manuscrito do Pastor de Hermas do Séc. IV (Mandatas IX).
Continuando nossa discussão sobre Pastor de Hermas, trataremos das questões sobre datação do textos, autor, suas traduções, tradições etc.
Data, traduções, uniformidade...
Debellius observou algumas rupturas literárias
e repetições, identificando-as como acréscimos. Com essas observações algumas
hipóteses são levantadas: 1) o livro das Visões (Vis. I-V) e o livro dos Mandamentos
e das Parábolas (Vis. V – Par. VIII) surgiram e existiram independentemente um
do outro; 2) O livro das Visões é o mais antigo dos dois; 3) na unificação dos
livros foram acrescentadas as Similitudes (parábolas) IX e X.
Vielhauer acredita que a terceira hipótese seja mais provável. E que a
unificação bem como a composição é obra de um único autor. Ele até afirma que a
história da tradição resolveria melhor as incorreções do que a crítica
literária[1].
E, somente o epílogo dos Mand. XII 3.2-5.5 seria uma interpolação. Partindo da
hipótese de único autor ou redator, temos como informações duas fontes: O Cânon de Muratori e a própria obra.
No Cânon Muratori, tem-se a informação de que Hermas escreveu O Pastor na época do bispado de seu
irmão, o bispo Romano Pio. O bispado de Pio ocupou os anos de 141 até 155, por
isso podemos datar sua obra por volta do ano 150, pois trinta ou cinquenta anos
depois, o Cânon Muratori daria evidências de sua existência. A hipótese é de que o lugar marcado para a redação do Pastor seria Roma[2].
Na obra temos algumas informações biográficas de Hermas – mesmo sendo
tratadas por alguns como fictícias e façam parte de seu projeto literário. Por
intermédio delas, torna-se possível, com reservas, retirar alguns detalhes
gerais a seu respeito.
Segundo a própria obra, Hermas seria cristão, escravo de nascença e que
fora vendido em Roma a uma mulher chamada Rode. Posteriormente, libertado por
ela, casou-se com uma mulher identificada como “linguaruda”. Enriqueceu-se, mas
não era feliz. Seus filhos, além de traidores, eram debochados e blasfemadores.
Por castigo, Deus entregou a casa de Hermas à ruína. Esse momento decisivo em
sua vida, porque foi a ocasião provocadora da matéria do livro.
O que se pode concluir, com mais certeza, é que o autor viveu em Roma pelos
meados do século II. Era leigo, adocionista, casado, sem grande cultura e que
não conhecia muito bem teologia.
O Pastor de Hermas pertence à
tradição da profecia cristã primitiva[3].
Isso, porque, possui alguns elementos formais comuns com o discurso profético.
Assim, o livro busca encorajar e desencorajar reivindicando autoridade promovida
por revelações, nos oráculos. Paulo Nogueira, citando David Aune, afirma que há
duas formas de oráculos proféticos no livro: a primeira encontrada nas visões
I- IV e a segunda nos Mandamentos e nas Parábolas. As duas fazem são similares
e exibem um equilíbrio entre promessa de salvação e ameaça de julgamento[4]. Contudo,
nos oráculos dos Mandamentos e nas Parábolas “o centro destes é um oráculo (ou
oráculos) de segurança, uma forma encontrada na literatura apocalíptica judaica
e cristã”[5].
Neste ponto, Vielhauer confirma o queeu disse no primeiro postI, mas com algumas modificações. Segundo
ele, o Pastor utiliza o estilo
apocalíptico, ou figuras apocalípticas (gafanhoto, simbolismo de cores, monstro
marinho) que servem para descrever acontecimentos futuros e finais. Até aí,
parece-me que ele está caminhado estamos caminhando juntos, mas ele acrescenta e
diz que o livro faz isso de forma “desescatologizada”, ou seja, ele individualiza
essas figuras e declara uma ameaça pessoal e presente. Segundo ele, não é mais
o destino dos homens que está em jogo, mas o destino do indivíduo. E mais, a forma
visionária serve para demonstrar o sucesso da penitência. Assim, o autor
conclui, neste ponto, que o Pastor utiliza
a forma do apocalipse, mesmo não intentando anunciar acontecimentos
escatológicos, para dar caráter de revelação à sua experiência religiosa.
