Já tenho demonstrado em livro (“Experiência e Hermenêutica Pentecostal”
- CPAD), artigos e publicações menos técnicas em posts, que a hermenêutica
pentecostal tem uma história dinâmica, dialogal e multifacetada. Se no início
do Pentecostalismo os fiéis pentecostais liam a Bíblia de maneira “pragmática”
(Stronstad), com horizontes muito próximos do “Bible Reading Method” dos
movimentos de santidade, o mesmo não pode ser dito em relação às décadas
posteriores, quando acadêmicos (Fee e outros) se deram o trabalho de responder
à acusação de ser a leitura pentecostal eivada de alegorias imprecisas. É nesse
contexto de aproximação com a academia que encontraremos estudiosos
pentecostais dialogando com as modernas pesquisas bíblicas e se valendo de
ferramentas da exegese acadêmica.
Na esteira desse fenômeno, está o importante biblista pentecostal
Robert Menzies. Conhecido entre nós brasileiros, o doutor pela Universidade de
Aberdenn é um exemplo da utilização de métodos críticos na erudição
pentecostal. Como sabemos, o Método Histórico-crítico (MHC) é um conjunto de
ferramentas desenvolvidas no período da Modernidade, sob os auspícios do
paradigma do sujeito. Entre essas estão a Crítica Literária, Crítica das
Formas, Crítica da Tradição e Crítica da Redação. Se por um lado o MHC era
tratado como destruidor da fé e da veracidade ou historicidade das narrativas
bíblicas, por outro, alguns evangélicos de perspectiva mais neo-ortodoxa
utilizavam-no de maneira moderada. Consequentemente, mesmo que isso levasse à
confirmação de que a Bíblia é um conjunto de tradições e fontes redigidas
teologicamente, ela não perderia o caráter de obra divina e não seria tocada a
certeza de que seus autores foram instrumentos da ação do Espírito Santo.
Percebemos nitidamente essa predisposição metodológica na belíssima
obra de Menzies publicada pela CPAD, “Pentecostes: essa história é a nossa
história”. Nesse livro, quando no final do parágrafo no qual se discute o uso
de Joel, afirma-se que At 2 “mostra sinais de edição cuidadosa por parte de
Lucas”. Para entendermos o que isso significa, antes é necessário saber que a
Crítica da Redação avalia o processo da produção dos textos bíblicos e
pressupõe que o autor fez esse trabalho dentro do escopo redacional pretendido
para sua obra. Essa crítica observa a orientação teológica que guia a seleção
das fontes e as mudanças realizadas nas tradições recebidas. Temendo ser mal
interpretado, Menzies faz uma nota de rodapé explicando que mesmo
instrumentalizando-se dessa perspectiva própria do método crítico, ele não
pretende desconsiderar a historicidade da Bíblia ou desqualificá-la. Veja o que
ele diz: “Quando me refiro à atividade editorial de Lucas, não quero de forma
alguma dar a entender que a narrativa de Lucas é historicamente inexata. O que
desejo é apenas salientar que, enquanto Lucas escreve história e história com
precisão, ele o faz com o propósito teológico em vista [...]. Embora seja
suposição minha de que o trabalho editorial de Lucas reflete com precisão e
enfatiza temas dominicais e apostólicos, a questão essencial que procuro
responder centraliza-se no conteúdo da mensagem de Lucas. Afinal de contas, é
essa mensagem que acredito ser inspirada pelo Espírito Santo e autorizada para
a igreja” (p.26).
Com essa moderação, sob as luzes do evangelicalismo americano,
Robert Menzies usou o MHC na leitura de Atos dos Apóstolos. Menzies, ou o
próprio Stronstad, percebeu estratégias redacionais teologicamente articuladas
em Lc-At e afirmou que o autor editou tradições anteriores modelando-as em um
processo redacional, o que só seria possível afirmar aplicando a crítica da
redação. E, por incrível que pareça, foi exatamente esse uso do MHC pelos
eruditos pentecostais que possibilitou tratar Atos não como simples descrição
do passado, mas história teológica, perpassada por padrões literários
organizados com objetivos também didáticos; assim, aumentou-se a ênfase no
caráter teológico da narrativa de Atos tornando-a mais do que exposição de
acontecimentos do passado, mas afirmações pneumatológicas, eclesiológicas,
missiológicas etc. Tanto Paulo quanto Lucas, nesse sentido, são verdadeiros
teólogos.
Na obra “Empowered for Witness”, Menzies mostra mais uma vez sua
dependência às ferramentas histórico-críticas. Em seu importante e refinado
livro, ele lerá a pneumatologia de Lucas-Atos em diálogo com a tradição do
Judaísmo do Segundo Templo e a vasta literatura apócrifa e pseudepígra – como a
Crítica da Tradição do MHC recomenda fazer. Por isso, seu trabalho mapeará os
textos da diáspora, Sirácida, a literatura apocalíptica (1 Enoque e outros) e a
literatura de Qumran (Testamento dos dois Espíritos [1QS]). Ou seja, para
descrever o Espírito Santo em Lucas ele considera as tradições judaicas, em uma
perspectiva da história da tradição e história comparada das religiões. Citando
especialistas do judaísmo do Segundo Templo e eruditos do NT como G. Vermes, E.
P. Sanders e J. Neusner, Menzies lerá a experiência do Espírito das comunidades
cristãs neotestamentárias a partir do background judaico. Leia o que Menzies
afirma: “reconheço que o Judaísmo providenciou o contexto conceitual para a
reflexão pneumatológica de Lucas, assim como para a igreja primitiva” (p.49).
Contudo, isso não deveria incomodar o/a leitor/a, porque ao
introduzir algumas das partes do mesmo livro ele admite o uso de pelo menos
duas ferramentas do MHC, Crítica Literária e Crítica da Redação. Ainda citando
Menzies: “o estudo que se segue é uma tentativa de reconstruir o papel de Lucas
no desenvolvimento da pneumatologia do Cristianismo das Origens. A perspectiva
da pneumatologia lucana pode ser elucidada através de uma análise da maneira
como ele usa e modifica Marcos e Q [fonte reconstruída pela crítica literária]”
(p 17). Mais a frente, de forma contundente, ele afirmará: “o método de análise
empregado é a crítica da redação. Eu examinarei relevantes passagens em
Lucas-Atos no esforço de detectar os aspectos da criativa contribuição de Lucas
para a tradição concernente à obra do Espírito Santo” (“Empowered for Witness”,
p. 104).
Na história da hermenêutica pentecostal, percebemos que não há “o”
método que seja próprio da sua identidade. Mesmo os pentecostais mais animados
com a maneira reformada de ler a Bíblia, os quais, por vezes, citam R. Menzies,
não podem se esquecer da presença, em sua forma mais moderada, do “malquisto”
Método Histórico-crítico. Entendam: Santo, perfeito e bom é Deus e não o método
exegético. A despeito dessa obviedade, infelizmente percebemos, aqui e acolá,
fundamentalismos metodológicos alimentados de apologética rasa e infantil.