sexta-feira, 23 de abril de 2010

Satã no Antigo Testamento... Entre Deus e o Diabo!


O demoníaco na Bíblia sempre foi motivo de muitas discussões. Na academia, nos últimos trabalhos sobre esse assunto, é quase consenso entre os exegetas de que não há no Antigo Testamento uma demonologia propriamente dita, como ocorre no mundo do Oriente Próximo[1], enquanto que na literatura apocalíptica do judaísmo tardio, e nos Cristianismos das origens, ocorre uma proliferação de demônios e o mundo é visto como cheio de seres malignos, em uma estrutura bem esquematizada e organizada. Então, perguntar-se somente pelo pano de fundo veterotestamentário para essa visão de mundo não é suficiente, pois teremos poucas respostas.

Não temos na Bíblia hebraica a presença de uma personificação do mal ou um termo para designar um demônio com autonomia, ou um líder de hostes malignas, ou muito menos uma visão dualista, onde esses seres são inimigos de Deus, ou desejam impedir seus planos e projetos. Concordo com Schiavo que “a figura independente do mal, é difícil de identificar no Antigo Testamento por ser fruto de uma grande mistura cultural, com influências da magia, da religiosidade popular, do ritualismo apotropáico oficial, do simbolismo poético”[2].

Em alguns textos da Bíblia hebraica, o bem e o mal estão ligados a Javé (Is 45,6-7; Jó 2,10; Am 3,6). Na teologia exclusivista do javismo, as ações de características demoníacas foram, com o tempo, atribuídas a Deus, ocorrendo em alguns textos o que podemos chamar de “assimilação mítica”, onde “ao adotar antigas tradições, geralmente pré-israelitas, a teologia oficial suprime os demônios das mesmas, transferindo os traços demoníacos a Javé”[3].

Depois do contato cultural exílico e pós-exílico, ocorre um desenvolvimento da teologia israelita em relação ao mal, pois aparecem outras figuras geradoras de males, mas mesmo elas estão debaixo das ordens de Javé. Vemos esse desenvolvimento, por exemplo, em 2 Sm 24, 1 e 1 Cro 21,1, onde Davi, no primeiro, é pelo Senhor incitado a recensear o povo (ação que seria posteriormente desaprovada), enquanto no segundo Satã é acusado de tal tentação. Ao recontar a história, o cronista, para poupar Deus da culpa direta, pois neste momento o problema da teodicéia pós-exílica é resolvido com seres celestiais responsáveis pelas desgraças, sugere a invasão de um membro da corte divina na casa real para motivar Davi a pecar[4].

Satã, originalmente é uma atribuição dada a algum ser humano, no sentido de inimigo ou adversária. Em I Sm 29,4 Davi é considerado Stn (Satan); o inimigo de Salomão também é um Satan (I Rs 11,23); em Nm 22,22.32 o anjo do Senhor que se opôs a Balaão se porta como um Satã – neste caso, no sentido de opositor, o anjo age naquele momento como um obstáculo, ou seja, a expressão, também aqui, não diz que o anjo é um ser denominado “Satã”[5] . Com o tempo, esse mesmo Satã se torna uma figura não terrena que está na corte celestial (Zc 3,1s; Jó 1,6s; 2.1) debaixo das ordens de Deus, como um promotor de acusação dentro da imagem das cortes do Antigo Oriente. Em Jó e Zc isso é bem claro. Como se percebe Satã não é na Bíblia hebraica um líder de demônios e muito menos um adversário de Deus. O diabo, na Bíblia Hebraica, é diabo de Deus.

O espírito que leva os profetas a mentirem a Acab, em um quadro evidente de corte celeste de Javé[6], é enviados por Deus (I Rs 22, 19-23) e o espírito que atormenta a Saul, não tem autonomia: vem de Javé ( I Sm 16,23).

Um episódio único na Bíblia hebraica está em 1 Sm 28. Saul participa de um ritual de necromancia, em En-Dor – uma prática distintivamente cananita[7]. No verso 13 aparece a expressão elohim que sobem da terra[8]. Brian B. Schmidt, lendo esse episódio à luz da necromância mesopotâmica, onde se tinha a idéia da participação dos deuses que também subiam do abismo[9], chega à conclusão que o termo elohim designa os “deuses conhecidos por serem convocados para auxiliar a necromancia na recuperação de um espírito”[10]. Essa narrativa a respeito de Saul foi preservada pelos interesses deuteronomistas de mostrar que a terra e as suas bênçãos dependiam da completa separação das práticas religiosas dos outros povos[11].

