segunda-feira, 20 de agosto de 2012

A Imaginação Apocalíptica

           No ano passado escrevi uma renha sobre a recém tradução de uma obra de John Collins.Quero postá-la aqui para aqueles e aquelas que não acessaram a revista Reflexus.


COLLINS, John J.  A imaginação apocalíptica. Uma introdução à literatura apocalíptica judaica. São Paulo: Paulus, 2010.

        O texto The Apocalipyptic Imagination, traduzido em 2010 como A Imaginação Apocalíptica, pode ser considerado um clássico entre os estudos da apocalíptica judaica. A edição usada para a versão em língua portuguesa é da Eerdmans (2º ed.), por isso o capítulo sobre Qumran é bem maior do que o da primeira edição. Como diz Collins, a pesquisa a respeito dos achados de Qumran, a partir de 1991, recebeu novos ares com a disponibilização completa do seu corpus literário. Para quem leu a primeira edição, publicada pela editora Crossroad, em 1984, como eu, rapidamente percebe, também, a diferença na última parte da tradução feita pela Paulus, pois deixa de ser um epílogo para tornar-se um capítulo com mais informações sobre a relação do imaginário da apocalíptica judaica com os Cristianismos das origens.

Mesmo visitando São Paulo há alguns anos a convite do grupo Oracula[1], e sendo digno de todas as honrarias, o autor deste importante livro, professor John J. Collins, ainda não é muito conhecido em nossas terras – para uma biografia mais completa do autor, ver meu post: http://kennerterra.blogspot.com/b/post-preview?token=83quRTkBAAA.6UA_pWdD-Fa6JkX3mgNXkA.K4d02x0s66d6I8z5x2qwqQ&postId=7089794791186716220&type=POST

Em Imaginação Apocalíptica, Collins perpassa todo o corpus literário da apocalíptica judaica. Por isso, o texto pode ser tratado como uma importante introdução a esse complexo mundo literário. Utilizando-se do método das religiões comparadas, ele mostra a formação do pensamento da apocalíptica judaica em diálogo com outras religiões do mundo Antigo, tornando o livro riquíssimo. 

Na primeira parte, Collins apresenta a história da pesquisa a respeito da apocalíptica judaica. Desta forma, insere o leitor no desenvolvimento da discussão. Seu objetivo nesta parte é apresentar conceitos que servirão para análise dos textos apocalípticos. Partindo dos resultados do Projeto de Gênero da Society of Biblical Literature, Collins traça algumas características formais do gênero apocalipse, a natureza de sua linguagem, a questão do contexto e a função desse tipo de literatura. Collins divide o gênero apocalipse em dois tipos: jornada sobrenatural [além-mundo] (Apocalipse de Sofonias, Testamento de Abraão, 3 Baruc etc.) e apocalipses históricos (Daniel, 4 Esdras, Jubileus etc.). Aquele é marcado por viagens sobrenaturais com maior interesse em especulações cosmológicas, enquanto este é caracterizado pela revisão da história. Na formação do gênero, o autor deixa claro que há uma combinação distintiva de elementos, os quais se encontram também em outras obras (p. 32-33). Por isso, neste ponto, Collins gasta um bom tempo para apresentar a matriz dessa literatura, a qual se encontra na literatura profética israelita, como bem defendeu Paul Hanson, mas não se esgota nela. O autor irlandês mostra como a cultura babilônica, persa e helênica também contribuíram para o surgimento e construção do imaginário religioso dos textos apocalípticos. No entanto, Collins é sensato ao afirmar a autonomia e criatividade na formação dos textos, mesmo que bebam de outras fontes (p. 44). Por isso, o novo produto é mais do que uma soma de fontes.

Após essa esclarecedora introdução, Collins apresenta a vasta literatura apocalíptica do judaísmo. Ele começando pela tradição de Enoque, uma obra compósita, formada por cinco livros, e muito importante para a formação das teologias dos Judaísmos antigos. Ele apresenta o pentateuco enoquita separadamente – guardando para o final do seu texto o livro das Similitudes de Enoque (ou Parábolas de Enoque) –, não  deixando de discutir a hipótese de um movimento ou grupo pressuposto por essa literatura. No mesmo capítulo, o autor produziu um apêndice, no qual apresenta o livro de Jubileus, que para ele foi concebido em um estágio pré-Qumrânico, assunto que discutirá na obra.  

Depois ele apresenta o livro de Daniel, aproximando-o à literatura do Mundo Antigo, especialmente à literatura persa. A exposição ao livro de Daniel precede o capítulo no qual Collins expõe criticamente dois gêneros: Oráculo e Testamento. Ele aqui utiliza o mesmo método das religiões comparadas para expor o Or. Sib. 3, o qual está na coleção dos doze livros que compõe os Oráculos Sibilinos (textos judaico-cristãos). Para os Testamentos, que segundo o autor estão intimamente relacionados aos apocalipses, Collins começa apresentando o Testamento de Moisés e, a partir daí, descreve os Testamentos dos Doze Patriarcas, uma obra compósita de caráter judaico, mas que recebeu reformulações cristãs.

