A compreensão da fé
cristã move-se, nas variações de suas ênfases, do triunfo à dor, glória à
discrição, sofrimento à prosperidade. Nem mesmo as narrativas da paixão foram
poupadas da fluidez hermenêutica. Na arte sacra, a cruz pendula entre o
Christus triumphans, Cristo triunfante, do séc. V, e o Christus patiens, Cristo
sofredor, posterior ao séc. XIV. Maria Isabel Roque explica as razões de tal
movimento estético e imagético à luz do sofrimento humano: “uma nova concepção
do tema surge no século XIV, marcado pelos horrores da Peste Negra e pelo
misticismo propagado por S. Francisco de Assis, também presente nos Exercícios
de Johannes Tauler, nas Meditações da vida de Cristo de Pseudo Boaventura
(atualmente, atribuídas a Frei João de Caulibus) ou nas Revelações de Santa
Brígida que, retomando as profecias de Isaías (Is. 53, 1 10), exaltavam o atroz
sofrimento da paixão de Cristo e, em particular, o lento martírio da sua
morte”. Aparentemente, o drama da fé e da vida, marcado pela morte, perseguição
e angustias, guia e modela as representações da crucificação.
O grande expoente
do expressionismo alemão, Matthias Grünewald (1470-1528), no magistral
“Retábulo de Isenheim” (1512-1516), do Musée d’Unterlinden, em Alsácia,
fronteira Alemanha-Suíça, revela-nos com cores fortes a ignomínia do Deus
crucificado. Na tábua central do retábulo, enquadrado pelos mantos vermelhados
de Tiago a sua direita e João à esquerda, está Jesus em silencioso grito de
morte. A cabeça caída no peito pendura-se fragilmente ao pescoço. Mãos e pés
perfurados são torcidos à força dos pregos e contraem as extremidades do corpo
esquelético do mestre. Grünewaldo reforça a injusta e lúgubre imagem com cores
pálidas. Na cabeça solta crava-se enorme e desproporcional coroa de espinhos
cujo tamanho quase esconde o rosto, lambe duramente a testa e toca os ombros.
Os farrapos enrolam a cintura e escondem suas vergonhas. A boca meio aberta
testemunha o último suspiro agonizante. Maria, com roupas puras, de pé
desespera-se discreta e inconsolável nos braços de Tiago. De joelhos, Maria
Madalena lamenta, com dedos entrelaçados, a perda. Do outro lado, como que
iluminado pelo motivo eterna do evento, João segura seu evangelho e aponta com
dedo grande o corpo esquálido do messias. Abaixo, o cordeiro derrama sangue no
cálice da nova aliança. Sob a égide da teologia do sacrifício ele avisa ao
mundo o absurdo e vitória da morte.
O realismo da obra
expõe a crueldade. A agonia do Cristo de Deus denuncia as relações perversas
entre religião e Império, sacerdotes e Roma. Injustiça, peste negra e dor
humana tornam-se lugar comum e lentes para a páscoa. A patiens de Cristo é
paixão de todos os alvos das forças da morte. Por isso, há solidariedade no
corpo-flagelo do Cristo pascoal crucificado. Na cruz, o cordeiro de Deus
denuncia a injustiça, desumanização, desfiguração da dignidade humana e a
barbárie. É catharsis e profecia, empatia e denúncia, identificação e
julgamento, partilha de lagrimas e resistência.
Para as comunidades do cordeiro-corpo-cruz, a única resposta possível é
a mesma paixão e solidariedade aos tantos outros corpos violentados cuja dor
por vezes é esquecida pelas esquinas e becos imperiais da insensibilidade.
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