terça-feira, 7 de março de 2017

Não venha com conversa fiada! Sim, no Brasil, o preconceito ainda mata e silencia!


Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no artigo 4º, é dever, e não opção, da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público (resumindo: É responsabilidade de todos/as nós!) assegurar (ou seja: tornar possível, fazer acontecer, efetivar) à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade (!), os direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. E, ainda, em Parágrafo único, o ECA determina para todos nós o dever de priorizar a efetivação da proteção e socorro, em quaisquer circunstâncias, a preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e a destinação privilegiada de recursos públicos relacionados à infância e à juventude. No entanto, esse lindo texto de promoção de direitos e exigências de deveres não se aplica, na prática, às crianças pobres e deixadas às margens. Isso ficou bem claro no caso do menino João Vitor, de apenas 13 anos, morto em Vila Nova Cachoeirinha, em frente de um Habib’s da zona norte de São Paulo. Esse crime escancara a face mais cruel da lógica preconceituosa do nosso país. Vitor foi arrastado, agredido, violentado, desumanizado e morto, no meio da rua, como se fosse um lixo dispensado na sarjeta. A barbárie é ainda maior, porque João Vitor (e faço questão de repetir seu nome em todo texto!) estava naquele Habib’s mendigando o que lhe era de direito: alimentação!

O júri informal e imoral foi estabelecido imediatamente. Ali, na rua mesmo, o Habib’s e seus funcionários, usando do princípio do preconceito, decretaram para Vitor a pena máxima – a mesma que é aplicada diariamente a outras crianças pobres e jovens negros do nosso país –, o veredito de morte. Qual o crime? – Ser catador de recicláveis, ser pobre! Nas palavras de seu pai, Marcelo Fernandes de Carvalho: “Ele teve uma morte que não se faz nem com animal. Meu filho era humilde igual eu, catador de lixo. Ele pedia, mas não roubava nada de ninguém. O moleque foi espancado por causa que estava pedindo um real para comer um lanche”.

Depois, tornando o caso ainda mais trágico e vergonhoso, a informação da Sra. Sílvia Helena, testemunha ocular, foi desdenhada e desacreditada. Mesmo sabendo detalhes do crime, ela não foi ouvida. A razão? Ora, a mesma que matou João Vitor: ser catadora de recicláveis, ser pobre. Neste país, onde se torna culapado/a o violentado/a, se naturaliza o sistema de má distribuição dos bens, se valoriza o sucesso de poucos à custa da ocultação do de-sucesso de muitos e se defende a lógica social darwinista/meritória, catar papel e pedir comida é crime inafiançável e prova irrefutável de culpa. Então, não venha com conversa fiada! Sim, no Brasil, o preconceito ainda mata e silencia!
O sacrifício do João Vitor é símbolo da nojenta, indigna e maligna/diabólica naturalização da discriminação contra pobre, preto, mulher, índio, nordestino, homossexual e outros grupos desumanizados, os quais, por vezes, são violentados e mortos por causa de sua cor, gênero, etnia ou orientação sexual.

Contudo, a fé que anima minha caminhada e ajuda-me interpretar meus dias, é alimentada por narrativas a respeito do Deus que nasce entre excluídos e lançados às margens. Ele é testemunhado por pastores, os mesmos que não teriam voz em um júri romano. Ou seja, o Nazareno recém-nascido foi proclamado por “Silvias”, catadores de resíduos. Nele, silenciados ganham voz. O Mestre, aquele que vigora a esperança e dá vida e razão à experiência pastoral, exige-nos indignação, compaixão e movimentação diante dessa “patologia social”, para que usemos nossa influência, força relacional, articulação política, presença pública e contados na criação de espaços conscientizadores e transformadores, os quais promovam ações preventivas e estruturantes contra a violência, o preconceito e desumanização. 

Bem-aventurados são os que têm fome e sede de justiça. Bem-aventurados os que não aceitam passivamente o tenebroso enredo da morte de João Vitor!