Depois de muito tempo sem postar nada no Blog, retomo as atividades. Espero que este post sirva de motivação para continuar colocando textos aqui...
Quero disponibilizar neste post meu discurso de qualificação na UMESP, proferido nesta segunda-feira (02/06/2014) para aprovação do projeto e 1º capítulo da tese. Este texto li para a banca formada pelos professores doutores Paulo Nogueira, Paulo Garcia e Helmunt Renders.
Discurso na defesa de qualificação da tese:
O Título de minha tese é: “‘Quando os Espíritos saem do Abismo’. O Estabelecimento Narrativo do
Terror Escatológico em Apocalipse 9,1-21”. Este trabalho é resultado de longa caminhada
no grupo de pesquisa Oracula e de diversas discussões metodológicas neste
espaço aventadas para leitura e interpretação da cultura e de textos. Por isso,
mesmo que eu responda por todas as informações e afirmações expostas neste projeto,
devo indicar o contexto no qual ele se insere.
Durante um bom tempo o
livro do Apocalipse foi lido como uma espécie de linguagem cifrada, através da
qual o visionário teria empreendido o alívio das angustias e gerado esperança
para cristãos que viviam perseguições no império Romano. Especialmente na exegese
latino-americana, o livro foi lido como um texto que reflete ou nele subjaz,
realidades de opressão e até mesmo martírio sob a coroa de Domiciano. Nesta
perspectiva, o Apocalipse seria um escrito para ajudar os seguidores de Jesus a
manterem a fé em meio à desgraça, com a promessa de que a iminência do fim
encerraria uma grande tribulação. Este tipo de interpretação, resultado natural
dos referenciais histórico-sociais, levou, e ainda leva, muito a sério o mundo
romano pintado pelo texto.
Não podemos negar as
muitas contribuições que esta leitura nos legou. Contudo, precisamos levar em
consideração que vivemos uma mudança de paradigma nas pesquisas sobre o acesso à realidade. A
ordem social não existe como algo dado, simplesmente para ser observada com
corretas ferramentas históricas. O que se faz é a interpretação, logo, ficção
da realidade.
Por isso, nos últimos anos a exegese tem passado por renovações
permitindo ser interpelada por referenciais teóricos expostos pelas ciências
humanas em geral, semiótica e teorias literárias, o que conduziu à aproximação
ao Apocalipse como instrumento de persuasão retórica, que lida com imagens para
criar mundos e interpretar a realidade.
Os trabalhos de Leornad Thompson, por exemplo, levam em consideração,
de maneira radical, o Apocalipse não como reflexo do mundo romano, mas criação
discursiva deste. Ele mostra que o livro é rico enquanto documento
literário. Através da linguagem poética e imaginária, o visionário cria um
mundo que não pode ser interpretado simplesmente como alegoria do tempo
histórico-social ao qual se refere. Como diria Umberto Eco em seu “Da Arvore ao
labirinto”: significado e referência precisam ser diferenciados, mesmo no nível
de dicionário. Quando o profeta faz comentários a respeito da vida dos membros
e não membros da igreja, ou sobre os judeus da “sinagoga de satanás”, quando cita
os nicolaitas ou indica coisas relacionadas a Roma com a Grande Babilônia, não está
simplesmente fazendo uma descrição em código universal observável da realidade
social dos Judeus, dos cristãos ou do Império Romano; na verdade, a linguagem
cria um simbólico universo que transforma e representa a realidade social em
termos de sua própria observação. Por isso, o “real” do texto de João se
encontra na interconexão de sua linguagem e não em qualquer correspondência
externa no mundo romana[1].
Desta forma, há um
distanciamento entre a realidade e o discurso; Roma e o livro do Apocalipse
estão no mesmo espaço, mas construídos retoricamente.
