terça-feira, 9 de novembro de 2010

Enquanto a carta aos Gálatas não é lida... O legalismo ainda é um problema na Assembleia de Deus




Depois dessa exposição da Carta aos Gálatas, mesmo faltando o último bloco, sou motivado a fazer algumas reflexões sobre um fenômeno ainda bem presente nas Assembleias de Deus: o legalismo. Talvez os fíeis das grandes capitais achem estranho essa minha afirmação. No entanto, esse vírus, diagnosticado através dos conhecidos “usos e costumes”, ainda tem infectado muita gente, especialmente no interior do Brasil, inclusive onde moro. Penso ser possível interpretar essa postura à luz do caso da igreja na Galácia, onde, como percebemos nas exposições feitas nos posts anteriores, alguns intrusos ensinavam a necessidade da observação da Torah, juntamente com a fé em Cristo, para Justificação.

Essa valorização da Lei por parte dos legalistas infiltrados na igreja da Galácia do norte, tem pressupostos e detalhes bem diferentes em relação ao legalismo ainda presente em algumas igrejas assembleianas. No entanto, quando alguém é retirado da comunhão por desobedecer algumas regras legais de estatutos locais, ou seu batismo é condicionado pela aceitação ou não de um conjunto de costumes (modo de se vestir, maneira de uso do cabelo, prática ou não de esportes etc.) no fundo, mesmo que despercebidamente, coloca-se o sacrifício de Cristo lado a lado com questões culturais ou caprichos regionais. Isso é tratar a tradição “usuística” da Assembleia de Deus como possuidora de mais poder de perpetuidade do que a própria Torah, porque esta em Cristo já não tem qualquer função legal segundo o apóstolo Paulo (Gl 3, 19-25), enquanto aquela é preservada nas comunidades assembleianas ou em denominações delas oriundas. Como se o legalismo institucionalizado veterotestamentário tivesse menos perenidade do que o assembleiano.

Não quero ser injusto, sei que em muitos locais essa questão está bem definida, mas ainda encontramos em todo Brasil várias pessoas perdendo direitos alcançados unicamente por Cristo, por não se submeterem às regrinhas tradicionais da congregação onde reúnem. Dois desses são o batismo e ceia, símbolos da manifestação da graça de Deus. Se a participação nesses sacramentos estiver condicionada à aceitação ou obediência às normas estatutárias, não estaria havendo uma desqualificação do sacrifício de Cristo, única razão que permite alguém fazer parte ou não desses ritos cristãos, como exortou o apóstolo em Gálatas? Não estaríamos, em algum nível, caindo da graça (Gl 5,4), porque acabamos encontrando nossa legitimação e aceitação em obediências legalistas?

O grande problema não está na superfície da afirmação desses “usos e costumes” como manifestações da identidade assembleiana, mas nas consequêcias teológicas do ladeamento desses componentes da construção de identidade à fé ou ao sacrifício de Cristo. Todos dizem, até os mais legalistas, que esses “costumes” não salvam, mas alguns acabam excluindo, disciplinando e tirando da comunhão dos salvos aqueles que não obedecem tais regras.

Assim, sou induzido a afirmar que ainda vivemos o desafio do apóstolo Paulo. Enquanto ele tinha problemas com a tradição judaica, nós aqui temos com a tradição assembleiana. Minha preocupação está no fato de que as implicações teológicas daquela tradição são diretas e explícitas, enquanto dessa são sorrateiras e enganosamente inofensivas.

Terceiro bloco da exposição da Carta aos Gálatas: a justificação pela Fé (Gl 3, 1 – 5,12)

1. Pequena Introdução

Como havia prometido, retomo neste post a exposição da Carta aos Gálatas. Por ser um grande bloco o texto ficou um pouco grande. No entanto seria uma violência ao texto não fazer sua exposição assim, pois destruiria sua lógica interna e seu desenvolvimento retórico.

Neste importante bloco Paulo trabalhará de maneira mais pausada o que começou na parte anterior. Ele dialogará com a proposta dos seus adversários apresentando como prova da veracidade de sua posição a experiência da própria comunidade e também com bases bíblicas, usando, talvez, os mesmos exemplos tomados por seus adversários. Desta forma, ele constrói seu edifício argumentativo para defender da fé.

