segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

As Origens Cristãs e o Misticismo Apocalíptico. Uma Leitura de At 2, 1-4


Escrevi um artigo para  "Reflexus – Revista de Teologia e Ciências das Religiões" e acho interessante tranformá-lo em vários posts. Comecemos, então, com o primeira parte do artigo "As Origens Cristãs e o Misticismo Apocalíptico. Uma Leitura de At 2, 1-4".

Introdução

“O Cristianismo Antigo nasceu como um movimento apocalíptico no Judaísmo” (Rowland, 2009, p. 11). Essa afirmação reproduz resumidamente os resultados de anos de pesquisas a respeito do Cristianismo, ou melhor, dos Cristianismos das origens. É consenso, como as atuais pesquisas reconhecem, que o imaginário religioso da apocalíptica judaica serviu símbolos, temas, motivos literários e códigos para várias práticas e textos do movimento inaugurado por Jesus, um profeta apocalíptico que anunciou a chegada do reino escatológico de Deus no período do segundo templo.

Afirmar que o Cristianismo incipiente é um “movimento apocalíptico judaico”, primeiro, pressupõe-se a existência de variados grupos dentro do plural judaísmo, entre os quais aquele é um deles. Como também, é entender que as origens cristãs estão intimamente ligadas à apocalíptica judaica (Collins, 2010, p. 365), a qual, em constante contato com culturas babilônicas, persas e helênicas produziu textos que refletem uma interpretação da vida à luz de experiências religiosas de êxtase, que permitiam o acesso às realidades celestiais (Rowland, 1982; Himmelfarb, 1993) e criavam a esperanças da iminente intervenção divina (Collins, 2010, p.17-70).

Inserir a origem cristã no judaísmo apocalíptico é afirmar a continuidade, mesmo que criativa e intercambiável, entre o mundo religioso do judaísmo e o movimento cristão dos primeiros séculos. Desta forma, podemos entender, por exemplo, a afirmação de Rowland: “essa é a nossa afirmação, que uma boa compreensão da Teologia do Novo Testamento e Cristianismo das origens é incompleta se o material místico e apocalíptico não forem tratados seriamente” (Rowland, 2009, p. 11).  Neste sentido, o movimento cristão, ou os Cristianismos, testemunhado na literatura neotestamentária deve muito à apocalíptica, em especial em seu âmbito de “perspectiva religiosa”, ou o que Paul Hanson chama de escatologia apocalíptica. Para esse pesquisador, que divide a apocalíptica judaica em três âmbitos (gênero, movimento social e perspectiva religiosa) , a escatologia apocalíptica é como uma forma de ver os planos divinos em relação às realidades terrenas, na qual o mundo encontra-se na iminência da transformação para o novo eon (cf. 4 Esdras  7,50), o reino de Deus, em detrimento do atual, que está corrompido e cheios de demônios (Cf. Jubileus 5) (Hanson, 1976, p. 27-34).

Com os manuscritos encontrados em Qumran, desde a década de quarenta do século passado, as pesquisas sobre a relação do movimento cristão com o judaísmo apocalíptico – os Manuscritos do Mar Morto parecem refletir uma comunidade judaica com características apocalípticas (García Martínez, 2007, p.1) – foram mais frutíferas, primeiramente porque se encontraram temas comuns ao Cristianismo em Qumran, revelando inquestionáveis relações de dependência e apropriação imaginária (Charlesworth, 2006, p. xviii), e, consequentemente, revelaram a matriz judaica de onde surge o Cristianismo (Barrera, 1996, p. 254).

Esse cruzamento cultural, testemunhado nos textos – demonstrando continuidade e descontinuidade; apreensão e (re) significação de conceitos e imagens religiosas –, é possível ou quase necessário, por exemplo, na definição de cultura exposta pela escola russa de semiótica da cultura. A cultura é interpretada por seus teóricos como “fenômeno interativo sem existência isolada e com um campo conceitual unificado fundado no processamento, na troca e na armazenagem de informações” (Machado, 2003, p.54). O próprio conceito linguísticos de discurso acaba levando-nos ao mesmo pressuposto, pois percebe que ele é sempre vazado por outros discursos (Fiorin, 2007, p. 35), como também no nível dialógico da linguagem (Bakhitin, 1988).  

Partindo desse ponto de vista metodológico, analisaremos um texto neotestamentário que esquematiza ou constrói um discurso teológico sobre a origem da igreja, a saber, o livro bíblico Atos dos Apóstolos. Logo no segundo capítulo, ele apresenta de maneira esquematizada a conhecida narrativa de At 2,1-13, “a descida do Espírito”, na qual o autor apresenta uma proposta de origem da igreja. Vale lembrar que o redator não pode ser analisado à luz dos pressupostos modernos da historiografia de perspectivas positivistas, pois cria, como qualquer historiador , por interesses redacionais claros, a história das origens cristãs. O interessante está na presença da linguagem extática do texto, e como essa experiência é descrita ladeada por temas e imagens já presentes na literatura apocalíptica, em especial a enoquita. Pelo menos, três temas saltam os olhos: línguas (como) de fogo, som de ventos e glossolalia. Além da nítida relação com as teofanias veterotestamentárias, esses temas também estão em diálogo com os apocalipses de tipo viagem celestial, nos quais encontramos visionários que são levados até o trono de Deus, onde contemplam o templo celestial.   