Até Belial (bly‘l), como acredita C. Martone, na Bíblia Hebraica é um conceito e não personificação do mal. Na LXX nunca é traduzido como um substantivo próprio, mas sempre por meio de termos tais como ándres paránomoi (homem sem lei, contra lei, Dt 13,14), também como huioí loimoi (filhos da pestilência, I Sm 2,12), ou anēr áphōn (homem insensato, imprudente, Pv 16,27), até mesmo no chamado Targum Onkelos (III d.C) as passagens de Dt 13,14 e 15,9 não se refere a um nome próprio[12]. Isso muda na literatura apócrifa e pseudepígrafa, em Qumran e na literatura cristã.

Na literatura judaica não-canônica, pode-se ver a personificação de Belial, especialmente no Testamento dos Doze Patriarcas . Aqui bly‘l ou Beliar é o nome dado ao Príncipe do Mal, Espírito das Trevas (Test. Levi 19,1): 1) Os homens maus são dominados por seus espíritos (Test. de Ash 1,8; Test. de Levi 3,3, Test. de José 7,4); 2) ele é oposição a Deus (Test. Dan 1,7; Test. De Naf. 3,1)[13]; 3) também aparece Belial como aquele que fornece aos seus seguidores uma espada causadora de muitos males (Test. de Ben. 7,1-2. 3); 3) esse Belial será vencido nos últimos dias pelo messias ( Test. de Judá 25,3; Dn 5,10; Test. Ben. 3,8).

No livro de Jubileus ele é um príncipe do mal, e inimigo da humanidade (Jub. 1,20-21). Em Qumran Belial pode indicar algo abstrato, como no uso bíblico, ou um anjo do mal, como na literatura apocalíptica. Qumran é o elo, que traz a idéia abstrata bíblica, genericamente negativa, e a personificação da literatura apocalíptica e do Novo Testamento, assim como da literatura patrística [14].

Ocorrem na Bíblia Hebraica expressões de seres animalescos e aterrorizantes, termos invocadores de imagens míticas de monstros marinhos, dragões, seres desérticos e divindades estrangeiras. Estes termos e imagens não são organizados como uma demonologia veterotestamentária, num escopo dualista, mas aparecem como seres do imaginário israelita em diálogo com as religiões circunvizinhas.[15]

A imagem dualista da existência e a possibilidade do surgimento de uma demonologia mais prolífera, menos tímida (como aparece no Antigo Testamento), estão ligadas às interações culturais exílica e pós-exílica, na qual a religião de Israel moldou uma demonologia mais definida e rica. É digno de nota também a influência da tradução da Septuaginta (LXX), que traduziu como diabolos, carregado do conteúdo grego, expressões como Satan, mudando o teor demonológico da Bíblia hebraica[16].