2. Gl 3,1-25: carne x espírito (Lei x fé) preponderância da fé

Gl 3,1-5: Depois de uma exclamação nada lisonjeira: “Gálatas insensatos!” (3.1), Paulo faz uma pergunta retórica: quem vos enfeitiçou [enganou]? Essas expressões de espanto e decepção, próximas a do início da carta (1,6), têm sua razão, pois eles conheciam a pregação do Cristo crucificado (v.2). Assim dito, ele busca a experiência do Espírito na comunidade, como fez Pedro em At, para defender sua tese: essa experiência se originou da prática da Lei ou da fé? (v.2). A resposta seria bem clara: pela fé. Isso porque eles receberam o Espírito e seus sinais milagrosos (v.5) não por observar regras legais judaicas, mas quando ainda estavam vivendo na maneira pregada por Paulo. Ele busca na memória de seus interlocutores a experiência do Espírito na comunidade para mostrar a coerência da aceitação de Deus pela fé e não por observar as leis que agora esses intrusos querem impor. Paulo os chama por duas vezes de insensatos, por motivos óbvios. Era como se fechassem os olhos para a realidade: se realmente estivesse faltando alguma coisa para completar a fé em Cristo não teriam recebido e vivido a presença do Espírito. Pelo que parece, alguns estavam vivendo essa fé legalista (4,10) e por isso ele fala de um passado iniciado no Espírito, ou seja, na fé, ou na total dependência do sacrifício de Cristo para ser aceito por Deus, e de um presente na carne, na obediência da Lei. Carne aqui diz respeito às coisas feitas pelo ser humano por sua própria força. Assim, os seus ouvintes foram lembrados que haviam recebido o Espírito antes e independente da circuncisão e do cumprimento da Lei. Esse argumento era poderoso, pois tinha bases “empíricas”, provenientes da experiência.



Gl 3,6-18: após a utilização do exemplo da experiência do Espírito na própria comunidade, ele utiliza as Escrituras para dar base a sua argumentação. Assim ele vai destruindo aos poucos os argumentos de seus adversários. Similar a Rm 4, ele utiliza Abraão. Como explica Crossan, talvez os seus adversário utilizaram a tradição sacerdotal de Gn 17, 1-27, na qual mostra Deus fazendo um aliança com Abraão e esse deveria responder com uma vida perfeita (Gn 17,1) usando a circuncisão como sinal dessa aliança (Gn 17,9-14). Com esse tipo de argumento os gálatas eram pressionados pelo discurso dos opositores a Paulo. Então, o apóstolo faz uma contra-argumentação com Gn 15,6, um texto Javista: “teve fé em Deus, e isso lhe valeu ser declarado justo” (v.7). Assim, Paulo mostra que mesmo antes de se pensar a circuncisão Abraão é justificado pela fé e não por obedecer algumas regras legais. Por isso, os filhos de Abraão são os possuidores do mesmo mecanismo de justificação: fé. Serão abençoados como Abraão, e isso já estava previsto em Gn 18,7-9. Depois, ele começa costurar vários textos para mostrar que Deus já na Bíblia hebraica justificava pela fé e não pela obediência da Lei. Primeiro, citando a versão da LXX, mostra como a Lei acaba amaldiçoando seus observantes, pois ela diz estar debaixo da maldição quem não a cumprir totalmente (Gl 3, 10// Dt 27,26). Como ninguém conseguiu essa façanha ela torna-se instrumento de maldição. Ele ratifica essa posição citando Hc 2,4, de forma bem livre, para dizer que é pela fé que o Justo viverá (Gl 3,11). Ele ainda cita Lv 18,5 e mostra a dependência a Lei daqueles que pratica seus preceitos, mas como disse no verso 10, será sempre maldito, pois não a cumprirá. Assim, Paulo responde a isso, também usando um texto da Bíblia Hebraica (Dt 21,23), dizendo que a maldição de Cristo, morrer pendurado no madeiro (cruz), serviu para nossa libertação, em outras palavras, sua maldição nos tirou da nossa maldição. A preposição hupér pode ser traduzida “no lugar de” ou “em substituição a”: “Cristo nos resgatou da maldição da Lei, tornando-se no lugar nosso (hupér hemôn)...”. Duas coisas devem ser explicadas nesse ponto. Primeira, desde os sacrifícios levíticos era possível a morte de outro em detrimento a dos culpados. Em 4 Macabeus já se pensava em indivíduos notáveis como mártires para livrar a nação da ira de Deus. Por isso, havia no tempo de Paulo a possibilidade de se pensar a morte de alguém para livramento do outro. Segundo, essa morte não era simplesmente substitutiva, mas também, e ainda, participativa. Paulo em 2,19 diz que foi crucificado com Cristo e verso 20 diz que ele não vive mais, porque morreu, mas Cristo vive nele. Em Rm 5 e 6, 1-23 Paulo expõe muito bem isso, e mostra a participação na morte de Cristo. Ele morre no “lugar de”, mas aqueles e aquelas que pela fé aceitam essa morte como libertação ou livramento morrem com ele. Por isso, em sua ressurreição nós também ressuscitamos. Então não foi uma morte de um no lugar do outro, mas de um com outros, por isso em Rm 6 exige-se não viver mais no pecado, pois com Cristo morremos para ele.


