Nada é mais belo no
Cristianismo do que a memória da ressurreição. Se Cristo não ressuscitou, disse
Paulo temendo pelos coríntios, não haveria substância em seu ato proclamatório
e nem poesia na nossa fé. O mestre no madeiro mostra a morte em sua crueldade,
a esperteza má da injustiça, a irracionalidade da violência. Na sexta-feira há
agonia, lamúria é caos. Na cruz desnuda-se a irracionalidade do mundo e sua
eloquência para derramar sangue e perfurar corpos. Se nos houvesse somente o
Cristo morto, seríamos os piores desalentados cuja viuvez tornar-se-ia
irremediável, trevas e águas amorfas sem solução, engolidos garganta adentro da
desesperança. Por isso, somos convidados, como as mulheres do sepulcro violado,
a sairmos da perplexidade da ausência do corpo morto em direção à segurança da
exortação angelical: “Por que vocês estão procurando entre os mortos aquele que
vive? Ele não está aqui! Ressuscitou!” (Lc 24,5-6). Assim, a eternidade
constrói uma ponte entre lágrimas e júbilo, lamento e celebração. É o “haja
luz” ordenador que diz: “mar: cala-te, acalma-te!”. O corpo ressurreto e
cósmico ressignifica o sentido da Vida. A ressurreição anuncia a novidade da
vitória, abre um sorriso no pranto e possibilidades entre os destroços. Na
paixão Cristo partilha o caos em seu próprio corpo; na ressurreição aponta para
a criação e ordenação.
Se na obra “O corpo de Cristo morto no túmulo”, 1521/22, de Hans Holbein, o mestre está esquálido, em “A Ressurreição” (1460), do renascentista italiano Piero della Francesca, a luz do Cristo vivo suplanta a silenciosa dor. Preservada no Museu Cívico de Sansepolcro, em Toscana, “A Ressurreição” está na lista das grandes obras de arte da humanidade. Com justiça, Aldous Huxley a descreveu como “a maior pintura do mundo” e por conta de sua grandeza, durante a Segunda Guerra, o capitão britânico Anthony Clarke ordenou parar o bombardeio a Sansepolcro poupando a cidade e essa importante obra.
Com intuição estética e
intensidade, Piero della Francesca mostra Jesus saindo do sepulcro. Abaixo, em
seus pés, estão os guardas dormindo e estáticos sem qualquer possibilidade de
reação, como se a pintura dissesse: o Império Romano e seus instrumentos não
foram capazes de enclausurar o Senhor da vida. No fundo, enquadrando a cena,
vemos uma vegetação sóbria e em contraste: à esquerda, um tronco seco logo
atrás de Jesus; à direita, vemos árvores com folhas em destaque. Com isso, o
pintor italiano reforça a diferença entre morte e vida. No centro, Cristo surge
em plena ressurreição. Ele carrega a bandeira em símbolo de vitória. Em
perspectiva frontal, o mestre olha diretamente para os espectadores
convidando-os a partilharem do seu triunfo. Por sua vez, as marcas da lança e
pregos valorizam ainda mais a destruição dos grilhões.
A obra exposta em Toscana lembra-nos o “não” profético de Deus. Toda a força da morte é
enfrentada, seus agentes desarmados e desmascaradas suas perversas estratégias.
No Domingo da ressurreição somos convidados, então, ao anúncio subversivo da
teimosa esperança, cuja força instaura o horizonte do novo mundo possível e
chama aqueles/as que cantam o cordeiro que venceu a serem seus semeadores,
porque onde houver ódio a ressurreição levará amor, onde houver ofensa levará perdão,
onde houver discórdia levará união, fé, verdade, paz e alegria.
(imagem: Piero della Francesca, "A Ressurreição", 1460)
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