[1] Ver: SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios em Decápole. Exegese, história, conflito e interpretação de Mc 5,1-20. Dissertação (mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de São Paulo, 1999. SCHIAVO, Luigi. O mau e suas representações simbólicas. O universo mítico e social das figuras de Satanás na Bíblia. In: Estudos da Religião 19 (2000): 65-83; SCHIAVO, Luigi. O Simbólico e o diabólico: a vida ameaçada. In: Phoînix 8 (2002): 230-243; RABUSKE, Irineu J. Jesus Exorcista. Um estudo exegético e hermenêutico de Mc 3,20-30. São Paulo, Paulinas, 2001; KILPP, Nelson. Os Poderes demoníacos no Antigo Testamento. In: Estudos Bíblicos 74 (2002): 23-36; PAGELS, Elaine. The Social History of Satan, Part II: Satan in the New Testament Gospels. In: Journal of the American Academy of Religions. 52\ 1 (1994): 221- 241. PAGELS, Elaine. The Social History of Satan, the ‘Intimate Enemy’: A Preliminary Sketch. In: Harvard Theological Review. 84/2 (1991): 105-128. PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás: um estudo sobre o poder que as forças irracionais exercem na sociedade moderna. Rio de Janeiro, Ediouro, 1996; HAMILTON, Victor. Satan. In: Freedman, D. N. (ed.). The Anchor Bible Dictionary. New York, Doubleday, 1992; FORSYTH, Neil. The Old Enemy: Satan and the Combat Myth. Princeton, Princeton University, 1987.
[2] SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios em Decápole... p. 133.
[3] KILPP, Nelson. Os poderes demoníacos no Antigo Testamento... p. 25. Kilpp mostra como exemplo Gn 32,23-33, onde a crença popular de demônios no rio Jaboc, que atacavam a noite e perdiam as forças pela manhã, foi assimilada e integrada a figura de Javé: quem lutou com Jacó, na nova apropriação israelita, era ninguém menos que Javé. Há a mesma assimilação em Ex 4, 24-26, onde a crença antiga de um demônio do deserto que atacava quem pousasse em seu território, e o sangue poderia afastá-lo; no texto o sangue afasta a Javé.
[4] PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás... p. 70.
[5] RUSSEL, Jeffrey Burton. O Diabo: as percepções do mal da antiguidade ao cristianismo primitivo. São Paulo, Paulus, 1997.
[6] WOLFF, Hans Walter. Bíblia: Antigo Testamento. Introdução aos escritos e aos métodos de estudo. São Paulo, Paulinas, 1978. p. 16.
[7] SCHMIDT, Brian B. The “Witch” of En-Dor, 1 Samuel 28 and Ancient Eastern Necromancy. In: MEYER, Marvin; MERECKI, Paul (ed.). Ancient Magic and Ritual Power. LEIDEN/NEW YORK/ KÖLN, Bril, 1995. p. 111
[8] A LXX traduz ~yhiîl{a/ como Qeou.j
[9] SCHMIDT, Brian B. The “Witch” of En-Dor... p. 125.
[10] SCHMIDT, Brian B. The “Witch” of En-Dor... p. 126.
[11] SCHMIDT, Brian B. The “Witch” of En-Dor... p. 128
[12] MARTONE, C. Evil or Devil? Belial from the Bible to Qumran. Henoch 36 (2004):115-127. p. 117.
[13] Martone explica que o texto grego do Testamento dos XII patriarcas é fundado em duas formas ou recessões (a e b). Por exemplo, no texto da recessão b onde fala da “vontade do diabo” lê-se “vontade de Belial”. Neste caso vemos uma clara identificação filológica de Belial com o mal: uma posterior evidencia que a história do texto é a história da cultura envolvendo o texto original. MARTONE, C. Evil or Devil?... p. 118.
[14]1QS I,16-18; 22-24 vemos a dominação de Belial (mmšlt bly‘l), como lote de Belial (I QS II,4-5). A dominação de Belial (mmšlt bly‘l) é o mundo fora da seita, e o lote de Belial são os que vivem naquele mundo, mudar para salvação seria se associar a seita. Os filhos das trevas (bny hwšk) estão debaixo da dominação dos anjos das trevas (ml‘k hwšk) descritos na instrução dos dois espíritos (1QS III, 13 – IV,26). Para Martone ml‘k hwšk é bly‘l. O autor acredita que os últimos redatores do Rolo da Comunidade entendiam o termo bly‘l como o anjo do mal. Contudo nos Hodayot (1QHa XI 27-30,32; 1QHa XII 9-14; 1QH 26-27;39) podem ter as duas idéias (um substantivo próprio ou a idéia de “worthlessness”). Diferentemente dos Hodayotes, outros textos como Rolo da Guerra personifica Belial, onde este com seu lote estarão numa guerra final contra Deus e seu lote (1QM 1,5; 15,3;18.1-3). De acordo com os textos de 1QM, pode-se perceber que em Qumran acreditava-se que o mal era parte dos planos divinos, como também sua final destruição. Aqui está a idéia dos “dois espíritos”, onde ele tem a ação das duas forças que o próprio Deus criou. Mas, com a ajuda de Deus pode-se livrar dos planos de Belial (4QMidrEscat XXII, 12 // 1QS III,24 – sobre os dois espíritos). A figura demoníaca na instrução dos “dois espíritos” é o ml‘k hwšk e não menciona bly‘l, enquanto em 4QMidrEscat podemos ler uma similar passagem com a menção de Belial. Isso pode sustentar que em certo estágio do desenvolvimento da teologia da Qumran, Belial e o Anjo das Trevas eram entendidos como alguma entidade, a saber, uma personificação da má dominação do mundo fora da seita. MARTONE, C. Evil or Devil?... p. 121-123.
[15] Tsiyyim (Is 13,21; 34,14; Jr 50,30; Sl 72,9); se‘irîm (Lv 17,7; 2 Rs 23,8; Is 13,21; 34,14; 2 Cr 11,15); shedim ( Dt 32,17; Sl 106, 37); Reshef/ qeteb/deber ( Dt 32,24; Hab 3,5; Sl 78,48; Jó 5,7e Ct 8,6); Azazel (Lv 16,18; 10,26); Lilith (Is 34,14; sijjîm e ‘ ijjîm (Is 13,2s; 34, 14; Jr 50,39; Sl 72,9); Elilîm (Is 19,3); Leviatã (Is 27,1; Sl 74, 14; 104, 26); Raab (Sl 89,11; Jó 9,13; Is 51,9); Tannin (Is 27,1; 51,9: o dragão).
[16] Cf. LUTHER, Link. O Diabo: a máscara sem rosto. São Paulo, Companhia das Letras, 1988. Para discussão da figura do diabo e o desenvolvimento de sua imagem, ver também: DATLLER, Frederico. O mistério de satanás: Diabo e Inferno na Bíblia e na Literatura Universal. São Paulo, Paulinas, 1997; STANFORD, Peter. O Diabo: Uma Biografia. Rio de Janeiro, Gryphus, 2003; NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O diabo no imaginário Cristão. Bauru, EDUSC, 2000.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