Em Cristo há libertação da maldição da Lei, e pela fé possibilidade de alcançar as bênçãos das promessas de Abraão, ou seja, das nações serem benditas. Qual nação? A da circuncisão? Não. Mas aqueles, como Abraão, que são justificados pela fé (3,14). E a promessa é exatamente o Espírito prometido! (v.14).


Nos versos 15-18 Paulo continua usando Abraão e prende-se à questão da promessa. E, como faz várias vezes, ele usa a anterioridade da experiência de Abraão em relação à implantação da Lei para tê-la como principal. Ele diz que 430 anos antes de Moisés receber a Lei, Abrão já havia recebido a promessa (Gn 13,15), concordando com o Targum palestinense de Ex 12,40. Seu argumento parte de um exemplo cotidiano para a realidade maior ou mais importante. Quando é feito um testamento entre os homens ele não pode ser anulado ou quebrado (v. 15). Então, Deus fez promessas a Abraão (Gl 2,16), que as nações seriam abençoadas pela fé como ele (Gl 2,8-9). Deus com essa promessa fez uma aliança, um testamento, que não poderia ser anulado com o surgimento, anos depois, da Lei, ou seja, não poderia ser agora mudada para uma justificação pela Lei. Isso resultaria na ineficácia da promessa (v. 17). Assim ele conclui seu argumento de que Abraão recebeu a herança simplesmente porque Deus graciosamente a prometeu e não por obedecer a Lei (v.18). Entre a informação do verso 15 (exemplo preliminar) e o verso 17-18 (aplicação) ele fala sobre promessa (v.16). Uma promessa foi feita a Abraão e a sua semente. Ele insiste no singular, como o Targum lido nas reuniões judaicas que sempre colocava Gn 12,7; 13,15 e outros textos que falavam da descendência do patriarca no plural (descendentes). Dessa forma, essa semente é Cristo, por isso a insistência do singular. A benção de Abraão foi dada por meio da sua fé, e não por observar a Lei, como também os que como ele são aceitos ou declarados justos. Assim, a benção chegou às nações por meio de Cristo (3,14). A semente aqui é uma referência a Cristo, ou melhor, os que estão em Cristo.


