terça-feira, 30 de abril de 2013

“Cuidado com Elas”. Misoginia Cósmica na Literatura Judaico-cristã (Part. III)






Com grande demora, posto aqui a última parte da série de textos "'Cuidado com Elas'. Misoginia Cósmica na Literatura Judaico-cristã". 

"Sem as mulheres não há demônios"!  

          A importância dada à narrativa dos Vigilantes se percebe na presença desse mito em grande parte da tradição judaica e, posteriormente, cristã[1]. Seguindo seus rastros, alguns textos podem ser mapeados para percebermos como as imagens desse mito influenciaram para o medo e ódio contra a mulher.
Um texto judaico ainda bem próximo ao livro dos Vigilantes é Jubileus (Sec. II a.C). Nesse texto é recontada a história do Gênesis, e novamente aparecem os anjos seduzidos pela beleza das mulheres e o nascimento de gigantes como resultado de relações sexuais. Por isso, a maldade aumentou na terra e Deus mandou o dilúvio. Após o dilúvio Noé ora a Deus contra os demônios (“os demônios poluídos”), os quais estavam desviando, cegando e matando os seus netos. Assim, o Senhor ordena aos anjos que os amarrem, e Mastema, um seu líder, pede a Deus que deixe com ele um décimo dos demônios. Mais uma vez, por causa da sexualidade feminina a maldade e os seres demoníacos invadem a terra.
Em Qumran também o mito é lido e ele aparece no Documento de Damasco, 4Q180, 1Q23 e outros[2]. A mesma lógica simbólica é preservada em Qumran ao falar da queda dos anjos e a sua relação com as mulheres sexualmente perigosas. No Documento de Damasco, em especial, é criticado o olhar luxurioso e a obstinação contra Deus. Outro texto judaico que é influenciado pelo mito dos vigilantes é o Testamento de Rubens. Nele é instruído fugir da mulher, pois elas haviam enfeitiçado os Vigilantes: “Proibi vossas mulheres e vossas filhas de enfeitarem a cabeça e o rosto! Pois toda a mulher que recorre a esses ardis atrai sobre si o castigo eterno. Foi desta maneira que elas também enfeitiçaram os Guardiões antes do dilúvio” (Test. Rub. 5, 4-5)
No Testamento de Rubens novamente o corpo e a beleza da mulher são vistos como perigos e causadores de sedução de anjos necessitando ser domesticados. Por isso, as mulheres não deveriam se embelezar. Assim, se sexualidade é vista como um instrumento de poder e usada ardilosamente pelas mulheres, legitima-se a dominação patriarcal para segurar a ordem social e cósmica.
A literatura bíblica neotestamentária também depende diretamente, em algumas partes, das imagens do Mito dos Vigilantes[3] (Judas 6; 1 Pedro 3,18-21; 2 Pedro 2,4). Contudo, nos fixaremos em sua influencia para construção da imagem negativa da mulher.
A Primeira Carta aos Coríntios traz uma passagem bastante obscura, mas que se clareia ao conhecermos o Mito dos Vigilantes. Diz o texto: “Sendo assim, a mulher deve trazer sobre a cabeça o sinal da sua dependência, por causa dos anjos” (11,10). Soltar os cabelos na tradição judaica e romana era extremamente libidinoso[4]. Por isso, Paulo pede para esconder esta parte erótica da mulher, porque poderia seduzir os anjos, como aconteceu em tempos primordiais, como dizia Mito dos Vigilantes. Ou seja, mais uma vez a mulher e sua beleza tornam-se ameaças à ordem estabelecida nos céus. 
Nas cartas pastorais aparece a mesma ideia.  Em 1 Tm 3,11 a mulher não deveria ser maldizente, que em grego provém a mesma palavra para diabo. Em 1 Tm 2,12-15, mesmo que se remonte a narrativa de Adão e Eva, ainda trás a figura perigosa da mulher, por isso deveria ficar calada, e se limitar a maternidade, para sua salvação. Em 1 Pe 3,3-4 como é feito no Testamento de Rubens e 1 Tm 2,9-11, os enfeites e adornos são colocados em segundo plano, para que a modéstia e submissão sejam prioridades. Vemos o controle do corpo da mulher representado no discurso em torno da roupa e a ornamentação, fruto do pavor à potencialidade sexual da mulher. 
Em Ap 9, 8 os terríveis gafanhotos tinham os cabelos de mulher. Mesmo que aqui se refira à opressão imperial, é a imagética da mulher e seu poder sexual que está na linguagem simbólica.
Outro texto da tradição judaica é o livro do  Séc. II d.C, 2 Enoque. Neste, fala-se dos grigori, que são os Vigilantes em versão grega. No texto, as mulheres são responsáveis pelos pecados dos anjos. Em 2 Enoque de forma direta a mulher é culpada pela queda e desgraça dos seres celestiais, pois tinham nas mãos o poder da dominação pela beleza.
Esta mesma imagem da sexualidade e da mulher influenciou teólogos cristãos dos séculos posteriores como Justino Mártir, Irineu, Tertuliano e outros. O próprio Tertuliano, tendo a imagética do Mito dos Vigilantes, escreveu:

[...] esses anjos, com inteligência, que fugiram do céu em busca das filhas de homens; de forma que esta ignomínia também se prende à mulher. De uma época muito mais ignorante (que a nossa) eles revelaram certas substâncias de material bem-ocultas, e várias artes científicas bem-reveladas – se é verdade que eles tinham revelado o manejo da metalurgia, e tinham divulgado as propriedades naturais de ervas, e tinham promulgado os poderes de encantos, e tinha revelado toda arte misteriosa, até mesmo a interpretação das estrelas – e particularmente às mulheres, eles comunicaram corretamente a arte instrumental malévola de ornamentação feminina, os brilhos de jóias como colares são combinados em diversas cores, e os braceletes de ouro, e produtos de tingimento com os quais a lã é colorida, e aquele pó negro, com o qual são feitos as pálpebras e cílios proeminentes. (De cultu feminarum ii.10,2-3).
 
