sábado, 20 de abril de 2019

SÁBADO DE ALELUIA: SILÊNCIO









Quando Dostoiévski, em 1867, viu pela primeira vez o quadro “O corpo de Cristo morto no túmulo”, 1521/22, de Hans Holbein, o Jovem, ficou estático por quinze ou vinte minutos ininterruptos. Em seu livro “Meu marido Dostoiévski”, sua esposa Ana Grigorievna testemunha que o encontrou impressionado e estupefato diante da obra exposta na cidade de Basiléia, a ponto de dar reações tais quais os sintomas iniciais de uma epilepsia. O realismo cadavérico da obra do pintor amigo de humanistas como Erasmo de Roterdã, tocou profundamente as intuições estéticas de Dostoiévski influenciando a produção de seu (livro) “O Idiota”, cujo personagem principal, Príncipe Liev Míchkin, ao contemplar sua cópia e em diálogo com Rogójin exclama preocupado: “Ora, por causa desse quadro outra pessoa ainda pode perder a fé!”.

O impacto diante do “Cristo morto” de Holbein é inevitável. A expressão crua e dura da realidade humana perpassa todo seu corpo horizontal. Suas medidas e formas remontam uma tumba invencível. No centro, entre a base e o teto apertado, o corpo preserva as marcas causadas pela violência. Não há beleza, nem triunfo e as memórias do ressurreto vitorioso perdem-se no esquelético e pálido corpo marcado por pregos, golpeado lateralmente pela lança e na pele ressequida em seus ossos. Julia Kristeva, em “Sol Negro”, enfrentando o tema da melancolia, descreve com exatidão os traços e impressões do quadro: “O quadro de Holbein representa um cadáver estendido num pedestal coberto com um lençol mal dobrado. De tamanho humano, este cadáver pintado é representado de perfil, com a cabeça ligeiramente inclinada para o espectador, os cabelos espalhados sobre o lençol. O braço direito, visível, acompanha o corpo descarnado e torturado e a mão ultrapassa ligeiramente o pedestal. O peito saltado esboça um triângulo no interior do retângulo muito baixo e alongado do nicho que constitui o plano do quadro. Esse peito apresenta o traço sangrento de uma lança, e na mão veem-se os estigmas da crucifixão que endurecem o dedo médio esticado. Os traços dos pregos marcam os pés do Cristo. O rosto do mártir traz a expressão de uma dor sem esperança, o olhar vazio, o perfil aguçado, a tez verde-azulada são os de um homem realmente morto, do Cristo abandonado pelo Pai (‘Pai, por que me abandonastes?’) e sem promessa de Ressurreição”. Em “O Idiota”, o personagem Hippolit, assustado com a lúgubre e terrível imagem do quadro, pergunta-se, beirando à profanação, “se o Mestre tivesse podido ver a sua própria imagem, na véspera do suplício, teria Ele próprio podido caminhar para a crucificação e para a morte, como Ele o fez?”.

“O Cristo morto” do pintor renascentista é solitário, como explica Kristeva. Diferente de seu antecessor “Lamentação sobre o Cristo Morto”, 1475-78, de Andrea Mantegna, cercado por três mulheres em pranto diante do corpo erotizado e robusto do mestre sem vida, o de Holbein não tem discípulos lamentando sua morte, nem anjos cantando o presságio da ressurreição. Por isso, nesse trocamos o lugar de espectadores e nos tornamos carpideiras! Eis ai a razão da reação desesperada de Dostoiévski. O autor de “Irmãos Karamazov”, diante do quadro, experimentou a realidade gritante da morte em sua radicalidade naquele que se revela como maior símbolo da vida. É a sensação da irredutibilidade do fim, das margens, do precipício. Agonizante e terrível, o corpo do Cristo morto é nosso. É o tempo quase interminável e insuportável entre a cruz e ressurreição. Tempo do medo, agonia, incertezas, descrença. “A representação sem disfarce da morte humana, o desnudamento quase anatômico do cadáver, comunica aos espectadores uma angústia insuportável diante da morte de Deus, aqui confundida com nossa própria morte, de tanto que está ausente a menor sugestão de transcendência” (Julia Kristeva).

A revolta torna-se parte do quadro aos olhos do observador: “como foram capazes”! Não há explicação para tamanha barbárie. A morte parece vencer a vida; o mal/limite ao bem/eternidade. É o mesmo convite dos goliardos na monumental “Carmina Burana” ao cantarem “Ó Fortuna”: “mecum omnes plangite!” (“Chorai todos comigo!”). O grito de consternação é eco para todos/as nós. E, como movimento natural, viramo-nos para o lado e lamentamos as demais mortes. Pranteamos a morte nossa de cada dia, os corpos esqueléticos do mundo, as violências cotidianas, a imagem e semelhança da humanidade frágil dos muitos sem nome. Holbein nos coloca um espelho. Por isso, a insensibilidade dilui-se e choramos o corpo e a vida. Revoltamo-nos. Quanto mais violenta e injusta, mais nos consterna, porque vemos as mesmas marcas. A morte ganha maior peso e sua imagem torna-se insuportavelmente inaceitável. Somente uma expressão estética pode acalmar a alma diante do estrago desse quadro. A agonia do corpo morto de Holbein eleva-nos à expectativa do seu contrário – sem isso, morremos sem horizontes dentro daquele belo-horrível túmulo de Basileia. Na vivacidade da morte, paradoxalmente, emana, como necessidade existencial, a ressurreição.

O “Cristo morto” de Holbein é o germe do domingo da ressurreição! O domingo-esperança de todos/as nós.


*Texto de 2018 adaptado.
(imagem: Hans Holbein, o Jovem. "O corpo de Cristo morto no túmulo”, 1521/22)

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