Gl 3, 19-25: Depois de fazer essa crítica à Lei, ele responde a uma pergunta: então para que serviu a lei? Para responder ele coloca a Lei no seu lugar e nas suas funções já exercidas. Ela foi promulgada por causa das transgressões, ou para mostrar as transgressões (Gl 3,19), mesma ideia presente em Rm 7, vigorando até a chegada do descendente, Cristo. Segundo Paulo, essa Lei foi entregue por anjos e não diretamente de Deus, para mostrar sua inferioridade – talvez uma referência à “nova lei” entregue por anjos, como aparece no Livro dos Jubileus (Séc.II a.C), no qual encontramos uma tradição paralela e muito famosa no judaísmo sobre a recepção de Moises das mãos de anjos de tabuas celestes. Para Paulo o mal não estava na Lei em si, mas na incapacidade de dar vida, pois ninguém era capaz de cumpri-la. Por isso colocou todos como pecadores. O que isso gerou? Levou os seus seguidores a Cristo (3,24). A Lei foi como um pedagogo, levando até cristo da pior maneira possível: mostrando a incapacidade de vivê-la! Isso antes do regime da fé, que deixou de lado o antigo pedagogo, para que por ela (fé) houvesse a justificação (3,23-25).

3. Gl 3,26 – 4,11: Liberdade de filhos

Após essa defesa bíblica sobre a justificação pela fé e da função da Lei, ele passa para os resultados por nos relacionarmos pela fé com Deus. Por meio da fé todos são filhos de Deus. O determinante para filiação não é a obediência à Lei, ou pertencer a um grupo étnico, mas pela fé em Cristo Jesus (3,26), como foi prometido a Abrão. E pelo batismo em Cristo os gálatas eram revestidos de Cristo (v.27). Assim, como todos, pela fé e no batismo, são filhos de Deus, ele pode então citar uma profissão de fé conhecida e anterior ao texto paulino, usado pelos primeiros cristão nos batismos:

não há judeus nem grego
não há escravo nem livre
não há macho nem fêmea
pois todos vós sois um em Cristo Jesus (3, 28)

Ele não esconde as diferenças étnicas, mas as coloca em igual valor dentro do conceito de filhos, mas no âmbito da descendência de Abraão. Como diz Jonas machado, há uma eliminação das diferenças e superioridades, mas colocando-os todos como filhos de Abraão (v.29). No âmbito da comunidade, e pelo que parece uma comunidade apocalíptica, pois se supera as diferenças, dilui-se as desigualdades de raça (judeus e gregos), elimina-se as diferenças por status social (escravo e livre) e relativiza-se as diferenças de gênero e de papéis sociais pré-estabelecidos (macho e fêmea). No entanto, ainda se afirma a identidade judaica, colocando todos dentro do guarda-chuva da descendência abraâmica.


Como era comum na Antiguidade, o pai sempre deixava um oikonómos (este cuidava da administração da casa. Era um escravo responsável pelos menores de idade e de outros criados), um escravo doméstico, que cuidava da herança do filho até chegar sua maioridade. O herdeiro, diz Paulo, mesmo possuidor de grandes bens era ainda como o escravo, pois não tinha aquela herança (4,1). A maioridade aqui seria a chegada de Cristo e a libertação da Lei, que era uma pedagoga que educava e levava até a necessidade de Cristo (3,24) e o oikonómos que cuidava dos bens do filho ainda criança. Assim, a Lei tenha vigor no período da menoridade, quando ainda não havia chegado Cristo e instaurado a vivência na fé. Como o pedagogo e o oikonómos corrigiam, vigiavam e castigavam as crianças, eles eram donos da vida de seus tutelados. Então Paulo fala da Lei como período de escravidão, primeiro porque os seus protegidos não tinham diferenças de um escravo e depois por serem submetidos a um jugo de normas, preceitos e proibições; uma verdadeira escravidão. Para Paulo, esse período de submissão, de menor idade, era o mesmo que ser escravo dos estoicheîa tou kósmou (espíritos do mundo) (v.3). Estoicheîa, que também aparece em Cl 2,8.20, é traduzido por elementos ou rudimentos, pode ser traduzido também como princípios fundamentais, espíritos elementares, corpos celestes ou elementos do conhecimento.


