quarta-feira, 27 de março de 2019

Pentecostalismo e Método Gramatical-histórico: vamos com calma...



É muito comum ouvirmos ali e acolá o uso do termo, por vezes relaxadamente, “hermenêutica pós-moderna” ou preconceituosa desqualificação do possível diálogo entre essa perspectiva e a hermenêutica pentecostal. Parece-me que os principais ruídos surgem porque se acredita que os métodos filhos da Modernidade, especialmente o gramatical-histórico, sempre foram o lugar através do qual os pentecostais leram a bíblia. Então, farei algumas ponderações:
1. O uso dos métodos histórico-gramatical e histórico-crítico entram na história da hermenêutica pentecostal especialmente quando a Assembleia de Deus dos EUA é integrada ao National Association of Evangelical (NAE), cujos traços são neo-ortodoxos e barthianos, especialmente pelo uso construtivo e piedoso das ferramentas exegéticas modernas, um tipo de “criticismo moderado”. Antes disso, havia um vácuo no movimento pentecostal em relação à discussão sobre a maneira mais plausível para leitura do texto. Inicialmente, encontramos entre os pentecostais à leitura bíblica dos movimentos de santidade, conhecida com “Bible Reading Method e perspectivas mais pragmáticas de leitura. Stronstad chama esse período inicial de “hermenêutica pragmática”, Oliverio trata como “Original Clássica” e o teólogo pentecostal coreano Chang-Soung Le nomeia-a de “pré-moderna, pré-crítica e continuísta”. A hermenêutica de Parham e Brumback, segundo este último autor, era contrária à Alta Crítica e continuísta, na contra mão do cessacionismo. Nesse sistema interpretativo, constrói-se a inter-relação das três experiências: (a) a experiência de Jesus e seus discípulos, anterior ao texto bíblico; (b) a experiência escrita no texto; (c) a experiência das comunidades contemporâneas. Por isso, antes das primeiras discussões entre os acadêmicos pentecostais, a reexperiência carismáticas era o lugar hermenêutico.
2. Os pentecostais eram acusados pelos evangélicos dependentes dos métodos desenvolvidos e usados em horizonte neo-ortodoxo de irresponsável alegorização e espiritualização dos textos. G. Fee tenta resolver essa querela defendendo o sentido histórico e o uso da crítica do gênero literário para a leitura pentecostal – tal trilha metodológica levará Fee a ler Atos, por exemplo, como livro histórico, não didático e pouco apropriado para a construção teológica. W. Menzie e R. Menzie, por sua vez, defenderão o uso das críticas da redação e das fontes do método histórico-crítico. Robert Menzie, por exemplo, seguirá os neo-evangélicos (neo-ortodoxos) William W. Klein, Craig L. Blomberg e Robert L. Hubbard Jr., os quais estão inseridos no “criticismo moderado”. H. Ervin, na esteira do uso dos métodos históricos e críticos, como a NAE fazia, acrescentará a fenomenologia. No Brasil, popularizaram-se as obras de Stronstad e Craig Keener que defendem o uso do método histórico, mas numa perspectiva menos crítica. Contudo, o próprio Stronstad admite, como fez Ervin e outros, a impossibilidade da anulação dos pressupostos, para o leitor em geral, e da experiência carismática, para o leitor pentecostal. Contudo, como são devedores dos métodos racionalistas modernos, como eram os evangélicos da NAE, eles defendem a leitura histórica do texto, a intenção do autor real e o sentido gramatical.
3. Como se percebe, os métodos históricos (gramatical ou crítico, moderados ou não) não devem ser tratados como “os” verdadeiros caminhos da hermenêutica pentecostal, mas parte de sua história, especialmente por suas relações como os reformados e evangélicos. Como no Brasil livros e textos popularizados estavam e estão sob essa égide, fica a impressão de que o MHG representa “a” hermenêutica pentecostal.
4. É preciso diferenciar pedagogicamente os termos “hermenêutica” e “exegese”. O primeiro se refere à teoria do sentido, às discussões epistemológicas e ao processo de compreender e explicar o texto. Como ciência do sentido, a hermenêutica é mais filosofia da interpretação do que ação interpretativa. Exegese, por sua vez, seria prática e caminho metodológicos, o ato de interpretar. Dessa forma, os métodos de interpretação são filhos e encarnam as epistemologias e perspectivas hermenêuticas. Por exemplo, o MHG e MHC são ferramentas com pressupostos próprios do paradigma da Modernidade racionalista. Por isso, pretendem anular as influências da experiência do leitor ou da tradição para acessarem direta e objetivamente o sentido original dos textos. Esse triunfalismo da razão é o que alimenta o lugar epistemológico desses métodos. Por isso, esses caminhos geraram leituras cessacionistas e críticos. Por que ao usá-los os pentecostais romperam o criticismo liberal e o fundamentalismo cessacionista evangélico? Simples, por conta da experiência pneumático-carismática dos leitores e biblistas pentecostais. Stronstad, defensor do método HG, ao falar da melhor leitura de Atos seguida pelos pentecostais, o que significa vencer o cessacionismo e aceitar a ação carismática de Deus, admite: “isso é principalmente porque os pentecostais trazem um pressuposto experiencial válido para a interpretação de Atos e não porque fazem uma exegese histórico-gramatical superior de Atos”.
