sábado, 19 de maio de 2012

ANJOS QUE TOMAM BANHO? Variações textuais de Jo 5,4



Como já sabemos há um bom tempo, os textos bíblicos autógrafos (os “originais”, os que saíram das mãos de Paulo, por exemplo) passaram por diversas cópias, que por sua vez foram copiadas, recopiadas etc. Por isso, temos testemunhadas variantes textuais em vários manuscritos. Basta-nos comparar alguns manuscritos e veremos isso com clareza. É por isso que encontramos, às vezes, em algumas traduções a expressão “não se encontra nos melhores manuscritos”. Ou seja, nem sempre os textos reproduzidos eram iguais aos “originais”. A ciência que trabalha com a comparação destes manuscritos, para chegar ao mais próximo possível do “original” é a “Crítica Textual”.  Os manuscritos do Novo Testamento, por exemplo, passaram por esse processo e hoje em dia temos duas edições críticas mais populares, o United Bible Societies’ Greek New Testament (atualmente na 4º edição) e o Novum Testamentum Graece (atualmente, na 27º edição). São duas edições gêmeas, que têm os textos reconstruídos, dos quais saem as traduções. No rodapé dessas edições críticas, encontramos o “aparato crítico”, no qual há as variantes textuais, as outras leituras sobre o mesmo texto.

Papiro 66 (séc. II) 
Bom, tendo feito esta superficial descrição da Critica Textual,  quero apresentar um versículo bíblico que possuiu curiosas leituras, as quais dizem muito sobre como ele foi lido e a respeito das memórias subsequentes a sua circulação posterior. Refiro-me ao texto de Jo 5,4: "anjo, porém, do Senhor no devido tempo descia no tanque e agitava a água; porém o primeiro que entrava com o agito da água curado ficava de qualquer doença que tivesse" (tradução literal). A Almeida Revista e Corrigida preserva este texto. No entanto, o Papiro 66 (séc. II), Papiro 75 (séc. III), o códice Sinaítico (séc. IV), o códice Vaticano (séc.  IV) e outros manuscritos não têm este verso. 

 O interessante é que depois do surgimento desta variante, outras cópias foram feitas surgindo novas e divertidas leituras. O texto diz que o “anjo do Senhor, na hora certa, descia (katabaínen) no tanque e agitava a água...”, mas no códice Alexandrino (séc. V), no códice K (séc. IX) e outros manuscritos, no lugar do verbo “descer”, colocam o verbo "lavar" (loúo), ou seja, segundo estas testemunhas textuais, o anjo se “lavava” e a água se agitava. Uma cena no mínimo curiosa! Com esta leitura, o texto diria que os enfermos esperavam o anjo se lavar no tanque, e quando a água se agitava eles aproveitavam a oportunidade para mergulhar e receber a cura.

Provavelmente, este verso não pertença ao texto original, como indica a Crítica Textual e algumas traduções. Contudo, mostra-nos algumas crenças que faziam parte do imaginário religioso em torno do templo (!) no judaísmo dos primeiros séculos, como também as memórias textuais. Se isso está testemunhado em alguns manuscritos é porque revelam a presença de expectativas de certos grupos do passado.

Anjo tomando banho, que coisa em...