De acordo com a Septuaginta (Sb 7,17; 19,18), estoicheîa seria elementos do universo. Na obra judaica Testamento de Salomão essa expressão se refere a seres celestiais, demônios ou espíritos (Tes. Sal. 8,1s;18.1). Na tradição judaica ainda aparece essa expressão para referir-se a guardiões da ordem do universo. Assim, Paulo utiliza essa expressão para se referir a alguns seres celestiais. No verso 8 desse mesmo capítulo, Paulo fala da servidão dos gentios a outros deuses como submissão aos estoicheîa. Para o apóstolo, esses seres celestes utilizavam a lei para escravizar os judeus, e a idolatria aos não judeus. Para o apóstolo, tanto a idolatria como o legalismo são prisões causadas pelos seres celestes. Por isso, quando chegou o tempo oportuno ou pleno – que para os fariseus chegaria quando a lei fosse pregada para todos – iniciou-se a libertação da Lei. O Filho de Deus entrou no mundo onde os estoicheîa oprimiam, para o resgate da lei e da idolatria, tornando filhos a todos e todas(4,4-5). Aqui há a imagem de um resgate. A retirada de uma condição para outra: da menoridade e escravidão para maturidade e liberdade.
E como filhos, quase como um prova de filiação, o Espírito é enviado possibilitando chamar Deus de Abba, ou seja, de papaizinho. Essa expressão, como diz J. Jeremias, era de grande intimidade e representava dependência. No livro dos Jubileus, obra pseudepígrafa do séc. II a.C, fala-se de um futuro quando todos seriam seus filhos. Numa ala do judaísmo somente os obedientes à Torah seriam chamado de filhos. Para Paulo, ao contrário, por meio de Cristo, que liberta da Lei, os da fé recebem o Espírito que garante a intimidade com o Abba.


Gl 4, 8-11: Por tudo isso, eles não poderiam voltar à escravidão da Lei, porque antes eram escravos de seres celestes (estoicheîa) pela idoloatria, e não poderiam se submeter a eles novamente por intermédio da Lei, para observar meses, tempos fixos e anos (4,8-10). Essa adesão à Lei deixa Paulo preocupado, a ponto de temer ter se fadigado inutilmente (v.11).

4. Gl 4, 12-31: apelo e exemplo pessoal de liberdade e prova bíblica


Neste bloco ele recorre a um clamor cheio de emoção e sensibilidade para mostrar quem realmente se preocupava e tinha boas intenções. Usando um verbo no imperativo (gínesthe) ele suplica que os gálatas adotem a mesma atitude dele com relação a Torah, pois ele mesmo já havia se tornado como eles depois de sua chamada, como demonstrou no cap. 2 (v.12); esse apelo faz eco com 1 Co 11,1; 1 Ts 1,6; Fl 3,17, onde ele se apresenta para ser imitado. Paulo lembra emocionado a ocasião quando pela primeira vez os anunciou o evangelho (Cf. At 16,6), por causa de uma enfermidade. A rejeição dos doentes era comum na Antiguidade. No seu livrinho, J. Bortolini fala da prática de cuspir no chão para “fechar o corpo” ou isolar a doença. Contudo, Paulo mostra como eles receberam-no bem, mesmo doente, como se fosse um anjo (mensageiro) de Deus ou o próprio Cristo (4,12-14). A aceitação inicial, segundo o apóstolo, foi tão boa que seriam capazes de arrancar os próprios olhos para os dar, porque os seus estavam adoentados. Essa expressão foi uma hipérbole, mas serviu para mostrar como antes eles lhe respeitavam e amavam-no (v.15). Assim ele pergunta: “será que depois disso tudo nos tornamos inimigos, por ter falado a verdade?”. Ou seja, a mesma pregação que serviu para tamanha afeição entre eles e Paulo, agora é motivo para serem inimigos, porque outro evangelho está sendo pregado. Paulo tenta abrir os olhos deles, pois as intenções dos seus adversários, que ele vem criticando desde o capitulo 2, não são louváveis e possuem aparente zelo, mas não é verdadeiro, pois é ele quem realmente sofre de preocupação por eles (4,17-18). E para expressar dramaticamente essa preocupação ele faz o contraste entre a preocupação passageira dos infiltrados de fora e as suas dores de parto. Enquanto aqueles somente demonstram zelo quando estavam entre eles, e mais adiante dirá ser um zelo hipócrita (Gl 6, 12-13), Paulo sente pela segunda vez dores de aparto, por se afastarem do que ele havia pregado. Como os seus ouvintes já estavam se deixando levar pela pregação da observância da Lei, e isso era o mesmo que anular a sacrifício de Cristo, dolorosamente seria preciso gerá-los outra vez, ou seja, levá-los novamente ao evangelho da liberdade. Para Paulo essa escolha dos gálatas era tão séria a ponto do apóstolo usar essa metáfora (v. 19). Assim, poderiam escolher àquele que realmente se preocupa de maneira solícita e genuína com eles, demonstrando verdadeiro cuidado, ou aos intrusos que chegaram depois impondo observâncias legalistas. A sua vontade era estar lá para pessoalmente fazer um defesa pessoal (v.20).


