sábado, 27 de abril de 2019
ELOGIO DO ABSURDO: QUANDO A IGNORÂNCIA TOMA AS RÉDEAS DO MINISTRO E PRESIDENTE
Na obra “Elogio da Loucura”, de Erasmo
de Roterdã, a Loucura é descrita como um ser e divindade do Olimpo. No livro,
ela fala de si mesma como guiadora e realizadora de diversas práticas
cotidianas e intelectuais. O humanista insinua que algumas falas, práticas e
perspectivas, por vezes comuns e corriqueiramente estabelecidas, eram aberrações e materialização da deusa
Loucura. Os silogismos aristotélicos inférteis, a ilusão consumista, a teologia
escolástica e diversas outras práticas e discursos foram tratadas como formas
de manifestação da deusa insana. Erasmo, com acidez irônica, estava dizendo que
as pessoas emprestavam suas bocas e corpos para alucinações intelectuais.
E pior, isso se refere às ciências humanas em geral: Administração, Pedagogia,
Arquitetura e Urbanismo, Direito, Ciências Sociais, Ciências Públicas e as
demais áreas do conhecimento a respeito das práticas e desenvolvimento humanos?
Na verdade, os dois reproduziram aquelas interpretações de senso comum de bar e
zap em que “humanas’ é sinônimo de filosofia e sociologia, que não servem para
nada a não ser perverter alunos ou, ainda, são coisas de comunistas e que
engenharias, física e matemática são as que importam e o resto é coisa de
desocupado etc”. O óbvio: claro que estas últimas são importantes, mas sem as
demais elas não seriam possíveis. Para colocar a lume o absurdo, os órgãos
responsáveis por estatísticas, projetos municipais, mapeamento territorial, as
políticas públicas, projetos pedagógicos nacionais, redução de danos e tantas
coisas imprescindíveis para ação do Estado e bem estar social dos
“contribuintes” dependem profundamente de profissionais com formação nessas
áreas achincalhadas pelos dois representantes da República. Além disso, para
ler, escrever e fazer conta (um reducionismo bestial das práticas científicas,
diga-se de passagem) é indispensável exatamente a boa formação nas áreas por
eles ameaçadas. No fundo, Ministro e Presidente, totalmente
intoxicados e emburrecidos por uma visão de mundo (ideologia) extremista,
mostraram como são incapazes de darem conta da grandeza de suas
responsabilidades republicanas e, por outro lado, “jogaram para galera”,
aplacando e alegrando as consciências marcadamente ignorantes de parte do povo,
cuja compreensão em relação às ciências e suas especificidades não passam da
superficialidade. Até entenderia isso em qualquer outro espaço, mas ouvir tal
coisa do Presidente da República e Ministro da Educação é inaceitavelmente
perigoso.
domingo, 21 de abril de 2019
DOMINGO DA RESSURREIÇÃO: ESPERANÇA
Nada é mais belo no
Cristianismo do que a memória da ressurreição. Se Cristo não ressuscitou, disse
Paulo temendo pelos coríntios, não haveria substância em seu ato proclamatório
e nem poesia na nossa fé. O mestre no madeiro mostra a morte em sua crueldade,
a esperteza má da injustiça, a irracionalidade da violência. Na sexta-feira há
agonia, lamúria é caos. Na cruz desnuda-se a irracionalidade do mundo e sua
eloquência para derramar sangue e perfurar corpos. Se nos houvesse somente o
Cristo morto, seríamos os piores desalentados cuja viuvez tornar-se-ia
irremediável, trevas e águas amorfas sem solução, engolidos garganta adentro da
desesperança. Por isso, somos convidados, como as mulheres do sepulcro violado,
a sairmos da perplexidade da ausência do corpo morto em direção à segurança da
exortação angelical: “Por que vocês estão procurando entre os mortos aquele que
vive? Ele não está aqui! Ressuscitou!” (Lc 24,5-6). Assim, a eternidade
constrói uma ponte entre lágrimas e júbilo, lamento e celebração. É o “haja
luz” ordenador que diz: “mar: cala-te, acalma-te!”. O corpo ressurreto e
cósmico ressignifica o sentido da Vida. A ressurreição anuncia a novidade da
vitória, abre um sorriso no pranto e possibilidades entre os destroços. Na
paixão Cristo partilha o caos em seu próprio corpo; na ressurreição aponta para
a criação e ordenação.