Vielhauer ainda diz que os temas apocalípticos dentro da história dos gêneros
faltam em Hermes, assim o livro deve ser tratado como “pseudoapocalíptico”.[6]
Bom, não sei se isso seria muito aceitável, mas nos serve como proposta de
leitura do texto.
Continuaremos no próximo post...
[1]
VIELHAUER, Philipp
[2]
Ver in: PADRES APOSTÓLIOS. São Paulo: Paulus, 1995 (patrística); VIELHAUER,
Philipp.
[3]
NOGUEIRA, Paulo A. de Souza et al. Apocalíptica cristã- primitiva: uma leitura
para dentro da experiência religiosa e para além do cânon. RIBLA, n. 42/43 (2002): p. 162 -191.
[4] NOGUEIRA,
Paulo A. de Souza et al. Apocalíptica cristã- primitiva... p. 186.
[5] NOGUEIRA,
Paulo A. de Souza et al. Apocalíptica cristã- primitiva... p. 189.
[6]
VIELHAUER, Philipp... 549.
Caro Kenner,
ResponderExcluirPaz e Bem!
Mais um resgate da história literária primitiva do cristianismo!
O tempo é corrido e o trabalho de produção textual não para, por isso estou um bom tempo sem comentar no seu blog. Mas lendo a relevância do seu texto, como a dos demais, não pude me furtar da posição daquele que aprende com você, por isso lhe faço duas sinceras perguntas:
Partindo do “pressuposto histórico” de que o cânon neotestamentário não "caiu do céu com zíper e tudo", mas houve um processo histórico-social-político que influenciou seu fechamento. A rejeição da literatura do Pastor de Hermas não estaria atrelada ao êxtase pessoal de um “leigo”? Se sim ― e se é pertinente a pergunta ― Admitir "um texto inspirado" cujo “autor” é um leigo, não caracterizaria o sacerdócio real dos crentes; e não o do clero (algo inimaginável pelo zeitgeist eclesiástico daquela contemporaneidade)?
Parabéns pelo belíssimo trabalho e resgate de uma proto-literatura cristã. Fico no aguardo do próximo post!
Um abraço fraterno,
M.O.O.
Rio de Janeiro - RJ
Olá Marcelo,
ExcluirGraça e paz!
É sempre um prazer encontra-te aqui neste espaço, porque contribuiu com ricas intervenções.
Como bem disseste, a canonização da literatura cristã é fruto de longo processo, que se estendeu por um bom tempo (lembremo-nos de Lutero e sua crise com Tiago e Apocalipse), e o Pastor de Hermas é um exemplo disso. No entanto, saber ao certo as razões específicas de sua desvalorização progressiva não é uma tarefa fácil. A questão do êxtase e, também, do misticismo apocalíptico presente no Pastor poderia, sim, ter gerado desconforto em alguns grupos cristãos, mas ser “leigo” não seria um ponto fundamental, pois este conceito no tempo do texto não era tão definido como nos dias posteriores. O determinante na aceitação da autenticidade do livro foi (talvez) o nome “Hermas”, que, independentemente de ser leigo ou não, daria ou não valor à obra. Contudo, ainda acho que usar esta definição (leigo) para o período não é muito recomendável. Mas essa questão deve ser tratada com mais tempo, pois mexe com conceitos e assuntos dignos de pesquisas. Por isso é uma questão muito boa! Obrigado.
Abração
kenner
Gostei da postagem e do blog. Estou tentando escrever algo sobre a literatura cristã primitiva neste blog: http://luminarerefili.blogspot.com.br/
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