Ao falar de dores de parto, talvez, Paulo foi inspirado para fazer outro midrash, que ele mesmo chama de alegoria (4,24), com a história do nascimento de Isaque e Ismael. Aquele filho da promessa, gerado por Sara, e este filho da escrava Agar. Segundo J. D. Crossan, Paulo na verdade estava respondendo aos seus adversários que diziam ser os filhos de Abraão ligados às tradições do Sinai. Somente os descendentes de Abraão estiveram presentes na aliança do Sinal com Moisés, ou melhor, os verdadeiros descendentes da promessa (Sara/ Isaque) estiveram no Sinai, na aliança feita com Moisés. Paulo responde a isso invertendo a ordem, chegando a conclusões diferentes. Ele diz que do monte Sinai não são os descendentes de Sara, mas sim os da escrava, pois esse elevado fica na Arábia, terra dos descendentes de Ismael (4,25) e ela corresponde à Jerusalém agora, isso porque talvez seus adversários devessem identificar a atual Jerusalém como o monte Sinai, o monte da aliança mosaica. Na lógica de Paulo, essa identificação pode ser preservada, mas sabendo que o Sinai representa Agar e não Sara. Partindo dessa virada argumentativa ele faz a diferença das duas alianças. A do mento Sinai, Agar, vem da carne, do erro de Abraão e é escrava e gera filhos para escravidão, mas os da promessa são os da livre, consequêntemente são livres também. E ao falar de Sara que era estéril, Paulo cita Is 54, 1 (LXX) para expressar a alegria dela por ter o filho. Essa é a mãe dos pertencentes à fé, assim como Abraão é o pai. A Jerusalém ligada ao Sinai é escrava como sua representante, mas a Jerusalém celestial é livre, ou seja, a Jerusalém dos descendentes de Sara. Assim há o seguinte contraste: Agar = Sinai = Jerusalém terrestre = escravidão (os da Lei) // Sara = Jerusalém celeste = liberdade (os da fé). Por isso, eles, por causa de Cristo, são os filhos da promessa. Nas tradições hebraicas como Gênesis Rabá e no Targum palestinense existe a imagem de certa luta de Ismael contra Isaque, ou perseguições, como está acontecendo agora com os filhos da promessa, tradição ressoada em Gl 4,29.
E, se os adversários de Paulo querem ser submissos à Lei, que são os filhos de Agar, os gálatas deveriam fazer como Gn 21, 10 diz: expulsar a escrava e seu filho, pois o filho da escrava não poderá ser herdeiro e não pode ficar com o filho da livre (v. 30). Paulo aqui vira a mesa usando livremente alguns textos, cortando-os de seus contextos e costurando-os na sua própria lógica. Em Qumran havia o método pesher, que utilizava vários textos, às vezes para interpretar outro texto, aplicando-os escatologicamente ao contexto da comunidade (ex. 11QMelquidec). Toda a argumentação de Paulo sobre Agar e Sara resume-se no verso 31: “... não somos filhos de uma escrava, somos filhos da mulher livre”. Essa conclusão servirá de eixo transitório para a continuação de suas argumentações sobre um assunto exigido pelos intrusos na comunidade, a circuncisão (5, 1-12).

