"Pastor de Hermas", Séc. III, (Catacumbas de Roma)
Nestes próximos posts apresentarei uma obra desconhecida hoje em dia, mas muito importante para os primeiros cristão, a saber, Pastor de Hermas.
Considerações Iniciais: Literatura Apocalíptica e Pastor de Hermas
O livro Pastor de Hermas foi
muito apreciado na antiguidade cristã, a ponto de alguns Pais Apostólicos
tratarem-no como canônico. Em questão de gênero, por causa de sua linguagem,
seria possível concebê-lo como literatura apocalíptica.
A famosa definição de apocalipse como gênero literário pode nos ajudar na
leitura do Pastor de Hermas:
Apocalipse é
um gênero de literatura revelatório com uma moldura narrativa em que a revelação
é mediada por um ser de outro mundo para um receptor humano, revelando uma
realidade transcendente que é tanto temporal, enquanto visa salvação
escatológica, e espacial enquanto envolve outro mundo, sobrenatural[1].
Com essa definição, entende-se apocalipse como um gênero
literário, comum entre grupos que experimentam ou antecipam a experiência de uma realidade tão
agressiva, que o que resta é interrupção da própria história[2].
Este tipo de literatura tem uma leitura pessimista de seu tempo, pois não
encontra nele possibilidade de salvação e, diferente da literatura profética,
que focaliza o cenário terreno, sua preocupação está no mundo transcendente.
Sua visão de mundo é dualista: há dois caminhos, dois eones,
duas forças. O presente éon é mau, dominado pelo Satanás, e a
salvação não pode ser esperada neste. A expectativa é que o hodierno éon será
consumado pelo novo, que virá do além. O gênero apocalipse não sabe quando isso
ocorrerá, mas o vive como se estivesse próximo.
Como
gênero literário, em resumo, o apocalipse possui estrutura formal com elementos
estilísticos que o identificam: 1) pseudonomia; 2) relato de visões: em êxtase
ou em sonho, o visionário é arrebatado ao mundo celeste; 3) linguagem
simbólica: aparecem figuras de animais, plantas, temporais, estatuas com
significados simbólicos; 4) sistematização: ele sistematiza a pluralidade dos
fenômenos; 5) panorama da história: ocorre uma periodização da história; 6)
descrição do além: o apocalipse informa ao leitor a respeito da existência no
“além-mundo”. O visionário desce ao inferno ou sobe ao céu e expõe sua
funcionalidade, sua topologia, as hierarquias dos anjos, astronomia e etc; 7) A
visão da sala do trono: em alguns apocalipses o visionário, que foi ao céu, vê
a sala do trono de Deus. Essa visão aparece na mística judaica, que tinha como
campo simbólico as viagens místicas pelos céus, que ficou conhecido como o
misticismo da Merkavah, o trono carruagem de Deus.
Em
questão de função, a mensagem apocalíptica, legitimada por sua autoridade
divina, deseja que seus receptores sejam encorajados a modificar suas
instâncias contemporâneas e cognitivas com uma perspectiva transcendente[3].
Neste
sentido, apocalíptica é uma expressão religiosa, um “espírito”, uma visão de
mundo que tem no gênero apocalíptico seus pressupostos. Como diria Peter Beger,
a religião serve para conhecer o mundo e situar-se nele[4].
Nesta mesma linha de raciocínio, a apocalíptica é uma forma de explicar e
situar-se no mundo[5].
Observando as definições propostas, pode-se afirmar que a estratégia
literária de Pastor de Hermas está vazada do gênero apocalíptico, mas com
algumas diferenças. A sua linguagem é de uma apocalíptica particular, pressupõe
a grande tribulação[6] e
utiliza-se de diálogos obtidos através de visões de seres celestes. Essas
visões são certamente formas literárias, imaginadas, com o intuito de traduzir
e transmitir a preocupação religiosa de Hermas: o direito do pecador ao perdão
de seus pecados, mesmo após o batismo.
Eusébio de Cesárea acreditava que Pastor de Hermas era tratado como
Escritura por Irineu (130-200 d.C), isso por causa de um texto encontrado na
sua obra adversos haereses 4,20.2.
Clemente de Alexandria, também o cita, em sua obra stromates.
História da Leitura e Recepção do Pastor de Hermas.
Assuntos como batismo, penitência, Igreja, fé, atributos divinos,
salvação, pobre/rico e perdão estão pincelados no conteúdo da obra. O texto não
demonstra domínio teológico, mas experiência de fé e ideias ascetas de
piedade.
Seu contado com a literatura que seria posteriormente canônica não é
perceptível. No entanto, alguns acreditam que Hermas inspirou-se no Evangelho
Segundo os Hebreus, outra obra apócrifa.
Outro nome ligado ao Pastor de
Hermas é Orígenes (185-254 d.C).