Se na obra “O corpo de Cristo morto no túmulo”, 1521/22, de Hans Holbein, o mestre está esquálido, em “A Ressurreição” (1460), do renascentista italiano Piero della Francesca, a luz do Cristo vivo suplanta a silenciosa dor. Preservada no Museu Cívico de Sansepolcro, em Toscana, “A Ressurreição” está na lista das grandes obras de arte da humanidade. Com justiça, Aldous Huxley a descreveu como “a maior pintura do mundo” e por conta de sua grandeza, durante a Segunda Guerra, o capitão britânico Anthony Clarke ordenou parar o bombardeio a Sansepolcro poupando a cidade e essa importante obra.
Com intuição estética e
intensidade, Piero della Francesca mostra Jesus saindo do sepulcro. Abaixo, em
seus pés, estão os guardas dormindo e estáticos sem qualquer possibilidade de
reação, como se a pintura dissesse: o Império Romano e seus instrumentos não
foram capazes de enclausurar o Senhor da vida. No fundo, enquadrando a cena,
vemos uma vegetação sóbria e em contraste: à esquerda, um tronco seco logo
atrás de Jesus; à direita, vemos árvores com folhas em destaque. Com isso, o
pintor italiano reforça a diferença entre morte e vida. No centro, Cristo surge
em plena ressurreição. Ele carrega a bandeira em símbolo de vitória. Em
perspectiva frontal, o mestre olha diretamente para os espectadores
convidando-os a partilharem do seu triunfo. Por sua vez, as marcas da lança e
pregos valorizam ainda mais a destruição dos grilhões.
A obra exposta em Toscana lembra-nos o “não” profético de Deus. Toda a força da morte é
enfrentada, seus agentes desarmados e desmascaradas suas perversas estratégias.
No Domingo da ressurreição somos convidados, então, ao anúncio subversivo da
teimosa esperança, cuja força instaura o horizonte do novo mundo possível e
chama aqueles/as que cantam o cordeiro que venceu a serem seus semeadores,
porque onde houver ódio a ressurreição levará amor, onde houver ofensa levará perdão,
onde houver discórdia levará união, fé, verdade, paz e alegria.
(imagem: Piero della Francesca, "A Ressurreição", 1460)
sábado, 20 de abril de 2019
SÁBADO DE ALELUIA: SILÊNCIO
Quando
Dostoiévski, em 1867, viu pela primeira vez o quadro “O corpo de Cristo morto
no túmulo”, 1521/22, de Hans Holbein, o Jovem, ficou estático por quinze ou
vinte minutos ininterruptos. Em seu livro “Meu marido Dostoiévski”, sua esposa
Ana Grigorievna testemunha que o encontrou impressionado e estupefato diante da
obra exposta na cidade de Basiléia, a ponto de dar reações tais quais os
sintomas iniciais de uma epilepsia. O realismo cadavérico da obra do pintor
amigo de humanistas como Erasmo de Roterdã, tocou profundamente as intuições
estéticas de Dostoiévski influenciando a produção de seu (livro) “O Idiota”, cujo
personagem principal, Príncipe Liev Míchkin, ao contemplar sua cópia e em
diálogo com Rogójin exclama preocupado: “Ora, por causa desse quadro outra
pessoa ainda pode perder a fé!”.