O Rio de Janeiro continua lindo... E alagado. Não precisamos de teodiceias e sim de ações.

Estive no Rio de Janeiro no penúltimo fim de semana. Depois de cumprir alguns compromissos e rever amigos queridos, fui à Rodoviária Novo Rio para retornar à minha cidade, no Espírito Santo. No caminho chovia forte, até então nada fora do normal. Algumas ruas estavam um pouco alagadas, mas não nos impedia de rasgar as águas juntamente com os outros carros que ladeávamos. Quando cheguei, encontrei a rodoviária um pouco mais lotada do que o comum. Alguns ônibus atrasaram, inclusive o meu. Como tinha tomado meu companheiro de viagem (dramin) e o sono estava me incomodando, fui até um funcionário da Águia Branca e ele me informou a respeito de alguns contratempos causados pela chuva. No entanto, estava tudo sobre controle e, repetindo sua frase, “sairíamos sem dúvida ainda naquela noite”. Como prometido, depois de algumas horas de leitura no banco vermelho e duro, o ônibus chegou. Entrei. Sentei. Comecei novamente a leitura e de repente dormi. Acordei somente em Aracruz, algumas horas depois. Parecia que tudo estava de acordo como nas outras viagens. Mas quando liguei a televisão não acreditei nas notícias dos telejornais. Enquanto me retirava daquela cidade a chuva instaurava o caos.

“O Rio entrou em colapso ao sofrer o seu maior temporal em 44 anos”. Assim estampou o Jornal “A Gazeta” do dia 7 de março. Chove tanto que o volume de água é maior do que no trágico ano de 1966. Com os deslizamentos casas foram destruídas. As chuvas encheram as ruas deixando-as completamente alagadas e moradores desesperados andam entre os dejetos e restos de móveis. Com a falta de energia elétrica em muitos bairros, o terror se intensificou. Já se somam mais de mil desalojados e centenas de vítimas fatais. E como sempre os atingidos, em grande parte, são exatamente os menos providos e alijados sociais, como os moradores do Morro dos Prazeres, onde os deslizamentos mataram 14 pessoas até quarta-feira e do Morro do Bumba, em Niterói.

Diante de tantas desgraças, muitos são compungidos a perguntar sobre as razões de tudo isso. No processo das formulações os questionamentos acabam desembocando em Deus. Como escreveu o sociólogo protestante Peter Berger, “os fenômenos anômicos devem não só ser superados, mas também explicados – a saber, explicados em termos de nomos estabelecido na sociedade em questão. Uma explicação desses fenômenos em termos de legitimações religiosas, de qualquer grau de sofisticação teológica que seja, pode chamar-se uma teodicéia [sic]”. Diante do mal, das desgraças da vida e das catástrofes, parece ser quase natural o surgimento de explicações. Quando essas alcançam o âmbito da realidade, participação ou relação com ou de Deus, entremos no âmbito das “teodiceias”, onde se justifica a Deus diante do mal à luz de afirmações teológicas.

