Omitir
é deixar de agir ou se furtar da denúncia por conveniência ou insensibilidade.
É relativizar ou justificar com o silêncio quando urge a necessidade da
Palavra. É legitimar com a naturalização ou despreocupação relações e fenômenos
historicamente estabelecidos, como se não houvesse causas identificáveis e
passíveis de enfrentamento. A omissão é, então, o não profético, a
“acriticidade” cínica.
A
falta de empatia, o medo da exposição, a cegueira ideológica e tudo o que
contribui para a inércia em tempos quando se exige o movimento, são
instrumentos eficazes e perigosos na construção da cultura da omissão, cuja
maior e mais terrível consequência é nos tornar coparticipantes, direta ou
indiretamente, da barbárie. Por isso, também são nossos os oitenta tiros
disparados contra aquela família no RJ, traumatizando pelo resto da vida os
sobreviventes e matando o pai de família Evaldo Rosa. São tiros ensurdecedores
da silenciosa omissão.
Convenientemente,
permitimos a sacralização do símbolo da morte. Em uma nação onde só em 2017
mais de 59000 foram vítimas de assassinatos (uma a cada 9 minutos), a arma
deveria ser vista como sinal de necessária vergonha e não tornada projeção
eleitoral. Em vez de arrancar sorrisos jocosos, o instrumento da morte deveria
ser lembrado somente quando seu uso fosse a última possibilidade – não se
festeja a violência, não se ovaciona o mal. Contudo, mesmo quando crianças
posaram, sob a motivação de adultos-monstros, seus dedinhos com sinal de armas
nós rimos e nos omitimos. O Brasil achou graça, votou, elegeu e coroou o
discurso da violência com o faixa da presidência.
Não
me interprete incorretamente. Eu sei que a desgraça e morte não foram
inventadas com os “oitenta tiros”. Por outro lado, quando a realidade é de
guerra, devem-se promover narrativas de paz. Em espaços nos quais a linguagem é
belicosa, o dicionário da sensibilidade e empatia precisa ser usado. Em tempos
de desumanização e desrespeito com a vida, é necessário popularizar-se o
discurso da solidariedade e do cuidado. Em contextos nos quais a injustiça
materializa-se em mortes de inocentes, ao invés de legitimar a violência do
Estado em nome do combate aos seus causadores, faz-se urgente pensar
estratégias e ações cujo caminho não percorra a mesma lógica daquilo contra o
que aparentemente se combate. É simples: não se vence a violência com outro
tipo de violência, mas com gestão justa, inteligência, prevenção e políticas
públicas. A cultura da morte ficou nua aos nossos olhos e fomos embriagados
pela omissão.
Os
oitenta tiros cumpriram a vocação do racismo estruturante e estrutural. Mataram
sem perguntar, porque ser negro nesse país significa torna-se setenta vezes
mais matável. E mesmo assim, seguimos negando a existência dessa histórica
chaga. Obstinadamente, insistimos em fingir serem inexistentes as estatísticas
e experiências cotidianas e continuamos, em passos largos, corroborando com a
naturalização da injustiça racial. Temo, porque a proteção dos bens e dos
“cidadãos de bem”, guiada pela estratégia do “atirar para depois averiguar”,
fará dos “já matáveis” potenciais candidatos a defensores mortos de sua
inocência. Por isso, e tantas outras coisas, ao ouvirmos falar e acompanharmos
a defesa do “excludente de ilicitude” sem críticas ou posicionamentos colocamos
juntos nossos dedos no gatilho dos oitenta tiros. Em nossa nação, a cultura do
extermínio é legitimada pelo Estado, aplaudida pelo povo, santificada pela fé
na brutalidade, justificada pela apologia da família, tratada como inevitável
pelos discursos simplistas e alimentada pelo ódio. Tudo sob nossos narizes,
olhos e ouvidos omissos e pouco críticos.
Esses
são os oitenta tiros da nossa omissão. Nosso pão amargo de cada dia. Contra o
qual oramos: livra-nos do mal. Amém!
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