sexta-feira, 24 de maio de 2019

O uso do Método Histórico-crítico na erudição bíblica pentecostal: Robert Menzies



Já tenho demonstrado em livro (“Experiência e Hermenêutica Pentecostal” - CPAD), artigos e publicações menos técnicas em posts, que a hermenêutica pentecostal tem uma história dinâmica, dialogal e multifacetada. Se no início do Pentecostalismo os fiéis pentecostais liam a Bíblia de maneira “pragmática” (Stronstad), com horizontes muito próximos do “Bible Reading Method” dos movimentos de santidade, o mesmo não pode ser dito em relação às décadas posteriores, quando acadêmicos (Fee e outros) se deram o trabalho de responder à acusação de ser a leitura pentecostal eivada de alegorias imprecisas. É nesse contexto de aproximação com a academia que encontraremos estudiosos pentecostais dialogando com as modernas pesquisas bíblicas e se valendo de ferramentas da exegese acadêmica.

Na esteira desse fenômeno, está o importante biblista pentecostal Robert Menzies. Conhecido entre nós brasileiros, o doutor pela Universidade de Aberdenn é um exemplo da utilização de métodos críticos na erudição pentecostal. Como sabemos, o Método Histórico-crítico (MHC) é um conjunto de ferramentas desenvolvidas no período da Modernidade, sob os auspícios do paradigma do sujeito. Entre essas estão a Crítica Literária, Crítica das Formas, Crítica da Tradição e Crítica da Redação. Se por um lado o MHC era tratado como destruidor da fé e da veracidade ou historicidade das narrativas bíblicas, por outro, alguns evangélicos de perspectiva mais neo-ortodoxa utilizavam-no de maneira moderada. Consequentemente, mesmo que isso levasse à confirmação de que a Bíblia é um conjunto de tradições e fontes redigidas teologicamente, ela não perderia o caráter de obra divina e não seria tocada a certeza de que seus autores foram instrumentos da ação do Espírito Santo.

Percebemos nitidamente essa predisposição metodológica na belíssima obra de Menzies publicada pela CPAD, “Pentecostes: essa história é a nossa história”. Nesse livro, quando no final do parágrafo no qual se discute o uso de Joel, afirma-se que At 2 “mostra sinais de edição cuidadosa por parte de Lucas”. Para entendermos o que isso significa, antes é necessário saber que a Crítica da Redação avalia o processo da produção dos textos bíblicos e pressupõe que o autor fez esse trabalho dentro do escopo redacional pretendido para sua obra. Essa crítica observa a orientação teológica que guia a seleção das fontes e as mudanças realizadas nas tradições recebidas. Temendo ser mal interpretado, Menzies faz uma nota de rodapé explicando que mesmo instrumentalizando-se dessa perspectiva própria do método crítico, ele não pretende desconsiderar a historicidade da Bíblia ou desqualificá-la. Veja o que ele diz: “Quando me refiro à atividade editorial de Lucas, não quero de forma alguma dar a entender que a narrativa de Lucas é historicamente inexata. O que desejo é apenas salientar que, enquanto Lucas escreve história e história com precisão, ele o faz com o propósito teológico em vista [...]. Embora seja suposição minha de que o trabalho editorial de Lucas reflete com precisão e enfatiza temas dominicais e apostólicos, a questão essencial que procuro responder centraliza-se no conteúdo da mensagem de Lucas. Afinal de contas, é essa mensagem que acredito ser inspirada pelo Espírito Santo e autorizada para a igreja” (p.26).

Com essa moderação, sob as luzes do evangelicalismo americano, Robert Menzies usou o MHC na leitura de Atos dos Apóstolos. Menzies, ou o próprio Stronstad, percebeu estratégias redacionais teologicamente articuladas em Lc-At e afirmou que o autor editou tradições anteriores modelando-as em um processo redacional, o que só seria possível afirmar aplicando a crítica da redação. E, por incrível que pareça, foi exatamente esse uso do MHC pelos eruditos pentecostais que possibilitou tratar Atos não como simples descrição do passado, mas história teológica, perpassada por padrões literários organizados com objetivos também didáticos; assim, aumentou-se a ênfase no caráter teológico da narrativa de Atos tornando-a mais do que exposição de acontecimentos do passado, mas afirmações pneumatológicas, eclesiológicas, missiológicas etc. Tanto Paulo quanto Lucas, nesse sentido, são verdadeiros teólogos.