O impacto diante do “Cristo morto” de Holbein
é inevitável. A expressão crua e dura da realidade humana perpassa todo seu
corpo horizontal. Suas medidas e formas remontam uma tumba invencível. No
centro, entre a base e o teto apertado, o corpo preserva as marcas causadas
pela violência. Não há beleza, nem triunfo e as memórias do ressurreto
vitorioso perdem-se no esquelético e pálido corpo marcado por pregos, golpeado
lateralmente pela lança e na pele ressequida em seus ossos. Julia Kristeva, em
“Sol Negro”, enfrentando o tema da melancolia, descreve com exatidão os traços
e impressões do quadro: “O quadro de Holbein representa um cadáver estendido
num pedestal coberto com um lençol mal dobrado. De tamanho humano, este cadáver
pintado é representado de perfil, com a cabeça ligeiramente inclinada para o
espectador, os cabelos espalhados sobre o lençol. O braço direito, visível,
acompanha o corpo descarnado e torturado e a mão ultrapassa ligeiramente o
pedestal. O peito saltado esboça um triângulo no interior do retângulo muito
baixo e alongado do nicho que constitui o plano do quadro. Esse peito apresenta
o traço sangrento de uma lança, e na mão veem-se os estigmas da crucifixão que
endurecem o dedo médio esticado. Os traços dos pregos marcam os pés do Cristo.
O rosto do mártir traz a expressão de uma dor sem esperança, o olhar vazio, o
perfil aguçado, a tez verde-azulada são os de um homem realmente morto, do
Cristo abandonado pelo Pai (‘Pai, por que me abandonastes?’) e sem promessa de
Ressurreição”. Em “O Idiota”, o personagem Hippolit, assustado com a lúgubre e
terrível imagem do quadro, pergunta-se, beirando à profanação, “se o Mestre
tivesse podido ver a sua própria imagem, na véspera do suplício, teria Ele
próprio podido caminhar para a crucificação e para a morte, como Ele o fez?”.
“O Cristo morto” do pintor renascentista é
solitário, como explica Kristeva. Diferente de seu antecessor “Lamentação sobre
o Cristo Morto”, 1475-78, de Andrea Mantegna, cercado por três mulheres em
pranto diante do corpo erotizado e robusto do mestre sem vida, o de Holbein não
tem discípulos lamentando sua morte, nem anjos cantando o presságio da
ressurreição. Por isso, nesse trocamos o lugar de espectadores e nos tornamos
carpideiras! Eis ai a razão da reação desesperada de Dostoiévski. O autor de
“Irmãos Karamazov”, diante do quadro, experimentou a realidade gritante da
morte em sua radicalidade naquele que se revela como maior símbolo da vida. É a
sensação da irredutibilidade do fim, das margens, do precipício. Agonizante e
terrível, o corpo do Cristo morto é nosso. É o tempo quase interminável e
insuportável entre a cruz e ressurreição. Tempo do medo, agonia, incertezas,
descrença. “A representação sem disfarce da morte humana, o desnudamento quase
anatômico do cadáver, comunica aos espectadores uma angústia insuportável diante
da morte de Deus, aqui confundida com nossa própria morte, de tanto que está
ausente a menor sugestão de transcendência” (Julia Kristeva).
A revolta torna-se parte do quadro aos olhos do
observador: “como foram capazes”! Não há explicação para tamanha barbárie. A morte
parece vencer a vida; o mal/limite ao bem/eternidade. É o mesmo convite dos
goliardos na monumental “Carmina Burana” ao cantarem “Ó Fortuna”: “mecum omnes
plangite!” (“Chorai todos comigo!”). O grito de consternação é eco para
todos/as nós. E, como movimento natural, viramo-nos para o lado e lamentamos as
demais mortes. Pranteamos a morte nossa de cada dia, os corpos esqueléticos do
mundo, as violências cotidianas, a imagem e semelhança da humanidade frágil dos
muitos sem nome. Holbein nos coloca um espelho. Por isso, a insensibilidade
dilui-se e choramos o corpo e a vida. Revoltamo-nos. Quanto mais violenta e
injusta, mais nos consterna, porque vemos as mesmas marcas. A morte ganha maior
peso e sua imagem torna-se insuportavelmente inaceitável. Somente uma expressão
estética pode acalmar a alma diante do estrago desse quadro. A agonia do corpo
morto de Holbein eleva-nos à expectativa do seu contrário – sem isso, morremos
sem horizontes dentro daquele belo-horrível túmulo de Basileia. Na vivacidade
da morte, paradoxalmente, emana, como necessidade existencial, a ressurreição.
