No Evangelho de João, durante a última ceia, o
salvador do mundo, o Verbo encarnado, sob olhares estupefatos e confusos, lavou
os pés de seus discípulos. Na obra “Washing Peter's Feet” (1851-1856), o pintor
inglês Ford Madox Brown (1821–1893) sensivelmente encarnou a cena em óleo sobre
tela. Na pintura, vemos Jesus de joelhos e ao lado, jogadas e esquecidas, as
sandálias parcas de Pedro. As cores são sóbrias. No centro, com vestes cinza, o
mestre enxuga o pé destro pedrino com a toalha
amarrada em sua cintura. Mesmo em destaque mais claro, o pano torna-se extensão
do corpo fazendo de Jesus parte do ato. É o mestre inteiro cobrindo dedos e
calcanhar de seu impetuoso discípulo. Todos estão em silêncio e desconsertados.
A fala precipitada do impulsivo Simão deu lugar ao compenetrado olhar absorto
em direção às mãos divinas molhadas com a água, as quais sustentam seus pés
envoltos em pano. Há contrição na cena. O pescoço do discípulo dobrado e rígido
aperta sua barba branca ao peito, enrugando-lhe a testa, com a mesma força que
suas mãos se entrelaçam. Pedro está totalmente rendido, não pode fazer
absolutamente nada. Resta-lhe somente ser consumido pela pedagógica humildade
do mestre. Ao fundo estão os outros personagens da narrativa evangélica.
Imóveis, todos olham as mãos de Jesus. Os restos da ceia ainda estão na mesa.
No canto, talvez com os pés já doutrinados, Judas amarra suas alparcas. Ao lado
do seu braço descansa o saquinho com as moedas do conluio, colocando lado a lado
amor e traição, desejo de poder e serviço, ganância e desprendimento, morte e
ressurreição.
Ao mesmo tempo
em que Pedro se encolhe, apequenando-se, seus companheiros de seguimento
parecem não acreditar no que veem. Entre eles, quase oculto, alguém segura a
cabeça como se estivesse contemplando algo assustador. Talvez, seja João ao
lembrar-se envergonhado do pedido agora claramente ridículo. Enquanto ele e seu
irmão desejam assentar-se à direita e esquerda da glória, Jesus bebe o cálice
intragável da encarnação, serviço e humildade. No mesmo plano, outros se
consolam do choque e escândalo. À direita, boquiaberto, um dos discípulos
parece ser absorvido por aquela visão. Estão todos acuados e não há como
escapar de Jesus: “assim façais vós também”. Com a áurea na cabeça do Senhor,
Madox Brown expõe o paradoxo do lava-pés: mestre serve, Deus esvazia-se, o maior
se dobra, eternidade encarna-se, a força se fragiliza. A reação dos personagens
da pintura de século XIX revela o espanto do novo caminho instaurado, do qual a
comunidade de Jesus não pode se furtar.
A partir
da memória do messias lava-pés, no enquadramento da semana santa, devemos
trocar todo projeto de poder, qualquer arrogância institucional, expressão de
superioridade, falsa piedade ou preconceito excluidor por bacia, água e pano.
(imagem: Ford Madox Brown, Jesus Washing Peter’s Feet,
séc. XIX)
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