Na obra “Empowered for Witness”, Menzies mostra mais uma vez sua dependência às ferramentas histórico-críticas. Em seu importante e refinado livro, ele lerá a pneumatologia de Lucas-Atos em diálogo com a tradição do Judaísmo do Segundo Templo e a vasta literatura apócrifa e pseudepígra – como a Crítica da Tradição do MHC recomenda fazer. Por isso, seu trabalho mapeará os textos da diáspora, Sirácida, a literatura apocalíptica (1 Enoque e outros) e a literatura de Qumran (Testamento dos dois Espíritos [1QS]). Ou seja, para descrever o Espírito Santo em Lucas ele considera as tradições judaicas, em uma perspectiva da história da tradição e história comparada das religiões. Citando especialistas do judaísmo do Segundo Templo e eruditos do NT como G. Vermes, E. P. Sanders e J. Neusner, Menzies lerá a experiência do Espírito das comunidades cristãs neotestamentárias a partir do background judaico. Leia o que Menzies afirma: “reconheço que o Judaísmo providenciou o contexto conceitual para a reflexão pneumatológica de Lucas, assim como para a igreja primitiva” (p.49).

Contudo, isso não deveria incomodar o/a leitor/a, porque ao introduzir algumas das partes do mesmo livro ele admite o uso de pelo menos duas ferramentas do MHC, Crítica Literária e Crítica da Redação. Ainda citando Menzies: “o estudo que se segue é uma tentativa de reconstruir o papel de Lucas no desenvolvimento da pneumatologia do Cristianismo das Origens. A perspectiva da pneumatologia lucana pode ser elucidada através de uma análise da maneira como ele usa e modifica Marcos e Q [fonte reconstruída pela crítica literária]” (p 17). Mais a frente, de forma contundente, ele afirmará: “o método de análise empregado é a crítica da redação. Eu examinarei relevantes passagens em Lucas-Atos no esforço de detectar os aspectos da criativa contribuição de Lucas para a tradição concernente à obra do Espírito Santo” (“Empowered for Witness”, p. 104).

Na história da hermenêutica pentecostal, percebemos que não há “o” método que seja próprio da sua identidade. Mesmo os pentecostais mais animados com a maneira reformada de ler a Bíblia, os quais, por vezes, citam R. Menzies, não podem se esquecer da presença, em sua forma mais moderada, do “malquisto” Método Histórico-crítico. Entendam: Santo, perfeito e bom é Deus e não o método exegético. A despeito dessa obviedade, infelizmente percebemos, aqui e acolá, fundamentalismos metodológicos alimentados de apologética rasa e infantil.


terça-feira, 21 de maio de 2019

“TODA AUTORIDADE GOVERNAMENTAL VEM DE DEUS”. ISSO SIGNIFICA LEGITIMAR QUALQUER GOVERNO?




Entre as suas últimas publicações, o presidente divulgou um vídeo no qual o pastor congolês Steve Kunda exorta o Brasil a aceitá-lo (Bolsonaro) como enviado ou empoçado por Deus. Por isso, não deveríamos, disse o pastor, criticá-lo, mas simplesmente aceitar a soberana vontade do Senhor. Essa afirmação, entre tantos outros problemas, tenta criar em torno do presidente uma redoma divina, desqualificando qualquer crítica ou oposição, porque significaria ser contra o próprio Deus. O cinismo antidemocrático dessa publicação ecoa o uso desonesto de uma série de textos bíblicos e discursos teológicos, os quais, por vezes, são aplicados aos pastores e pastoras que buscam neutralizar pelo medo qualquer objeção. Contudo, quando a mesma estratégia é instrumentalizada pelo representante da República, estamos diante de grande ameaça à democracia e legitimação religiosa do autoritarismo contra o Estado Democrático de Direito. Um texto não citado pelo bispo congolês, mas presente nas memórias de seu discurso é Rm13. Quero aqui esclarecer alguns detalhes sobre essa passagem bíblica, o que impedirá ser usada de base para desarranjos e malabarismos contra a democracia.