Por exemplo, quando o Pastor norte-americano Roberson afirmou que a catástrofe no Haiti foi resultado de alianças históricas daquele país com o Vudu, mesmo simplista, ele está fazendo uma teodiceia. Na história, ocorreram várias tentativas para tratar a desconfortante relação da realidade dos males metafísico, moral e físico com Deus. Leibniz tentou resolver esse impasse afirmando ser esse o melhor mundo possível, ou seja, depois de uma pesquisa cósmica Deus chegou ao melhor que poderia ser feito, e por isso todas essas mazelas que vivemos é o mínimo possível. Agostinho, por outro lado, para minimizar o sofrimento concreto, relativizou sua existência e o tratou como uma simples “privação do bem”. Essas são algumas das muitas tentativas de justificar Deus diante das desordens no mundo. Contudo, depois de perscrutar suas proposições e elucubrações, parece-me que suas afirmações não aplacam os incômodos gerados no levantamento das questões.

Acho ser mais coerente darmos um passo à frente nessas discussões para tomarmos duas atitudes. A primeira, migrar da teodiceia para antropodiceia. Com essa transmutação de perspectiva, não mais perderemos tempo defendendo ou explicando, à luz de afirmações ontológicas, a questão do mal, como se pudéssemos justificar a Deus, mas perguntaremos ao próprio homem. As questões metafísicas ficam de lado, para gastarmos tempo com a moral e a política. Não perguntaremos “Como Deus fez ou deixou isso ser feito?”, para indagarmos “como o homem (nós) teve coragem de fazer isso ou como contribui para aquilo ser feito?”. Essa postura é a mais humilde, pois coloca o homem em seu lugar e invalida a necessidade de falar em nome Daquele que não precisa ser defendido e muito menos justificado; cremos num evangelho no qual o homem é justificado por Deus, e não o inverso. Por isso, é mais sensato pouparmos Deus de nossas afirmações desatinadas, para perguntarmos por nossa culpa, “nossa tão grande culpa”.

A partir daí, devemos tomar a segunda atitude: “passamos da especulação sobre o mal à luta contra ele, na esteira da doutrina kantiana” (ESTRADA, Juan Antonio. A impossível teodicéia. A crise da fé em Deus e o problema do mal. São Paulo: Paulus, 2004). Nesse âmbito, deixamos de lado as teodiceias, com todas suas especulações e problemas, para tratarmos das consequências dos desastres. Antes de perguntarmos o porquê, nos preocuparemos com as vítimas e a desordem, para orquestrarmos ações pró-ordenação. Jesus em seu ministério não se preocupou com estéreis discussões sobre as razões metafísicas ou cósmicas da lepra, mas simplesmente curou os atingidos com essa doença cutânea. Ele não se perdeu em explicações teológicas do porquê da morte, mas chorou diante dela e ressuscitou o filho da viúva de Naim e a Lázaro. Quando questionado sobre a culpa da cegueira de nascença de um rapaz, ele valorizou a instrumentalidade daquele mal para a glória de Deus (Jo 9. 1-2). Jesus sempre canalizou seus interesses nos resultados do mal e não nas suas razões.


Assim, diante das calamidades vividas em algumas cidades do Rio de Janeiro, nosso papel não é fazer teodiceias, mas consolar os enlutados, ajudar os desabrigados, fortalecer os desanimados e desesperançados e curar os feridos. O caos não acabou e ainda não podemos contar, entristecidos e estarrecidos, os resultados calamitosos do desastre. Mas quando esse pesadelo terminar e as águas secarem, o povo do Reino deve cobrar do Estado ações preventivas, desde a conscientização até reformas estruturais de infra-estrutura e logística de urbanização.


Os desabrigados e enlutados não precisam de teodiceias vazias, e sim empatia e ações para ajudá-los a superar esse momento caótico.

sábado, 3 de abril de 2010

Entre o circo e os púlpitos: onde é mais engraçado?