5. O que caracteriza a leitura pentecostal não é o método “a” ou “b” (caminho ou instrumentos usados para interpretação), mas a maneira como se aproxima do texto e os resultados dessa apropriação. Antes de qualquer coisa, a perspectiva da “(re)experiência” é o que caracteriza a interpretação pentecostal: os carismas experienciados nas comunidades cristãs originárias (glossolalia, batismo com o Espírito Santo, profecia, empoderamento do Espírito etc.), especialmente em Atos, são os mesmos das comunidades pentecostais contemporâneas. E, consequentemente, como mesmo admitem alguns exegetas pentecostais histórico-gramaticais, é exatamente essa experiência que permite ao fiel pentecostal ser capaz de perceber no texto a realidade dos carismas. Por isso, precisamos admitir que a experiência carismática precede a leitura pentecostal dos textos bíblicos. E mais do que isso, é necessário levar em consideração as implicações disso para a identidade teológica do (s) pentecostalismo (s) e sua hermenêutica.
5.1. Os métodos são instrumentos e estão sob a orientação de pressupostos epistemológicos. Mesmo que os biblistas pentecostais leiam a Bíblia de maneira não cessacionaista ao aplicar os métodos HG ou HC, a perspectiva hermenêutica desses métodos é, antes de qualquer coisa, racionalista e historicista. Eles são devedores do paradigma do sujeito cujo projeto é eliminar todas as interferências subjetivas e experienciais no processo interpretativo. Logo, uma pergunta precisa ser feita: é possível usar outros caminhos exegéticos que sejam mais adequados à identidade da experiência pentecostal sem ser uma simples alegorização, espiritualização, polissemia infinita ou violação não exegética do texto?
5.2. Um caminho foi pensado por John Christopher Thomas e K. Archer. A partir do modelo de At 15, segue-se a relação dialética entre Espírito, texto e comunidade. Assim, a experiência não somente individual, mas afinada e analisada em comunidade possibilita iluminar o texto, o qual, na mesma mão, serve como fonte para criticar e perscrutar a experiência. Consequentemente, a experiência é admitida e modela uma leitura não neutra e não racionalista do texto.
5.3. Além dessa intuição, várias metodologias podem ser usadas para o acesso ao texto, inclusive as ferramentas do MHG ou MHC. Contudo, os instrumentos tais quais narratologia, semiótica, as análises literárias, a estética da recepção, a nova retórica, a análise do discurso etc. podem ser instrumentos que rompem com as perspectivas metodológicas da Modernidade, sem desqualifica-las ou excluírem totalmente, mas podem ajudar na formulação de perguntas e caminhos interpretativos mais adequados aos horizontes hermenêuticos pentecostais. Como método de interpretação, e mesmo que sejam conhecidos como pós-metafísicos ou “pós-modernos”, eles servem para enclausurar os múltiplos sentidos do texto – ou seja, não permitem qualquer interpretação ou não validam propostas não plausíveis –, mas, ao mesmo tempo, valorizam ou consideram, desde suas bases epistemológicas, o que é importantíssimo para a hermenêutica e teologia pentecostais: a não neutralidade da experiência do fiel. Assim como Fee e outros acessaram as ferramentas modernas para resolverem seu desafios de sistematização e defesa da fé pentecostal, hoje há outros e outras biblistas pentecostais dialogando com as demandas impostas pela contemporaneidade, a qual tem nos mostrado a derrocada do paradigma no sujeito moderno-iluminista.
6. Por fim, seriam erros históricos (a) tratar a hermenêutica pentecostal como sinônimo de MHG (ou MHC), (b) defender a ideia moderno-racionalista da intenção do autor como a principal preocupação da leitura pentecostal, (c) dizer que usar os métodos não metafísicos (pós-modernos) é defender a possibilidade de qualquer sentido no texto ou ser relativista (e, para alguns, “liberal”).




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