O “Cristo morto” de Holbein é o germe do
domingo da ressurreição! O domingo-esperança de todos/as nós.
*Texto de 2018 adaptado.
(imagem: Hans Holbein, o Jovem. "O corpo de Cristo morto no túmulo”, 1521/22)
sexta-feira, 19 de abril de 2019
SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO: CRUZ.
A compreensão da fé
cristã move-se, nas variações de suas ênfases, do triunfo à dor, glória à
discrição, sofrimento à prosperidade. Nem mesmo as narrativas da paixão foram
poupadas da fluidez hermenêutica. Na arte sacra, a cruz pendula entre o
Christus triumphans, Cristo triunfante, do séc. V, e o Christus patiens, Cristo
sofredor, posterior ao séc. XIV. Maria Isabel Roque explica as razões de tal
movimento estético e imagético à luz do sofrimento humano: “uma nova concepção
do tema surge no século XIV, marcado pelos horrores da Peste Negra e pelo
misticismo propagado por S. Francisco de Assis, também presente nos Exercícios
de Johannes Tauler, nas Meditações da vida de Cristo de Pseudo Boaventura
(atualmente, atribuídas a Frei João de Caulibus) ou nas Revelações de Santa
Brígida que, retomando as profecias de Isaías (Is. 53, 1 10), exaltavam o atroz
sofrimento da paixão de Cristo e, em particular, o lento martírio da sua
morte”. Aparentemente, o drama da fé e da vida, marcado pela morte, perseguição
e angustias, guia e modela as representações da crucificação.
O grande expoente
do expressionismo alemão, Matthias Grünewald (1470-1528), no magistral
“Retábulo de Isenheim” (1512-1516), do Musée d’Unterlinden, em Alsácia,
fronteira Alemanha-Suíça, revela-nos com cores fortes a ignomínia do Deus
crucificado. Na tábua central do retábulo, enquadrado pelos mantos vermelhados
de Tiago a sua direita e João à esquerda, está Jesus em silencioso grito de
morte. A cabeça caída no peito pendura-se fragilmente ao pescoço. Mãos e pés
perfurados são torcidos à força dos pregos e contraem as extremidades do corpo
esquelético do mestre. Grünewaldo reforça a injusta e lúgubre imagem com cores
pálidas. Na cabeça solta crava-se enorme e desproporcional coroa de espinhos
cujo tamanho quase esconde o rosto, lambe duramente a testa e toca os ombros.
Os farrapos enrolam a cintura e escondem suas vergonhas. A boca meio aberta
testemunha o último suspiro agonizante. Maria, com roupas puras, de pé
desespera-se discreta e inconsolável nos braços de Tiago. De joelhos, Maria
Madalena lamenta, com dedos entrelaçados, a perda. Do outro lado, como que
iluminado pelo motivo eterna do evento, João segura seu evangelho e aponta com
dedo grande o corpo esquálido do messias. Abaixo, o cordeiro derrama sangue no
cálice da nova aliança. Sob a égide da teologia do sacrifício ele avisa ao
mundo o absurdo e vitória da morte.
O realismo da obra
expõe a crueldade. A agonia do Cristo de Deus denuncia as relações perversas
entre religião e Império, sacerdotes e Roma. Injustiça, peste negra e dor
humana tornam-se lugar comum e lentes para a páscoa. A patiens de Cristo é
paixão de todos os alvos das forças da morte. Por isso, há solidariedade no
corpo-flagelo do Cristo pascoal crucificado. Na cruz, o cordeiro de Deus
denuncia a injustiça, desumanização, desfiguração da dignidade humana e a
barbárie. É catharsis e profecia, empatia e denúncia, identificação e
julgamento, partilha de lagrimas e resistência.