5. Gl 5, 1-12: Reafirmação da liberdade em Cristo e a relativização da circuncisão

Em Gl 5, 1-12, Paulo afirma novamente: “é para liberdade que Cristo nos libertou” (v.1). Por isso, eles deveriam permanecer nessa liberdade, e não serem levados para escravidão da lei pelos ensinos legalistas dos adversários de Paulo. Ele já havia demonstrado claramente pela experiência do Espírito, na exegese de textos bíblicos e por sua própria experiência que não era mais necessário observar as exigências da Lei, por isso não precisavam se circuncidar, mas simplesmente estar em Cristo. Mas aqui ele coloca os gálatas num beco sem saída, pois sua posição teológica não era uma mera opção. Mesmo que soubessem que o sacrifício de Cristo era suficiente, mas mesmo assim se circuncidassem, estariam invalidando a entrega de Cristo (v.2), pois circuncidar significava ser justificado por suas obras, ou por suas próprias atitudes, invalidando a cruz (v.3). Era como cair ou sair da graça, ou seja, ser aceito, justificado ou salvo por capacidade ou méritos e não pela ação misericordiosa divina. Uma ideia lógica, pois se a obediência à Lei justifica o homem, então qual a necessidade de Cristo morrer ou da graça? No entanto, se alguém se circuncidar, precisará obedecer toda a Lei, coisa que não é possível (v.3).

Assim, ele se coloca com a comunidade entre os conduzidos pelo Espírito, O mesmo que garante a filiação e anima a esperança da justificação pela fé, e não por observâncias exteriores e legalistas (v.5). Por isso, ele pode relativizar a circuncisão, pois ser ou não circuncidado não tem valor algum. O que vale é a fé, que se faz ativa pelo amor (v.6). A fé é mais importante ou está no lugar da circuncisão ou qualquer ato externo da Lei ou de leis. No entanto, essa fé é operante. Ela gera ou se mostra em algo: no amor. Isso ele falará mais especificamente em alguns versículos posteriores.

Eles tinham começado bem como Paulo ensinara, mas a má influência do outro ou falso evangelho pregado pelos vindos de Jerusalém, o qual ordenava a observância de regras legais juntamente com a fé em Cristo, acabou atrapalhando a obediência a verdade que ele havia lhes pregado (v.7). Paulo diz que ainda é perseguido por não pregar a circuncisão, e se a pregasse não passaria pelo que passou, pois teria a aceitação dos judeus, mas isso acarretaria na eliminação do escândalo da Cruz, ou seja, de uma justificação fruto da maldição. Ele prefere ser perseguido ao invés de eliminar a cruz (v. 11).


Sua revolta toma um tom de sarcasmo: “seria bom se esses que vos perturbam se castrassem de uma vez” (v. 12). Já que se preocupavam tanto em cortar o prepúcio, fizessem logo toda a decapitação. É como se dissesse: “Se realmente é importante arrancar parte do corpo para ser aceito ou pertencer ao povo de Deus, então corte tudo, pois assim seria mais digno” – já que é para ser digno por ação própria torne-se um eunuco.


Nesta parte ele termina sua grande argumentação sobre a liberdade da Lei pelo sacrifício de Cristo. No entanto, essa liberdade tem seus parâmetros. Há uma postura adequada para os que vivem no Espírito e são justificados pela fé. Paulo no próximo bloco de Gálatas mostra que a liberdade da lei não é um instrumento para permissão do pecado ou vivência libertina, mas um passo para a vida no Espírito. E como seria essa vida no Espírito? Ele mostrará no próximo bloco de tipo parenético (Gl 5,13 – 6,10).


segunda-feira, 1 de novembro de 2010

“Reforma Protestante nossa de cada dia dá-nos hoje...”


Há 493 anos, na cidade de Wittemberg, Martin Lutero pregou suas 95 teses. Esse evento é conhecido como ponto inicial da chamada Reforma Protestante. Partindo da perspectiva triunfalista da história, Lutero é tratado como o grande divisor d’águas e herói do protestantismo, e todo o processo da reforma do séc. XVI é visto como uma verdadeira epopéia. Dessa forma, e como é comum nas nossas datações comemorativas, fazem do dia 31 de outubro um illud tempus (tempo sagrado, tempo originário ou tempo mítico) e da Alemanha um axis mundi (centro do mundo mítico), para usar os termos de Mircea Eliade, mitologizando o caso Wittemberg e a Reformada. Não quero desqualificar a participação do monge agostiniano, mas simplesmente sinalizar exatamente sua contribuição na história de longa duração para reforma da igreja cristã, que não começa e muito menos termina na Alemanha.

