É muito comum ouvirmos ali e acolá o uso do termo,
por vezes relaxadamente, “hermenêutica pós-moderna” ou preconceituosa
desqualificação do possível diálogo entre essa perspectiva e a hermenêutica
pentecostal. Parece-me que os principais ruídos surgem porque se acredita que os
métodos filhos da Modernidade, especialmente o gramatical-histórico, sempre
foram o lugar através do qual os pentecostais leram a bíblia. Então, farei
algumas ponderações:
1. O uso dos métodos histórico-gramatical e
histórico-crítico entram na história da hermenêutica pentecostal especialmente
quando a Assembleia de Deus dos EUA é integrada ao National Association of
Evangelical (NAE), cujos traços são neo-ortodoxos e barthianos, especialmente
pelo uso construtivo e piedoso das ferramentas exegéticas modernas, um tipo de
“criticismo moderado”. Antes disso, havia um vácuo no movimento pentecostal em
relação à discussão sobre a maneira mais plausível para leitura do texto.
Inicialmente, encontramos entre os pentecostais à leitura bíblica dos
movimentos de santidade, conhecida com “Bible Reading Method e perspectivas
mais pragmáticas de leitura. Stronstad chama esse período inicial de
“hermenêutica pragmática”, Oliverio trata como “Original Clássica” e o teólogo
pentecostal coreano Chang-Soung Le nomeia-a de “pré-moderna, pré-crítica e
continuísta”. A hermenêutica de Parham e Brumback, segundo este último autor,
era contrária à Alta Crítica e continuísta, na contra mão do cessacionismo.
Nesse sistema interpretativo, constrói-se a inter-relação das três
experiências: (a) a experiência de Jesus e seus discípulos, anterior ao texto
bíblico; (b) a experiência escrita no texto; (c) a experiência das comunidades
contemporâneas. Por isso, antes das primeiras discussões entre os acadêmicos
pentecostais, a reexperiência carismáticas era o lugar hermenêutico.
2. Os pentecostais eram acusados pelos evangélicos
dependentes dos métodos desenvolvidos e usados em horizonte neo-ortodoxo de
irresponsável alegorização e espiritualização dos textos. G. Fee tenta resolver
essa querela defendendo o sentido histórico e o uso da crítica do gênero
literário para a leitura pentecostal – tal trilha metodológica levará Fee a ler
Atos, por exemplo, como livro histórico, não didático e pouco apropriado para a
construção teológica. W. Menzie e R. Menzie, por sua vez, defenderão o uso das
críticas da redação e das fontes do método histórico-crítico. Robert Menzie,
por exemplo, seguirá os neo-evangélicos (neo-ortodoxos) William W. Klein, Craig
L. Blomberg e Robert L. Hubbard Jr., os quais estão inseridos no “criticismo
moderado”. H. Ervin, na esteira do uso dos métodos históricos e críticos, como
a NAE fazia, acrescentará a fenomenologia. No Brasil, popularizaram-se as obras
de Stronstad e Craig Keener que defendem o uso do método histórico, mas numa
perspectiva menos crítica. Contudo, o próprio Stronstad admite, como fez Ervin
e outros, a impossibilidade da anulação dos pressupostos, para o leitor em
geral, e da experiência carismática, para o leitor pentecostal. Contudo, como
são devedores dos métodos racionalistas modernos, como eram os evangélicos da
NAE, eles defendem a leitura histórica do texto, a intenção do autor real e o
sentido gramatical.
3. Como se percebe, os métodos históricos
(gramatical ou crítico, moderados ou não) não devem ser tratados como “os”
verdadeiros caminhos da hermenêutica pentecostal, mas parte de sua história,
especialmente por suas relações como os reformados e evangélicos. Como no
Brasil livros e textos popularizados estavam e estão sob essa égide, fica a
impressão de que o MHG representa “a” hermenêutica pentecostal.
4. É preciso diferenciar pedagogicamente os termos
“hermenêutica” e “exegese”. O primeiro se refere à teoria do sentido, às
discussões epistemológicas e ao processo de compreender e explicar o texto.