Acabei de “sapear” alguns vídeos no youtube onde encontrei variados e conhecidos pregadores da Assembleia de Deus. Sinceramente, fiquei estupefato. Parece-me que se convencionou a aberração, o esdrúxulo, a bestialidade, a loucura, o insensato, o deprimente. A imagem que captei foi a de um bando de ouvintes com as funções mentais completamente anestesiadas. Dos vídeos que suportei ver e ouvir – pois no começo é até engraçado, mas depois começa a irritar – encontrei muitos discursos sem sentido, fruto de interpretações ridículas, próximas do absurdo, tiradas dos textos bíblicos.
Em um dos vídeos, o pastor (se assim posso chamá-lo) montou um mirabolante sermão escatológico. Apocalipticamente ele fez uma leitura da história e dos acontecimentos hodiernos à luz de costuras bíblicas, com textos fora de seus contextos, chegando a conclusões apoteóticas. O pior não é isso. As mensagens deixadas por aqueles e aquelas nos recados abaixo do vídeo, mostravam um grande interesse pelo assunto exposto e recomendavam outros “escatólogos” supostamente mais profundos. Senti vontade de rir concomitante a de chorar ao ver os pastores em sua retaguarda, em êxtase, levantarem suas mãos confirmando toda aquela verborragia dispensacionalista. O público, alvo de minhas maiores preocupações, estava boquiaberto e feliz por ouvir tantas informações “instigantes”. A multidão era manipulada pelo orador com tanta facilidade, que em determinado momento da mensagem ele conseguiu fazer todos apontarem o dedo uns para os outros e repetirem frases prontas, como se estivessem se ofendendo mutuamente – pura loucura! Imagina tu: um grupo de 200 mil homo sapiens gritando reciprocamente, frente a frente, frases triunfalistas e sem sentido; é ou não é maluquice coletivizada? E mais, acima deles estava o “grande” pastor, “pregador”, “conferencista internacional”, “profeta” e “homem de Deus” satisfeito com a tarefa cumprida.
Sei que personagens como Nietzsche, Marx e Freud são temidos e exorcizados entre nós. O pavor é tanto a ponto de os demônios, hoje em dia, ao serem interrogados em algumas sessões, identificarem-se, na boca dos possessos, com os nomes desses pensadores modernos! Deixemos de lado a brincadeira para tentarmos expor a razão de tanta fobia.
A ojeriza por esses filósofos, pelo menos entre os crentes, foi causada por algumas de suas reflexões a respeito do fenômeno religioso. Talvez, encontremos entre elas ideias ultrapassadas ou, até mesmo, injuriosas. Contudo, como não concordar com o autor de Assim Falou Zaratustra no seu anúncio da morte e sepultamento de Deus? Claro que Nietzsche afirma isso em um contexto e tempo diferentes, quando as ciências modernas e o racionalismo, com empáfia, diziam esvaziar a necessidade do conceito “Deus”. E mais, nessa perspectiva quem morre não é o Deus em si, mas a ideia medieval e obscurantista. Em relação à afirmação nietzschiana, penso na sua aplicabilidade e renovação quando ouço esses tipos de pregadores, pois o Deus de Jesus, aquele anunciado pelos evangelistas neotestamentários, perde-se e, na perspectiva de Mircea Eliade, torna-se um deus otiosus, que esquecido pelos fiéis, deixa seu lugar para outras divindades mais jovens ou atraentes.
Diante das cenas preservadas no youtube, sou quase obrigado a troar a afirmação de Marx de que a religião realmente pode ser um entorpecente “ópico” alienador da realidade, que embuça com flores e jardins as correntes socialmente colocadas. E chego a pensar que Freud parece ter visto o mesmo vídeo que vi. Como não aplicar o conceito freudiano de neurose quando um pregador, aos gritos, promete mundos e fundos e leva todos a oscilarem entre o que são e desejam ser, ou entre o Ego e o mundo, aproximando-os de uma psicose?
Depois de andar na net pelos vídeos dos congressos e de seus pregadores, fiquei preocupado, porque como assembleiano e jovem ministro não sei bem quais serão os nossos futuros paradigmas de pregação e pregador. No entanto, já que entrei neste último parágrafo em questões proféticas, talvez possa arriscar dizer que chegará o tempo em que os circos não serão necessários, porque teremos as igrejas e os púlpitos!