Para ser mais claro, o dia 31 de outubro, tratado como "grande acontecimento", foi como uma espuma na beira da praia precedida por ondas de idéias e movimentos religiosos da história da Igreja. Como bem disse Le Goff, para explicar a Nova História Cultural – uma reviravolta epistemológica na historiografia – “a Nova História mostra que esses ‘grandes acontecimentos’ são em geral apenas a nuvem – muitas vezes sangrentas – levantadas pelos verdadeiros acontecimentos sobrevindos antes desses, isto é, as mutações profundas da história”. Atrás de Lutero temos, por exemplo, os Goliardos, que carnavalizavam, como diria M. Bakhtin, a igreja oficial com indisciplinas e sátiras. Nas costas luteranas temos outros como Guilhermo de Ockham, que já dizia, bem antes de Lutero, que a moralidade do ser humano não depende da sua própria ação, mas da aceitação da vontade de Deus/graça de Deus que pode santificar antes que haja o arrependimento. Em seu “Brevilóquio Sobre o Princípio Tirânico”, Ockham, por incrível que pareça, já questionava o poder papal e sua tradição. Como ilustração, também, cabe aqui o caso de Orleans, em 1022 d.C, quando 14 clérigos da alta hierarquia foram queimados por questionarem a graça do batismo, a eucaristia, a remissão dos pecados mortais e outros pontos importantes do Cristianismo medievo. O que falar dos Cátaros, um grupo de “hereges” proclamadores da centralidade do Novo Testamento para experiência da fé? Não podemos esquecer também dos Valdenses que deixariam qualquer luterano boquiaberto em relação à valorização das Escrituras. Devemos lembrar também dos Místicos – dos quais Lutero foi grandemente devedor – com suas regras e direta relação com o Deus da Bíblia. Na mesma lista temos Wycliffe, Huss e Savonarola que dispensam comentários.

Lutero foi uma ponta do iceberg, favorecido por contextos social, cultural, econômico e religioso propícios para o desencadeamento de ondas transformadoras iniciadas na Europa e expandidas para todo o mundo, criando não somente novos cristianismos (se assim posso dizer), mas também outras formas de pensar a vida e o homem na arte, na política, na economia etc.

Se em Lutero não temos o início da Reforma, muito menos encontramos nele o fim. O a posteriori do dia 31 contribuiu para a formulação do processo da Sola Scriptura, Sola Fides, Solus Christus, Sola Gratia e Soli Deo Gloria. Depois de 1517 a história da Igreja Cristã também foi presenteada com grupos de alas mais radicais e revolucionárias, como, por exemplo, os anabatistas, que inquestionavelmente continuaram o processo reformador.

Minha intenção com esse brevíssimo post não é negar o evento “Lutero”, mas colocá-lo no seu devido lugar, como um momento na linha histórica, muito grande por sinal, que ainda não tem o seu ponto final, pois a proposição de Gisbertus Voetius (1589-1676) “Ecclesia Reformata et Semper Reformanda Est” está muito viva, mesmo que fora de seu contexto, e deve ser levada até as últimas consequências.

Por isso, nós também estamos no bojo do Semper Reformanda Est, porque o dia 31 de outubro de 1517 e os séculos posteriores não foram o télos (fim/finalidade) do processo. Existe ainda muita covardia em voltar às Escrituras por medo de perder o poder sobre as massas piedosas. Insiste entre nós a negação, em vários contextos, da segurança unicamente na graça, por causa da presença de diversos tipos de legalismos. Encontramos ali e acolá artifícios fracos ladeando a fé. Ainda se preservam, em muitos níveis, objetos e rudimentos além do Cristo. E vários que canalizam a glória para si, utilizando os mais ardis artifícios do mundo evangélico. Exatamente por essas coisas sou cônscio de que os desafios ainda estão bem vivos e a Reforma em andamento.