segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

CARNAVAL, RISO E SUBVERSÃO

"Demócrito", óleo sobre tela, Johannes Moreelse (1602-1634) 

A história cultural do Carnaval mostra-nos a sua riqueza subversiva e a força protestante da festa popular. Sei que essa afirmação não parece ser compatível com a opinião da maioria de brasileiros/as, foliões ou não. Os etimólogos de esquina, por exemplo, aplicando seus conhecimentos históricos sofisticados, traduzem-na como “festa da carne”, e “carne” para esses não seria o lugar sagrado da vida, mas símbolo de explosão da promiscuidade, permissividade e devastação dos bons costumes religiosos ou burgueses. Por outro lado, há a ala da intelectualidade conservadora, clássica, de esquerda ou direita, cuja opinião é o desdém ou ódio, porque fere sua sensibilidade crítica, não pela possível obscenidade (sua mente liberal não permitiria tal denúncia), mas por ser interpretada como festa-ópio, alienadora ou sem a simetria permitida pelos estatutos estéticos de seus padrões hiper-sofisticados. Para outras pessoas, talvez a maioria, é tempo de feriado prolongado para se divertirem ou oportunidade de trabalho momentâneo.

Buscando mais luz a essa discussão, seria interessante citar M. Bakhtin. O teórico russo fez uma interessante e influenciadora análise das diversas expressões carnavalescas da cultura popular medieval e renascentista, a partir das obras de François Rabelais. Nessa e em outras obras, Bakhtin desenvolveu o conceito de carnavalização. Para ele, o carnaval, além do conjunto de festas no Medievo e Renascença, era uma maneira de interpretar, criticar e subverter o mundo e suas hierarquias. 

Segundo as intuições do pesquisador russo, a máscara, a fantasia e seus adornos carnavalescos desconfigurantes serviam como diluidores de identidade, inserindo a individualidade no espaço fluido do coletivo sem rosto, plural e livre formando uma unidade concreta. Analisando festas importantes da Europa como a festum stultorum, festa dos loucos ou festa do burro, quando se satirizava ritos e liturgias diante de um burro ou consagravam seres grotescos, o filósofo da cultura mostrou como a expressão carnavalesca desmontava a aparência aceitável, criticava as hierarquias e colocava simbolicamente no centro os marginais, loucos ou descredenciados. Para Bakhtin, as expressões carnavalescas serviam como denúncia satírica da ordem estabelecida, materializada em figuras monárquicas, eclesiásticas ou jurídicas. Como bem explicou Claudiana Soerensen, em um bonito artigo, “é o locus privilegiado da inversão, onde os marginalizados apropriam-se do centro simbólico, numa espécie de explosão de alteridade, onde se privilegia o marginal, o periférico, o excludente”. Nesse sentido, as expressões carnavalescas seriam uma crítica cômica ao mundo e suas injustiças. Para essa perspectiva, o estrato simbólico mais básico da intervenção carnavalesca é o riso, expressão coletiva e denunciadora das estruturas sérias e formais. É O riso subversivo, desestabilizador, por vezes proibido. Então, mais do que tempo de entretenimento ou alienação, a história do carnaval mostra-nos seu radical poder de carnavalização cômica do mundo e suas contradições. Ele é, em última instância, manifestação profética da alegria recheada de insurreição. Nesse sentido, o carnaval brasileiro deveria perceber-se e tornar-se lugar de denúncia direta ao funcionamento risível do Brasil. 

Talvez, para muitos brasileiros e brasileiras desumanizados/as e tolhidos/as de seus direitos o riso carnavalesco seja a única possibilidade de desestabilização, mesmo que simbólica, da seriedade de magistrados hipocritamente insensíveis, políticos de corrupta austeridade ou líderes religiosos de piedade pervertida e aliciadora. Por isso, o povo precisa rir, rir às escarradas, até seus algozes e suas estruturas injustas tornarem-se pó!