Considerações Finais:

O corpo é o lugar onde fica escrita a história[5], nele a história deixa suas marcas. No caso das imagens encontradas nas tradições aqui citadas o corpo da mulher é perigoso e amedrontador, porque é causador de catástrofes cósmicas. Muitos outros textos da tradição testemunham como a parte da religiosidade judaico-cristã, mesmo não tendo raízes no Mito dos Vigilantes, culpou a mulher pelos males desse mundo, como o Testamento de Jó, Eclesiástico 25,24 e Vida de Adão e Eva. Para termos ideia, neste último encontramos a cumplicidade entre Eva e a serpente do paraíso. Por isso, tanto ódio contra a mulher e tudo que estivesse ligado ao feminino.

Referências Bibliográficas

BERGESCH, Karem. Violência Contra a Mulher – uma perspectiva foucauliana. In: MARG, J. Ströher (org). À Flor da Pele. Ensaios sobre gênero e corporeidade. São Leopoldo: Sinodal/CEBI, 2004.
   
CHARLES, R. H. The Book of Enoch or I Enoch. Oxford: Clarendon, 1912.

COLLINS, J.J. The Apocalyptic Imagination: an Introduction to the Jewish Matrix of Christianity. New York: CROSSROAD, 1989. 

COLLINS, J. J. The Apocalyptic Technique: Setting and Function in the Book of Watchers. In: Catholic Biblical Quarterly 44, número 1, p.91-111, 1982.

FLOOD, Michael (ed.) International Encyclopedia of Men and Masculinities. New York: Routledge, 2007. 

NICKELSBURG, George W. E., Apocalyptic and myth in 1 Enoch 6-11.In: Journal of Biblical Literature 96, número 3, p. 383-405, 1977

NICKELSBURG, George W. E. A Commentary on the Book of 1 Enoch, Chapters 1-36; 81-108. Minnapolis: Fortress Press, 2001.

NICKELSBURG, George W. E. and VANDERKAM, James C. 1 Enoch: A new translation. Minneapolis, Fortress, 2004.

REED, Annette Yoshiko . Fallen Angels and the History of Judaism and Christianity. The Reception of Enochic Literature. New York: Cambrigde University Press, 2005.

SEBASTA, J. L. Women’s Costume and Feminine Civic Morality in Augustan Rome. In: Gender e History 9/3, p.529-541, 1997.


TERRA, Kenner R. C. De guardiões a demônios: a história do imaginário do pneûma akátharton e sua relação com o Mito dos Vigilantes. 139p. Dissertação – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2010.

VANDERKAM, J. Enoc and the Growth of an Apocalyptic Tradition. CBQMS 16. Washington, DC: CBA, 1984.

VANDERKAM, J. The Interpretation of Genesis in 1 Enoch. In: FLINT, P.W. (ed.). The Bible at Qumran. Text, Shape and Interpretation. Grand Rapids:CBA, 2000.

VANDERKAM, James C. Enoch, a Man for All Generations. Columbia: University of South Carolina Press, 1995.



[1] VANDERKAM J. Enoc and the Growth of an apocalyptic Tradition. CBQMS 16. Washington, DC: CBA, 1984; VANDERKAM J. The Interpretation of Genesis in 1 Enoch. In: FLINT, P.W. (ed.). The Bible at Qumran. Text, Shape and Interpretation. Grand Rapids:CBA, 2000.
[2] Para uma lista maia completa dos textos de Qumran que têm a presença do Mito dos Vigilantes ver: TERRA, Kenner R. C. De guardiões a demônios: a história do imaginário do pneûma akátharton e sua relação com o Mito dos Vigilantes. 139p. Dissertação – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2010; VANDERKAM, James C. Enoch, a Man for All Generations. Columbia: University of South Carolina Press, 1995.
[3] CHARLES, R. H. The Book of Enoch or I Enoch. Oxford: Clarendon, 1912 (em especial o capítulo “The Influence of 1 Enoch on the New Testament”, p. 182).
[4] Ver. SEBASTA, J. L. Women’s Costume and Feminine Civic Morality in Augustan Rome. In: Gender e History 9/3, p.529-541, 1997. 
[5] BERGESCH, Karem. Violência Contra a Mulher – uma perspectiva foucauliana. In: MARG, J. Ströher (org). À Flor da Pele. Ensaios sobre gênero e corporeidade. São Leopoldo: Sinodal/CEBI, 2004.    

Um comentário:

  1. Estou alegre por encontrar blogs como o seu, ao ler algumas coisas,
    reparei que tem aqui um bom blog, feito com carinho,
    Posso dizer que gostei do que li e desde já quero dar-lhe os parabéns,
    decerto que virei aqui mais vezes.
    Sou António Batalha.
    Que lhe deseja muitas felicidade e saúde em toda a sua casa.
    PS.Se desejar visite O Peregrino E Servo, e se o desejar
    siga, mas só se gostar, eu vou retribuir seguindo também o seu.

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