Como ciência do sentido, a hermenêutica é mais filosofia da interpretação do
que ação interpretativa. Exegese, por sua vez, seria prática e caminho
metodológicos, o ato de interpretar. Dessa forma, os métodos de interpretação
são filhos e encarnam as epistemologias e perspectivas hermenêuticas. Por
exemplo, o MHG e MHC são ferramentas com pressupostos próprios do paradigma da
Modernidade racionalista. Por isso, pretendem anular as influências da
experiência do leitor ou da tradição para acessarem direta e objetivamente o
sentido original dos textos. Esse triunfalismo da razão é o que alimenta o
lugar epistemológico desses métodos. Por isso, esses caminhos geraram leituras
cessacionistas e críticos. Por que ao usá-los os pentecostais romperam o
criticismo liberal e o fundamentalismo cessacionista evangélico? Simples, por
conta da experiência pneumático-carismática dos leitores e biblistas
pentecostais. Stronstad, defensor do método HG, ao falar da melhor leitura de
Atos seguida pelos pentecostais, o que significa vencer o cessacionismo e
aceitar a ação carismática de Deus, admite: “isso é principalmente porque os
pentecostais trazem um pressuposto experiencial válido para a interpretação de
Atos e não porque fazem uma exegese histórico-gramatical superior de Atos”.
5. O que caracteriza a leitura pentecostal não é o
método “a” ou “b” (caminho ou instrumentos usados para interpretação), mas a
maneira como se aproxima do texto e os resultados dessa apropriação. Antes de
qualquer coisa, a perspectiva da “(re)experiência” é o que caracteriza a
interpretação pentecostal: os carismas experienciados nas comunidades cristãs
originárias (glossolalia, batismo com o Espírito Santo, profecia, empoderamento
do Espírito etc.), especialmente em Atos, são os mesmos das comunidades
pentecostais contemporâneas. E, consequentemente, como mesmo admitem alguns
exegetas pentecostais histórico-gramaticais, é exatamente essa experiência que
permite ao fiel pentecostal ser capaz de perceber no texto a realidade dos
carismas. Por isso, precisamos admitir que a experiência carismática precede a
leitura pentecostal dos textos bíblicos. E mais do que isso, é necessário levar
em consideração as implicações disso para a identidade teológica do (s)
pentecostalismo (s) e sua hermenêutica.
5.1. Os métodos são instrumentos e estão sob a orientação de pressupostos
epistemológicos. Mesmo que os biblistas pentecostais leiam a Bíblia de maneira
não cessacionaista ao aplicar os métodos HG ou HC, a perspectiva hermenêutica
desses métodos é, antes de qualquer coisa, racionalista e historicista. Eles
são devedores do paradigma do sujeito cujo projeto é eliminar todas as
interferências subjetivas e experienciais no processo interpretativo. Logo, uma
pergunta precisa ser feita: é possível usar outros caminhos exegéticos que
sejam mais adequados à identidade da experiência pentecostal sem ser uma
simples alegorização, espiritualização, polissemia infinita ou violação não
exegética do texto?
5.2. Um caminho foi pensado por John Christopher
Thomas e K. Archer. A partir do modelo de At 15, segue-se a relação dialética
entre Espírito, texto e comunidade. Assim, a experiência não somente
individual, mas afinada e analisada em comunidade possibilita iluminar o texto,
o qual, na mesma mão, serve como fonte para criticar e perscrutar a
experiência. Consequentemente, a experiência é admitida e modela uma leitura
não neutra e não racionalista do texto.
5.3. Além dessa intuição, várias metodologias podem
ser usadas para o acesso ao texto, inclusive as ferramentas do MHG ou MHC.
Contudo, os instrumentos tais quais narratologia, semiótica, as análises
literárias, a estética da recepção, a nova retórica, a análise do discurso etc.
podem ser instrumentos que rompem com as perspectivas metodológicas da
Modernidade, sem desqualifica-las ou excluírem totalmente, mas podem ajudar na
formulação de perguntas e caminhos interpretativos mais adequados aos
horizontes hermenêuticos pentecostais. Como método de interpretação, e mesmo
que sejam conhecidos como pós-metafísicos ou “pós-modernos”, eles servem para
enclausurar os múltiplos sentidos do texto – ou seja, não permitem qualquer
interpretação ou não validam propostas não plausíveis –, mas, ao mesmo tempo,
valorizam ou consideram, desde suas bases epistemológicas, o que é
importantíssimo para a hermenêutica e teologia pentecostais: a não neutralidade
da experiência do fiel. Assim como Fee e outros acessaram as ferramentas
modernas para resolverem seu desafios de sistematização e defesa da fé
pentecostal, hoje há outros e outras biblistas pentecostais dialogando com as
demandas impostas pela contemporaneidade, a qual tem nos mostrado a derrocada
do paradigma no sujeito moderno-iluminista.
6. Por fim, seriam erros históricos (a) tratar a
hermenêutica pentecostal como sinônimo de MHG (ou MHC), (b) defender a ideia
moderno-racionalista da intenção do autor como a principal preocupação da
leitura pentecostal, (c) dizer que usar os métodos não metafísicos
(pós-modernos) é defender a possibilidade de qualquer sentido no texto ou ser
relativista (e, para alguns, “liberal”).
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