Para as comunidades do cordeiro-corpo-cruz, a única resposta possível é
a mesma paixão e solidariedade aos tantos outros corpos violentados cuja dor
por vezes é esquecida pelas esquinas e becos imperiais da insensibilidade.
quinta-feira, 18 de abril de 2019
A QUINTA-FEIRA SANTA: LAVA-PÉS
No Evangelho de João, durante a última ceia, o
salvador do mundo, o Verbo encarnado, sob olhares estupefatos e confusos, lavou
os pés de seus discípulos. Na obra “Washing Peter's Feet” (1851-1856), o pintor
inglês Ford Madox Brown (1821–1893) sensivelmente encarnou a cena em óleo sobre
tela. Na pintura, vemos Jesus de joelhos e ao lado, jogadas e esquecidas, as
sandálias parcas de Pedro. As cores são sóbrias. No centro, com vestes cinza, o
mestre enxuga o pé destro pedrino com a toalha
amarrada em sua cintura. Mesmo em destaque mais claro, o pano torna-se extensão
do corpo fazendo de Jesus parte do ato. É o mestre inteiro cobrindo dedos e
calcanhar de seu impetuoso discípulo. Todos estão em silêncio e desconsertados.
A fala precipitada do impulsivo Simão deu lugar ao compenetrado olhar absorto
em direção às mãos divinas molhadas com a água, as quais sustentam seus pés
envoltos em pano. Há contrição na cena. O pescoço do discípulo dobrado e rígido
aperta sua barba branca ao peito, enrugando-lhe a testa, com a mesma força que
suas mãos se entrelaçam. Pedro está totalmente rendido, não pode fazer
absolutamente nada. Resta-lhe somente ser consumido pela pedagógica humildade
do mestre. Ao fundo estão os outros personagens da narrativa evangélica.
Imóveis, todos olham as mãos de Jesus. Os restos da ceia ainda estão na mesa.
No canto, talvez com os pés já doutrinados, Judas amarra suas alparcas. Ao lado
do seu braço descansa o saquinho com as moedas do conluio, colocando lado a lado
amor e traição, desejo de poder e serviço, ganância e desprendimento, morte e
ressurreição.
Ao mesmo tempo
em que Pedro se encolhe, apequenando-se, seus companheiros de seguimento
parecem não acreditar no que veem. Entre eles, quase oculto, alguém segura a
cabeça como se estivesse contemplando algo assustador. Talvez, seja João ao
lembrar-se envergonhado do pedido agora claramente ridículo. Enquanto ele e seu
irmão desejam assentar-se à direita e esquerda da glória, Jesus bebe o cálice
intragável da encarnação, serviço e humildade. No mesmo plano, outros se
consolam do choque e escândalo. À direita, boquiaberto, um dos discípulos
parece ser absorvido por aquela visão. Estão todos acuados e não há como
escapar de Jesus: “assim façais vós também”. Com a áurea na cabeça do Senhor,
Madox Brown expõe o paradoxo do lava-pés: mestre serve, Deus esvazia-se, o maior
se dobra, eternidade encarna-se, a força se fragiliza. A reação dos personagens
da pintura de século XIX revela o espanto do novo caminho instaurado, do qual a
comunidade de Jesus não pode se furtar.
A partir
da memória do messias lava-pés, no enquadramento da semana santa, devemos
trocar todo projeto de poder, qualquer arrogância institucional, expressão de
superioridade, falsa piedade ou preconceito excluidor por bacia, água e pano.
(imagem: Ford Madox Brown, Jesus Washing Peter’s Feet,
séc. XIX)
sexta-feira, 12 de abril de 2019
80 tiros da nossa omissão!
Omitir
é deixar de agir ou se furtar da denúncia por conveniência ou insensibilidade.