Este fez uma pesquisa nas varias províncias da Igreja para perceber os
costumes, no seu tempo, dos cristãos. Com isso, tirou algumas conclusões a
respeito dos livros mais usados nas comunidades, dividindo-os em Classes.
Segundo ele, a primeira classe seria a dos anatírreta
ou homologoúmenen (os
incontestáveis). A segunda classe seria os amphiballómenas
(escritos duvidosos). A terceira pseudé
(os heréticos)[7]. O livro
Pastor não aparece nesta lista, mas
Origines diz ser um livro “divinamente inspirado” (Rom. 10,31). O mesmo teólogo, posteriormente faz alusão a partes do
Pastor com caráter de inspirado (Comment. in Mat. 14,21). O mesmo
Orígenes identifica o “Hermes” citado em Rm 16,14 com do Pastor de Hermas.
A lista de livros do Cânon Muratori, obra do Séc. II, não dá ao Pastor valor canônico, mas o admite como
leitura privativa. Mesmo assim, o livro foi incluído no Códice Sinaítico[8].
Tertuliano (160-230 d.C), a princípio aceitou-o como texto inspirada (De Oratione 16). No entanto, na época em
que aderiu ao montanismo, tratou Pastor
de Hermas como “adúltera e
patrona dos adúlteros” (De Pudicitia 10,11).
Na história da recepção do livro
Pastor, encontra-se a obra de Eusébio de Cesaréia. Ele divide em dois grupos
os escritos cristãos: 1) homologoúmena (autênticos); 2) antilegomena
(inautênticos) e 3) os
completamente destituídos de sentido e impiedosos. Entre os antilegomena
ele destaca dois grupos, um que merece maior e outro que merece menor
estima. O Pastor está no segundo
grupo desta lista, os de menor estima.
Atanásio em 367 d.C, na sua carta pastoral, onde escreveu a lista dos 27
livros (mais tarde tratados como canônicos), não colocou Pastor de Hermas. Contudo, por causa dos Mandatas (mandamentos), uma das partes do Pastor, colocou-o entre os livros que deveriam ser lidos em voz
alta na Igreja e na instrução batismal.
Jerônimo (340-420 d.C) também identificou o “Hermes” de Rm 16,14 com
o autor da obra Pastor, e expôs a
utilidade desta obra para os escritos antigos e seu desconhecimento entre os
latinos (De Viris Illustribus, 10).
Depois de sua larga difusão no Oriente, nas igrejas gregas, visto como
inspirado para uns e inautêntico por outros, o Pastor foi colocado definitivamente, durante o papado de Gelásio
(492-496), entre os apócrifos.
No próximo post continuaremos o assunto...
[1] COLLINS, Adélia Yarbro (org). Early
Chistian Apocalyptcism: Genre and Social Setting. In: SEMEIA, n.36 (1986): 2.
[2]
FILHO, José Adriano. Caos e Recriação
do Cosmos. A percepção do Apocalipse de João. In: RIBLA, n. 34 (1999): 7-30.
[3] COLLINS, Adélia Yarbro (org). Temporalidade e
Política Na Literatura Apocalíptica Judaica.In: Oracula, n. 2 (2005): 6-7.
[4]
BEGER, Peter L. O Dossel Sagrado: Elementos Para Uma Teoria Sociológica Da
Religião. São Paulo: Paulus, 1985.
[5] Para os
conceitos apocalipse, escatologia apocalíptica e apocalipsismo ver: HANSON, Paul D.
“Apocalypse, genre” and “Apocalypticism”. In: Interpreter’s Dictionary of
the Bible. (Suplementary Volume). Nashville ,
Abingdon Press, 1976. p. 27-34; DITOMMASO, Lorenzo. Apocalypses and
Apocalypticism in Antiquity (Part I). In: Currents
in Biblical Research 5.2 (2007): 235-268; COLLINS, J.J (ed.) Apocalypse:
The Morphology of a Genre. In: Semeia
14 (1979); BOER, Martinus de. A influência da apocalíptica judaica sobre
as origens cristãs: gênero, cosmovisão e movimento social. In: Estudos de Religião 19 (2000): 11-24.
[6]
FILHO, José Adriano. O Pobre e o Rico em Tiago e no Pastor de Hermas. In: RIBLA, n.31 (1998): 143-157.
[7]
KÜMMEL, W.G. Introdução ao Novo Testamento.São
Paulo: PAULUS, 1905. p.p. 653-654.
[8] VIELHAUER, Philipp. História da Literatura Cristã Primitiva: Introdução ao Novo Testamento,
aos livros apócrifos e aos pais apostólicos. Santo André: SP: Academia
Cristã de Ltda, 2005.p. 541.
Nenhum comentário:
Postar um comentário