Continuando sua obra, e preservando seu caráter formal de introdução a textos, Collins separa um capítulo para apresentar a literatura de Qumran. Para o autor, que segue a linha de muitos outros pesquisadores, os manuscritos de Qumram iluminam as pesquisas a respeito do Judaísmo pós-bíblico e do apocalipticismo judaico.  Collins acredita na existência de uma comunidade apocalíptica que vivia em Qumran desde o segundo século a.C, na qual preservou-se, além dos textos produzidos pela própria comunidade, obras apocalípticas clássicas como Daniel, 1 Enoque e Jubileus. É neste capítulo que Collins apresente resumidamente algumas ideias encontradas nos textos de Qumran. Primeiramente, fala-se do conceito de revelação, que são informações sobre a organização, condução e operatividade do cosmos criado por Deus. Outro tema importante nos Manuscritos do Mar Morto é o dualismo, que abrange o nível cósmico, antropológico e social. Collins também mostra a pluralidade de imagens messiânicas em Qumran, expectativa que ressurge por consequência da insatisfação ao reinado asmoneu. Ligada à esperança do messias, ou messias, há a guerra cósmica entre os filhos da luz contra os filhos das trevas, que liderados por seus respectivos comandantes travarão a última batalha no fim dos tempos.

Como era de se esperar, Collins separa um capítulo somente para tratar de um dos textos da tradição enquita, as Similitudes de Enoque, que foi a única parte de 1 Enque não encontrada em Qumran. Por essa e outras razões, data-se a obra no segundo ou terceiro século d.C. Entre algumas questões apresentadas pelo autor, a do filho do homem parece ser a mais nefrálgica encontrada no texto. Fugindo da discussão de anterioridade aos evangelhos, Collins simplesmente mostra a existência de especulações judaicas  que identificava o patriarca Enoque como o filho do homem; talvez seria uma resposta óbvia ao Cristianismo, que usou a mesma expressão como título para Jesus.

Nos últimos capítulos, Collins agrupa 4 Esdras, 2 Baruc e o Apocalipse de Abraão entre os textos judaicos pós-queda do templo, que foram moldados pela catástrofe do ano 70, e fazem a partir desse evento suas teodicéias. Depois, ele reúne a literatura da diáspora do período romano. Nesse grupo, foram agrupados outros Oráculos Sibilinos ( Or. Sib. 5, 1, 2 e 4), que podem ser considerados apocalípticos em sentido lato do termo (p. 344). Entre os apocalipses da diáspora, encontram-se também 2 Enoque, 3 Baruc, Testamento de Abraão, assim como, o Apocalipse de Sofonias, do Judaísmo egípcio, que sobreviveu apenas em uma citação de Clemente.

No final da obra, Collins relaciona a apocalíptica judaica com a literatura do Novo Testamento. Nesta parte ele deixa claro que conceitos e ideias tais como Reino de Deus, filho do homem, messias, ressurreição, parousia, vida após morte, papel dos anjos e demônios e outros presentes nos Cristianismos das origens estão intimamente ligados à literatura apocalíptica, seja relendo e aplicando à figura de Jesus, como, também, para construção das expectativas escatológicas das comunidades paulinas. Collins é sensato em afirmar que só há um apocalipse no Novo Testamento, o apocalipse de João, mas tanto os evangelhos sinóticos como Paulo, no entanto, são matizados em um grau significativo pela visão de mundo apocalíptica.      

Como toda obra introdutória, o texto acaba tornado-se superficial em alguns temas, especialmente no capítulo sobre Qumran e a relação da apocalíptica judaica com os Cristianismos das origens. No entanto, essa tradução ajudará os pesquisadores brasileiros na aproximação aos textos ainda desconhecidos do público em geral, e popularizará uma das pesquisas desse importante autor. Este livro é mais do que recomendado!



[1] O paper apresentado no encontro foi disponibilizado no site do grupo Oracula: www.oracula.com.br

2 comentários:

  1. Caro Kenner,

    Obrigado pela dica!

    A obra que estou lendo atualmente - "Teologia do Pluralismo Religioso: para uma releitura pluralista do cristianismo", editada pela PAULUS - apesar de não ter como tema a Apocalíptica Judaica, indiretamente, remonta toda uma historiografia do pensamento judaico, além do grego, para contextualizar o surgimento dos principais Dogmas do Cristinanismo. É claro que, numa perspectiva propedêutica, ela se torna também superficial; mas relevante para se construir um pensamento responsável.
    Por isso, entendo que sua dica me ajudará nessa releitura que ando fazendo para entender melhor a natureza da fé desenvolvida pela protocomunidade cristã, segundo Bultmann: o KERIGMA.
    Com prazer, acolho sua dica!

    Um abraço,

    M.O.O.
    Rio de Janeiro, RJ.

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    1. Olá Marcelo,

      obrigado pela participação. Também usei nestes dias o texto do José Maria Vigil para um curso do CEBI. Um texto bacana, também, sobre a temática da pluralidade das primeiras comunidades cristãs é a clássica RIBLA nº 22.

      Um braço

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