É relativizar ou justificar com o silêncio quando urge a necessidade da
Palavra. É legitimar com a naturalização ou despreocupação relações e fenômenos
historicamente estabelecidos, como se não houvesse causas identificáveis e
passíveis de enfrentamento. A omissão é, então, o não profético, a
“acriticidade” cínica.
A
falta de empatia, o medo da exposição, a cegueira ideológica e tudo o que
contribui para a inércia em tempos quando se exige o movimento, são
instrumentos eficazes e perigosos na construção da cultura da omissão, cuja
maior e mais terrível consequência é nos tornar coparticipantes, direta ou
indiretamente, da barbárie. Por isso, também são nossos os oitenta tiros
disparados contra aquela família no RJ, traumatizando pelo resto da vida os
sobreviventes e matando o pai de família Evaldo Rosa. São tiros ensurdecedores
da silenciosa omissão.
Convenientemente,
permitimos a sacralização do símbolo da morte. Em uma nação onde só em 2017
mais de 59000 foram vítimas de assassinatos (uma a cada 9 minutos), a arma
deveria ser vista como sinal de necessária vergonha e não tornada projeção
eleitoral. Em vez de arrancar sorrisos jocosos, o instrumento da morte deveria
ser lembrado somente quando seu uso fosse a última possibilidade – não se
festeja a violência, não se ovaciona o mal. Contudo, mesmo quando crianças
posaram, sob a motivação de adultos-monstros, seus dedinhos com sinal de armas
nós rimos e nos omitimos. O Brasil achou graça, votou, elegeu e coroou o
discurso da violência com o faixa da presidência.
Não
me interprete incorretamente. Eu sei que a desgraça e morte não foram
inventadas com os “oitenta tiros”. Por outro lado, quando a realidade é de
guerra, devem-se promover narrativas de paz. Em espaços nos quais a linguagem é
belicosa, o dicionário da sensibilidade e empatia precisa ser usado. Em tempos
de desumanização e desrespeito com a vida, é necessário popularizar-se o
discurso da solidariedade e do cuidado. Em contextos nos quais a injustiça
materializa-se em mortes de inocentes, ao invés de legitimar a violência do
Estado em nome do combate aos seus causadores, faz-se urgente pensar
estratégias e ações cujo caminho não percorra a mesma lógica daquilo contra o
que aparentemente se combate. É simples: não se vence a violência com outro
tipo de violência, mas com gestão justa, inteligência, prevenção e políticas
públicas. A cultura da morte ficou nua aos nossos olhos e fomos embriagados
pela omissão.
Os
oitenta tiros cumpriram a vocação do racismo estruturante e estrutural. Mataram
sem perguntar, porque ser negro nesse país significa torna-se setenta vezes
mais matável. E mesmo assim, seguimos negando a existência dessa histórica
chaga. Obstinadamente, insistimos em fingir serem inexistentes as estatísticas
e experiências cotidianas e continuamos, em passos largos, corroborando com a
naturalização da injustiça racial. Temo, porque a proteção dos bens e dos
“cidadãos de bem”, guiada pela estratégia do “atirar para depois averiguar”,
fará dos “já matáveis” potenciais candidatos a defensores mortos de sua
inocência. Por isso, e tantas outras coisas, ao ouvirmos falar e acompanharmos
a defesa do “excludente de ilicitude” sem críticas ou posicionamentos colocamos
juntos nossos dedos no gatilho dos oitenta tiros. Em nossa nação, a cultura do
extermínio é legitimada pelo Estado, aplaudida pelo povo, santificada pela fé
na brutalidade, justificada pela apologia da família, tratada como inevitável
pelos discursos simplistas e alimentada pelo ódio. Tudo sob nossos narizes,
olhos e ouvidos omissos e pouco críticos.
Esses
são os oitenta tiros da nossa omissão. Nosso pão amargo de cada dia. Contra o
qual oramos: livra-nos do mal. Amém!
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