anjo da penitên­cia". O pastor ordena que Hermas anote seus mandamentos e suas parábolas.

O bloco das mandatas tem tem em seu conteúdo o discurso sobre o Deus único, a simplidade, confinça, castidade, verdade, penitência cristã, paciência e ira, dois tipos fé, dupla espécie de temor, dúvida , tristeza, o falso profeta, verdadeira e a falsa profecia, dupla espécie de cobiça e epílogo aos Mandamentos.

Depois dos Mandamentos, temos as parabolas, sob a forma de visões, as quais são explicadas pelo anjo: 1. a parabola sobre a cidade verdadeira; 2. o olmeiro e a videira, 3. as árvores sem  folhas, 3. as árvores verdes e as árvores secas, 4. o escravo fiel, 5. o anjo da volúpia e do erro, 6. o grande salgueiro, 7. os doze montes da Arcádia. Encontramos também a repetição da visão da construção da torre e a purificação da torre e dos montes. Depois disso, o livro encerra com a aparição de Cristo a Hermas e ao Pastor, e uma exortação final com promessas.               


O discurso teológico do Pastor de Hermas
         

O livro trata de alguns temas eclesiológicos e práxis social. Em Pastor de Hermas a Igreja é uma instituição necessária para salvação, vista como uma entidade primordial – primeira de todas as criaturas (Vis. II, 8.1). Tudo foi criado por causa dela (Vis. II, 4.1). A alegoria utilizada por Hermas para representar a Igreja é a torre que está em construção (Vis. III, 3-5). Este edifício espiritual feito de pedra tem o filho de Deus, os patriarcas, profetas do Antigo Testamento e, depois, os apóstolos, os bispos, doutores e os servidores humildes como fundamento. Segundo a obra, enquanto a Igreja estiver no mundo estará sempre em construção, aguardando sua perfeição final até o último dia.

A respeito da questão cristológica, percebe-se que não é empregado no livro, nenhuma vez, os termos “Jesus Cristo” ou “Logos”. No texto (par. IX. 1.1-2), a anciã (Igreja) é identificada com o Espírito Santo e o Espírito Santo é identificado com o Filho de Deus.  Assim, a figura do Espírito Santo identifica-se como o próprio filho de Deus. Por isso, a cristologia de Hermas obteve muitas dificuldades de ser aceita pelas comunidades cristãs. Segundo Hermas, teríamos duas pessoas em Deus: Deus Pai e Deus Espírito Filho, cujas relações se configuram com as de Pai e Filho.

A preocupação primordial de Hermas é a penitência. Por isso, sua maior ênfase não é a questão doutrinário/dogmática, mas moral. Sendo seu argumento principal a necessidade da penitência. Desta forma, o texto está dialoga polemicamente com os rigoristas, corrente que afirmava não haver outra penitência senão aquela do batismo. Contudo, Hermas não tinha a intenção de desvalorizar o batismo, mas simplesmente apresentar a possibilidade de penitência ainda depois deste. Isso se percebe quando ele afirma que os apóstolos e os mestres desceram, após a morte, ao limbo para batizar os justos mortos antes de Cristo. Esta tradição de descida ao lugar dos mortos tem paralelo com interpretações cristãs da tradição petrina e com narrativas antigas de deuses e filósofos que desceram ao inferno, ou local dos mortos.

A tendência do livro é parenética e voltada, como disse, para a defesa da penitência. Nele, temos a notícia de que essa prática só será possível enquanto a torre estiver em construção, depois disso será impossível. Esta prática é tão importante, que a construção da torre foi interrompida, para que ocorra a renovação do espírito, ou seja, a penitência.

No setor das ações ascetas, Hermas chama a atenção para o grande valor do jejum, do celibato e do martírio.  

O Pastor de Hermas também trata da questão do rico e do pobre, mas diferente da maneira como é tratada em Tiago. Enquanto este tem os ricos como condenados e opressores, destinados à destruição (Tg 4, 13-17; 5,1-6), o Pastor abre as portas para a possibilidade de arrependimento e ajuda recíproca entre rico e pobre[1].