Para percebermos essa relação entre as imagens de Atos e a literatura que a antecede, primeiramente, far-se-á uma análise exegética do texto, destacando seus temas e a experiência de êxtase religioso refletida em sua linguagem. Depois, ensaiar-se-á algumas conclusões sobre a relação desse texto com a possível comunidade cristã que ele representa.

1.    Domesticação redacional do êxtase em At 2, 1-13.

Atos 2, 1-47 segue uma forma literária dominante na primeira metade da obra lucana, como também no livro Apócrifo de Atos, que pode ser chamada de “narrativa de propaganda religiosa” (Pervo; Attridge, 2009, p.58). Na primeira parte dessa moldura (2,1-13), a análise literária pode revelar, com certo grau de certeza, dois nítidos blocos: 1-4 (êxtase e glossolalia) e 5-13 (anúncio às nações). Os versos 1-4 são emoldurados sob a ideia de “todos”: “todos reunidos” (v.1) e “todos cheios” (v.4) (Pervo;Attridge, 2009, p.58). Como diz Paulo Nogueira:

Inicialmente nossa abordagem do fenômeno aponta para o fato de que Lucas ‘mascara’ a glossolalia deslocando-a de contexto. Em At 2, ele transforma o falar em ‘outras línguas’ do êxtase cultual em início da pregação do Evangelho. Isso cabe muito bem no propósito teológico e literário de Lucas. O fato de que judeus e prosélitos ouvissem ‘em sua própria língua – ou seja, na língua da diáspora – a pregação dos discípulos serviria de abertura exemplar da evangelização do Império desde Jerusalém até Roma. Essa reformulação redacional do fenômeno é realizada pela mudança sutil de cenário: se antes os discípulos estavam reunidos em ‘um mesmo lugar’, o que indicaria um lugar central de Jerusalém no qual se convertiam e eram batizados 3 mil pessoas. O texto dos versos 1-4 poderia ter cabido perfeitamente em um contexto de cultos das primeiras comunidades (Nogueira, 2003, p. 62)”.

A reformulação redacional domestica o fenômeno de êxtase e línguas com auxílio das tradições judaicas (Witherington III, 1998, p. 130). A festa de pentecostes é o nome dado no Novo Testamento para a celebração da Festa das Semanas, e era realizada no quinquagésimo dia depois da Páscoa (Witherington III, 1998, p. 130). No livro de Jubileus (Jub. 6), importante obra judaica do Séc. II a.C (Witherington III, 1983, p.43-45), encontramos a conexão dessa festa com a renovação da aliança de Noé e de Moisés. E Fílon, ao falar da entrega da Lei, diz: “e uma voz soou do fogo que descia do céu, uma voz muito maravilhosa e terrível. A chama foi dotada de linguagem familiar para seus ouvintes” (Decal. 46 apud Yonge, 1996, p. 522). Na tradição rabínica (b. Shab. 88b), Séc. II d.C, com origens mais antigas, encontramos a crença na inicial proclamação da Lei a setenta nações (Witherington III, 1998, p. 131). Talvez, Lucas tenha domesticado o fenômeno de êxtase usando a tradição da proclamação da Lei às nações, que em Atos são os judeus da diáspora, ocultando o caráter extático da experiência da narrativa mais antiga.
 
Isolando At 2, 1-4, torna-se possível aproximá-lo a outros textos que testemunham as experiências de glossolalia e profecia da comunidade cristã. Na lista dos carismas de 1 Co 12, 1-11, o fenômeno de ἑτέραις γλώσσαις (outras línguas) está entre os demais dons disponibilizados pelo Espírito. Enquanto em Atos essa mesma experiência é sempre possível por intermédio dos apóstolos (8,14-17; 19, 1-7), na comunidade cristã em Corinto não há intermediários. Essa aparente liberdade de expressão e acesso ao fenômeno, não pode ofuscar o nítido desejo de Paulo em domesticá-lo, especialmente nos cultos públicos (1 Co 14, 1-39), pois a maior preocupação era a oikodomé (edificação) (1 Co 14, 3), possível através da inteligibilidade da mensagem. Por isso, ele fala da superioridade da profecia, ou a necessidade de interpretação (1 Co 14, 2-12): “... aquele que fala em línguas não fala a homens, mas a Deus; ninguém entende... mas aquele que profetiza fala aos homens” (14,2.3); “ ... caso não haja intérprete, aguardem em silêncio” (14,28). Uma vez que a própria interpretação também é um dom (1 Co 12, 10), a própria inteligibilidade é disponibilizada carismaticamente pelo Espírito.

Aproximando essas testemunhas textuais, podemos colocá-las em um mesmo lócus de experiências cristãs primitivas de êxtase religioso. Tanto Atos 2,1-4 como 1 Co 14 refletem o fenômeno da glossolalia como expressão não compreensível à linguagem das nações conhecidas, pois diz respeito à dimensão não racional das experiências com o Espírito, por mais que pudesse ser regulada (1Co 14, 26-40). O que isso significa para a história das comunidades cristãs originárias? Essa pergunta poderá ser respondida com o destaque e análise de alguns indícios de experiências religiosas no texto.

Continuaremos a conversa no próximo post...