No livro do Apocalipse,
o grande problema não está nas perseguições, mas na retórica do Império e a
interpretação do visionário. O discurso de paz e a prosperidade da sociedade
romana, no ponto do vista do visionário, não pode ser celebrado pelos cristãos
fiéis. No Apocalipse, o enunciado de ordem política-econômica-estética-social
de Roma é totalmente enganoso, pertence ao reino satânico, mesmo que isso não
se perceba no cotidiano dos cidadãos. Eis aí a grande contribuição da linguagem
apocalíptica, que possibilita o acesso a outros níveis de realidade. Assim, o conflito está na perspectiva de João
e não na sociedade. E, ainda, a crise é uma orientação própria do gênero
apocalíptico, e não necessariamente a realidade social. A situação de crise é mais um “topos” do gênero apocalipse[2] do
que reflexo histórico-social.
Desta forma, devemos
tratar o Apocalipse como um contradiscurso, que desqualifica retoricamente,
usando os “topoi” próprios do gênero,
para mostrar que o discurso de ordem e paz não são reais, pois por intermédio
de meios autorizados, como a visão, interpreta-se o mundo Romano de maneira
completamente diferente. A linguagem de monstros e mártires diz: “o que há é
caos e perseguição prevista”! O livro do apocalipse torna-se nesta leitura uma
estratégia discursiva para interpretar o mundo e criar expectativas sobre os
narratários.
São com estes pressupostos que
leremos a micronarrativa 9,-21 do livro do Apocalipse e sua sequência narrativa
das sete trombetas. Nela perceberemos suas estratégias narratológicas para
interpretação e criação de terror escatológico sobre seus leitores implícitos,
seus narratários. O texto, para construção retórica de caos e desordem da
realidade, pinta um quadro de seres que sobem e descem, fala de figuras
hibridas, insere uma interessante discussão sobre a impureza, e como um
verdadeiro instrumento de terror, usa linguagem cheia do grotesco, que serve,
como dizem os críticos literários, como desconfiguração carnavalesca da
realidade, tratando-a como aberração.
Se devemos observar a obra como
estratégia retórica – claro, sem perdermos de vista sua origem na experiência
visionária – é de fundamental importância colocarmos na discussão as intuições
da semiótica da cultura, das quais legamos os conceitos de texto, cultura e
memória comum; como também seus corolários nos trabalhos dos Assman, os quais nos
ajudam na observação dos movimentos das memórias na cultura, o que poderíamos
chamar de “movimentos semióticos das memórias”. Com estes referenciais, podemos
superar a ideia de contexto histórico para pensarmos o contexto das memórias na
tessitura da cultura, a qual é formada por textualidades que estão em relações
infindáveis e vivem explosões semióticas constantes.
Segundo a semiótica da cultura, o
texto é texto da cultura; ou seja, ele é como microcosmo do mundo dos textos
que circulam na semiosfera. A Semiosfera é um conjunto de textualidades, é algo
formado por uma rede (interminável) de interpretações; é a esfera da
comunicação; é uma rede processual de signos ou semiose; é o lugar de interconexões.
Este conceito revela a dinâmica da cultura que é a formada por textos, os quais
são perenizados, tornado-se o cânon da cultura (como diriam os Assmann) e formam
a chamada “memória comum”. Assim, a cultura pode
codificar e decodificar mensagens de períodos diversos, traduzindo-as em novos
sistemas de signos e de textos, agindo como uma engrenagem complexa de seleção
das informações mais necessárias[3].
Por isso, as culturas, enquanto textos, sempre se enriquecem recíproca e
constantemente, pois é circular.
A “memória comum” preserva textos
em nível diacrônico, que servem para interpretações dos textos da cultura que
circulam em nível sincrônico. Nossa hipótese é que a memória comum através da
qual o livro do Apocalipse interpreta os textos da semiosfera grego-romana, preserva
a literatura apocalíptica. Ou seja, este conjunto de textos da cultura forma um
instrumento heurísticos para interpretação do texto/discurso greco-romano de
paz e ordem. Por isso, percebemos que o livro de 1 Enoque e suas traduções na
cultura judaica e cristã, compôs seu o cânon da memória comum. Neste sentido, o Apocalipse de João se insere de maneira
discursiva no conjunto de memórias por ele retomadas e organizadas no eixo do
terror escatológico, servindo de expressão discursiva de olhar sobre o mundo
Romano, através do qual se nega em última análise a ordem e paz (Pax) da propaganda imperial.
