sexta-feira, 12 de abril de 2019

80 tiros da nossa omissão!



Omitir é deixar de agir ou se furtar da denúncia por conveniência ou insensibilidade. É relativizar ou justificar com o silêncio quando urge a necessidade da Palavra. É legitimar com a naturalização ou despreocupação relações e fenômenos historicamente estabelecidos, como se não houvesse causas identificáveis e passíveis de enfrentamento. A omissão é, então, o não profético, a “acriticidade” cínica.

A falta de empatia, o medo da exposição, a cegueira ideológica e tudo o que contribui para a inércia em tempos quando se exige o movimento, são instrumentos eficazes e perigosos na construção da cultura da omissão, cuja maior e mais terrível consequência é nos tornar coparticipantes, direta ou indiretamente, da barbárie. Por isso, também são nossos os oitenta tiros disparados contra aquela família no RJ, traumatizando pelo resto da vida os sobreviventes e matando o pai de família Evaldo Rosa. São tiros ensurdecedores da silenciosa omissão.

Convenientemente, permitimos a sacralização do símbolo da morte. Em uma nação onde só em 2017 mais de 59000 foram vítimas de assassinatos (uma a cada 9 minutos), a arma deveria ser vista como sinal de necessária vergonha e não tornada projeção eleitoral. Em vez de arrancar sorrisos jocosos, o instrumento da morte deveria ser lembrado somente quando seu uso fosse a última possibilidade – não se festeja a violência, não se ovaciona o mal. Contudo, mesmo quando crianças posaram, sob a motivação de adultos-monstros, seus dedinhos com sinal de armas nós rimos e nos omitimos. O Brasil achou graça, votou, elegeu e coroou o discurso da violência com o faixa da presidência.

Não me interprete incorretamente. Eu sei que a desgraça e morte não foram inventadas com os “oitenta tiros”. Por outro lado, quando a realidade é de guerra, devem-se promover narrativas de paz. Em espaços nos quais a linguagem é belicosa, o dicionário da sensibilidade e empatia precisa ser usado. Em tempos de desumanização e desrespeito com a vida, é necessário popularizar-se o discurso da solidariedade e do cuidado. Em contextos nos quais a injustiça materializa-se em mortes de inocentes, ao invés de legitimar a violência do Estado em nome do combate aos seus causadores, faz-se urgente pensar estratégias e ações cujo caminho não percorra a mesma lógica daquilo contra o que aparentemente se combate. É simples: não se vence a violência com outro tipo de violência, mas com gestão justa, inteligência, prevenção e políticas públicas. A cultura da morte ficou nua aos nossos olhos e fomos embriagados pela omissão.

Os oitenta tiros cumpriram a vocação do racismo estruturante e estrutural. Mataram sem perguntar, porque ser negro nesse país significa torna-se setenta vezes mais matável. E mesmo assim, seguimos negando a existência dessa histórica chaga. Obstinadamente, insistimos em fingir serem inexistentes as estatísticas e experiências cotidianas e continuamos, em passos largos, corroborando com a naturalização da injustiça racial. Temo, porque a proteção dos bens e dos “cidadãos de bem”, guiada pela estratégia do “atirar para depois averiguar”, fará dos “já matáveis” potenciais candidatos a defensores mortos de sua inocência. Por isso, e tantas outras coisas, ao ouvirmos falar e acompanharmos a defesa do “excludente de ilicitude” sem críticas ou posicionamentos colocamos juntos nossos dedos no gatilho dos oitenta tiros. Em nossa nação, a cultura do extermínio é legitimada pelo Estado, aplaudida pelo povo, santificada pela fé na brutalidade, justificada pela apologia da família, tratada como inevitável pelos discursos simplistas e alimentada pelo ódio. Tudo sob nossos narizes, olhos e ouvidos omissos e pouco críticos.

Esses são os oitenta tiros da nossa omissão. Nosso pão amargo de cada dia. Contra o qual oramos: livra-nos do mal. Amém!

Nenhum comentário:

Postar um comentário