quinta-feira, 18 de abril de 2019

A QUINTA-FEIRA SANTA: LAVA-PÉS






No Evangelho de João, durante a última ceia, o salvador do mundo, o Verbo encarnado, sob olhares estupefatos e confusos, lavou os pés de seus discípulos. Na obra “Washing Peter's Feet” (1851-1856), o pintor inglês Ford Madox Brown (1821–1893) sensivelmente encarnou a cena em óleo sobre tela. Na pintura, vemos Jesus de joelhos e ao lado, jogadas e esquecidas, as sandálias parcas de Pedro. As cores são sóbrias. No centro, com vestes cinza, o mestre enxuga o pé destro pedrino com a toalha amarrada em sua cintura. Mesmo em destaque mais claro, o pano torna-se extensão do corpo fazendo de Jesus parte do ato. É o mestre inteiro cobrindo dedos e calcanhar de seu impetuoso discípulo. Todos estão em silêncio e desconsertados. A fala precipitada do impulsivo Simão deu lugar ao compenetrado olhar absorto em direção às mãos divinas molhadas com a água, as quais sustentam seus pés envoltos em pano. Há contrição na cena. O pescoço do discípulo dobrado e rígido aperta sua barba branca ao peito, enrugando-lhe a testa, com a mesma força  que suas mãos se entrelaçam. Pedro está totalmente rendido, não pode fazer absolutamente nada. Resta-lhe somente ser consumido pela pedagógica humildade do mestre. Ao fundo estão os outros personagens da narrativa evangélica. Imóveis, todos olham as mãos de Jesus. Os restos da ceia ainda estão na mesa. No canto, talvez com os pés já doutrinados, Judas amarra suas alparcas. Ao lado do seu braço descansa o saquinho com as moedas do conluio, colocando lado a lado amor e traição, desejo de poder e serviço, ganância e desprendimento, morte e ressurreição.

Ao mesmo tempo em que Pedro se encolhe, apequenando-se, seus companheiros de seguimento parecem não acreditar no que veem. Entre eles, quase oculto, alguém segura a cabeça como se estivesse contemplando algo assustador. Talvez, seja João ao lembrar-se envergonhado do pedido agora claramente ridículo. Enquanto ele e seu irmão desejam assentar-se à direita e esquerda da glória, Jesus bebe o cálice intragável da encarnação, serviço e humildade. No mesmo plano, outros se consolam do choque e escândalo. À direita, boquiaberto, um dos discípulos parece ser absorvido por aquela visão. Estão todos acuados e não há como escapar de Jesus: “assim façais vós também”. Com a áurea na cabeça do Senhor, Madox Brown expõe o paradoxo do lava-pés: mestre serve, Deus esvazia-se, o maior se dobra, eternidade encarna-se, a força se fragiliza. A reação dos personagens da pintura de século XIX revela o espanto do novo caminho instaurado, do qual a comunidade de Jesus não pode se furtar.

A partir da memória do messias lava-pés, no enquadramento da semana santa, devemos trocar todo projeto de poder, qualquer arrogância institucional, expressão de superioridade, falsa piedade ou preconceito excluidor por bacia, água e pano.

(imagem: Ford Madox Brown, Jesus Washing Peter’s Feet, séc. XIX)



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