Em
suma, para a interpretação do livro do visionário João, o conceito de memória
comum ou memória cultural ajudará na observação da reconstrução das memórias
apocalípticas, presentes na construção do quadro referencial do terror escatológico
produzido como um contradiscurso, que nega a ordem proclamada pelo império
romano e seus mitos/discursos. Além
disso, perceberemos como a literatura enoquita, em suas releituras, esteve
sempre na interação “cânon x arquivo” na memória comum/cultural. Podemos, neste
intento, afirmar que o Apocalipse interpretou os textos da cultura que o
cercavam a partir deste conjunto de textos da semiosfera judaico-cristã (greco-romana) para denunciá-la, e mais
do que isso: inventá-la narrativamente.
Para isso, pretendemos seguir um caminho que
nos parece mais eficiente. Como temos usado alguns conceitos vinculados à
teoria da memória e semiótica da cultura, no início do trabalho pretendemos
organizar o arcabouço metodológico que faça convergir estes referenciais em
diálogo com as ferramentas da Narratologia. No início, faremos uma exposição do
conjunto dos referenciais teóricos para organização metodológica e caminho
heurístico. Como seus conceitos estão muito presentes na exegese, começaremos
expondo suas intuições, aplicabilidade e limites.
Munidos com as
intuições metodológicas acima expostas, pensaremos na literatura apocalíptica
como conjunto de textos da cultura judaico-cristão e mostraremos como mitos de
seres causadores de impurezas e aprisionados da tradição apocalíptica
fixaram-se no cânon desta cultura e serviram de pano de fundo semiótico para
organização de mundo e interpretação da cultura do Séc. I.
Depois, proporemos a
observação das imagens caos e ordem na construção discursiva do Apocalipse, as
quais estão em relação dialógica e intertextual no Ap 8-10, para percebermos o
livro como instaurador de caos através da linguagem grotesca e monstruosa para
estabelecimento discursivo do terror.
A partir de esse olhar
sobre o Apocalipse, analisaremos exegeticamente a micronarrativa (Ap 9, 1-21),
utilizando instrumentos da Narratologia em diálogo com a exegese tradicional para
observação a ideia de tempo, espaço (geografia apocalíptica), enredo, personagens
e quadros narrativos. Neste ponto, indicaremos a presença dos seres
aprisionados e suas relações com o discurso escatológico da micronarrativa em
diálogo com a macronarrativa. Por isso, voltar-se-á às tradições que
provavelmente serviram as memórias de queda
celestial, aprisionamento de seres
e a topografia escatológica ao mundo
judaico-cristão. Para tal feito, primeiramente, mostraremos a presença do Mito
dos Vigilantes na tradição judaica e cristã e, assim, perguntaremos pela
presença da memória dos seres aprisionados na semiosfera judaico-cristã. Desta forma, saberemos como o Mito dos
Vigilantes tornou-se uma espécie de texto de centro da cultura e como suas
memórias foram traduzidas para estas tessituras
discursivas, e em que nível estavam ligadas às perspectivas escatológicas de
julgamento e punição.
Assim, este trabalho
pode ser importante não somente por suas intuições a respeito do livro do
Apocalipse, tão estudado nos últimos anos, inclusive em nosso programa, mas
também pela aplicação da Teoria da Memória e Semiótica da Cultura, o que tem sido
uma preocupação atual do Grupo de Pesquisa Oracula e de pesquisadores como
Paulo Nogueira.
[1] THOMPSON, Leonard. A Sociological
Analysis of Tribulation in the apocalypse of John. In: Semeia 36 (1986): p. 147-174. p. 147.
[3]
FERRARI, Mônica Rebecca. A memôria da cultura e a memória na mídia em produtos
autovisuais infanto-juvenis. In: MACHADO, Irene (org.). Semiótica da Cultura e Semiosfera. São Paulo: FAPESP/Annablume,
2007, p. 255-266, p. 256.
Muito bom o texto, é bem consistente e importante para uma pesquisa sobre o assunto. Parabéns!
ResponderExcluirEdvaldo Barbosa Silva