Em Romanos 13.1 lemos: “Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas”. Essas palavras precisam ser lidas à luz da estrutura política romana. Paulo não presumia relações democráticas no Império, mas tratou pastoralmente a maneira como os cristãos deveriam lidar com a tarefa de vivenciar a fé no mundo estabelecido sob a égide imperial. Vejamos o texto. O apóstolo começa, de maneira abrupta, depois de discutir sobre as relações pessoais (Rm 12.21), afirmando que “toda alma” (pâsa psyché), referindo-se a todas as pessoas, deveria se “subordinar”. O verbo hupotásso tem sentido de ação livre em relação a alguma coisa. A submissão aqui é aplicada às autoridades constituídas. Paulo diz que toda e qualquer autoridade é estabelecida por Deus seguindo algumas tradições judaicas (Dn 2.21; Is 41.2ss; Pr 8.15; Eclo 17.7; Pr 8,15-16). No entanto, ele também diz: “é instrumento de Deus para estabelecer o bem” (v.4). Esta última afirmação precisa ser lida como uma “generalização” ladeada por “idealização”. Ou seja, em termos ideias as autoridades estão a serviço da promoção do bem. E quando o contrário acontece, como no Nazismo, por exemplo?

A ideia é a seguinte: ora, se a origem das autoridades é divina, logo esta estará sempre a serviço do bem e qualquer que se atrever questioná-la será contrário aos desígnios divinos (v.2). Isso quer dizer que Paulo desconhecia autoridades que descumprem esta função ideal? Pelo contrário, em 1Co 6,1-11 ele tece críticas aos juízes injustos. Contudo, em Rm 13 ele não leva em consideração o desvio desse projeto ideal, mas estabelece o que é em termos paradigmáticos – ou seja, ele parte do modelo previsto para as autoridades. Por isso, esse texto não pode ser usado como instrumento de aceitação passiva diante de lideranças autoritárias e injustas, ou para desqualificação, por exemplo, da luta contra as ditaduras. Só há espaço para essa perigosa interpretação se lermos os versos 1-2 separando-os dos versos 3-4. A abstração de que os governos servem para conduzir ao bem e punir o mal é o que legitima a afirmação de que são instituídos por Deus. A mesma ideia aparece no livro Sabedoria (6,1-11) , no qual se diz que o Senhor é quem dá o domínio aos governos (v.3), mas estes devem servir ao Reino de Deus (v.4), pois se não o fizerem serão punidos (v.5). Então, em Rm 13 Paulo não está interessado em falar das autoridades que não seguem sua vocação de serem promotores da justiça, mas em apresentar o plano original das autoridades, o que legitima o pagamento de impostos. Conseguintemente, qualquer autoridade que seja injusta, corrupta ou desumanizadora não é legítima, porque não está seguindo o estabelecido por Deus para sua vocação.

O apóstolo simplesmente constrói sua argumentação seguindo um princípio teológico: “Deus governa este mundo em oposição aos tiranos e a pesar deles mesmos” [Uwe Wegner - RIBLA 4] . O texto bíblico preocupa-se em defender o pagamento de impostos e tributos por consciência e liberdade, como um bom cidadão, e não por medo de punição ou imposição (v.5-7). Por sua vez, só é possível entender essa discussão lendo o contexto de generalização e idealização. O governo estabelecido por Deus e promotor da justiça é digno de receber os tributos, como ministro de Deus (v.4). Assim, deve-se honrar ou resistir à luz do quanto se adéqua ao projeto idealizado para as autoridades. Consequentemente, resistência e honra devem ser observadas e aplicadas a partir do contexto da materialização ou não do propósito da instituição estabelecida por Deus. Assim, percebe-se aqui o interesse pastoral paulino com a participação cívica da igreja.

Ainda, no contexto que precede Rm 13,1-7 (Rm 12, 9.17.21) está em jogo a prática do bem, que aqui pode ser realizada na justa participação civil de pagamento de tributos e, como contrapartida, o governo exercer com equidade sua função de estabelecimento do projeto exposto em Rm 13.3-4. O papel do governo é imunizar o povo das ações desumanizadoras e injustas. Nessa liderança idealizada, quem pratica o mal precisa temer as autoridades; enquanto os bons e justos, honrarem-na. Nesse sentido, a melhor interpretação dessa discussão paulina não é defender a aceitação de qualquer ação governamental, como se Paulo estivesse anulando a crítica profética. Pelo contrário, em sua parénese ele defende a participação cidadã consciente e livre pelo bem social. Além disso, não é possível afirmar que o texto nega a oposição política adequada aos governos e autoridades que não cumpram seu papel no serviço estabelecido por Deus.

Assim, como – por incrível que pareça – fez Janaina Pascoal, deputada do PSL, precisamos nos perguntar “se um presidente da república na plenitude de suas faculdades mentais publicaria um vídeo desses”. Eu estenderia a pergunta da nobre deputada, a mesma que pediu o impeachment da Dilma e antiga defensora do Bolso, se os evangélicos desse país cairão nessa insanidade e se permitirão ser usados sob a tutela de desonestas leituras da Bíblia.