Neste sentido, a riqueza é tratada como uma dádiva de Deus e deve ser utilizada para ajudar o pobre. Assim, o pobre agradecido oraria a Deus, “porque a oração do pobre é bem acolhida diante de Deus” (Vis. 6). Nesta reciprocidade, cumprir-se-ia o propósito de Deus: o rico usaria bem sua riqueza e o pobre mediaria o rico em oração. Percebe-se a influencia da tradição do pobre como sinônimo de piedade e preferido de Deus, mas isso no Pastor de Hermas não condena o rico. Pelo contrário, os abastados tornam-se canal para o cumprimento do projeto de Deus. E, quem agisse assim, reciprocamente, seria escrito no “livro dos viventes” (Vis. 9)

Este avanço em Pastor de Hermes em relação ao rico e pobre, marca um período posterior explicito na carta de Tiago. Enquanto o texto canônico marca um tempo de predomínio de pénes e ptochós (miseráveis e pobres) na Igreja, o Pastor pressupõe um momento em que “pessoas de classe sociais mais elevadas começaram a participar da Igreja”[2].                             

Com este post encerro os textos sobre Pastor de Hermas. Esta obra, como percebemos, é um rico material para estudarmos o desenvolvimento do discurso teológico de algumas comunidades cristãs, e serve-nos de indicador da multiplicidade de Cristianismos, que fervilharam desde os primeiros séculos após o inicio do movimento iniciado por Jesus. Como vimos, as igrejas viviam novos desafios, em especial o aumento do número de ricos entre os seus membros, e por isso urgia a necessidade de releituras de suas próprias tradições e teologias. A própria alegoria da torre em contínua construção, como uma espécie de ecclesia reformate et semper reformanda est, diz muito do processo dinâmico das comunidades cristãs desde seu nascedouro.

Assim, espero ter conseguido, pelo menos, incentivar a leitura dessas obras, às vezes tão esquecidas, para percebermos a dinamicidade da história do Cristianismo e a fluição das ideias teológicas para, no mínimo, criarmos um ambiente de tolerância e respeito com o outro, que – como “eu” – também faz parte desse processo de formação histórica dos discursos sobre fé cristã.         



[1] FILHO, José Adriano. Op. Cit. .
[2] FILHO, José Adriano, p.157. 

2 comentários:

  1. Caro Kenner,

    Paz e Bem!

    Sem dúvida você atingiu o objetivo. Essa obra, como outras que marcam os primeiros séculos do cristianismo primitivo, precisa ser revisitada - e no segmento religioso a que pertencemos, lida pela primeira vez.
    Na minha opinião, um assunto que precisa ser pensado e repensado é a relação, do ponto de vista social, da Igreja com a sociedade. O Pastor de Hermas demonstra que este assunto fazia parte da agenda daquela igreja. Outras obras vão ratificar esse fato. Além do texto canônico ser farto quanto a questão social - tanto vétero quanto neotestamentário - a produção literária das igrejas após o século I têm muito a agregar a essa questão.
    Como disse no comentário anterior, você presta um serviço ímpar para quem encara com seriedade o exercício da reflexão teológica.

    Aprendo muito com você!

    Um abraço fraterno,

    M.O.O.
    Rio de Janeiro - RJ

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  2. Olá Marcelo,
    graça e paz!

    É sempre um prazer receber tuas contribuições neste blog, pois acrescentam e enriquecem a discussão.
    Tens toda razão, precisa fazer parte da nossa agenda as questões sociais e, até mesmo, nossas relações com o desenvolvimento da cultura da "preocupação social", que é mais do que agir assistencialmente, mas é repensar a formação de uma mentalidade da preocupação e do cuidado do outro, uma espécie de proclamação e educação para promoção da “desvalorização do egoísmo”, que em si já é anuncio do evangelho. Pastor de Hermas é uma tentava; os textos bíblicos nos dão a luz; basta-nos, agora, criatividade e paixão!

    Grande abraço

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