quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

“Cuidado com Elas”. Misoginia Cósmica na Literatura Judaico-cristã (Part. II)




Com certa demora, post aqui a segunda parte da comunicação apresentada na ABIB.

Cuidado com a beleza delas! Desordem cósmica…

O Mito dos Vigilantes é a junção de duas tradições que no segundo século já pertenciam a uma única obra[1]. De acordo com o relato dos capítulos 6-11 de 1 Enoque (parte na qual está a versão mais antiga do Mito dos Vigilantes), um grupo de seres angelicais nomeados como Vigilantes se atraiu pela beleza das filhas dos homens e conspirou entre si sob a liderança de Shemihazah, com o propósito de possuir as belas mulheres. Com o contato com elas, os Vigilantes ensinaram a arte da metalurgia, da confecção de armas, da ornamentação (maquiagem, etc.), a arte da adivinhação, a magia, os encantamentos, a astrologia e o cultivo de raízes (1 En 8,1-3).  Ao terem relações sexuais com as mulheres foram gerados os gigantes, seres híbridos que comeram toda a alimentação da terra e depois os próprios seres humanos. Por isso, Deus envia o anjo Sariel para alertar Noé do iminente julgamento que virá sobre o mundo. Na sequência, o Senhor envia Rafael para prender Azazel, que é um dos líderes das hostes celestiais ao lado de Semihazah. Deus, também, envia Gabriel a fim de destruir, sem misericórdia, os gigantes (10,4-12).
          O mito se utiliza de linguagem simbólica para tecer críticas sociais e preservar a identidade judaica utilizando a figura da mulher e da sua sexualidade de maneira degradadora. O que gera toda desgraça do mundo, segundo o mito, e funda uma cultura do caos é a beleza da mulher. Como mostram os próprios nomes e as funções dos anjos, sua ausência no céu representava uma desorganização cósmica, gerando uma catastrófica calamidade! E o que os fez cair ou descer de lá? – A beleza das mulheres. Nas posteriores leituras, a figura da mulher e de sua sexualidade tornar-se-ão ainda mais perniciosas.   
          Os capítulos 12-16 de 1 Enoque já é uma releitura dos capítulos 6-11[2]. Nesses capítulos, uma nova imagem aparece. Com a morte dos gigantes, filhos das mulheres com os anjos, seus espíritos são liberados e transformam-se em espíritos malignos gerando uma vasta ploriferação de demônios (15,10-16,3). Esses tentariam a humanidade e causariam terríveis males. Aqui temos uma etiologia demoníaca em estreita relação com a mulher e sua sexualidade. Seu corpo e sua beleza são as causas da existência dos demônios.
          Como afirma J. Collins, o mito pode ser lido em momentos diferentes e aplicado em outras crises[3]. Na história da recepção do mito dos Vigilantes, novas imagens aparecem dando à narrativa novos contornos. Contudo, as figuras centrais são preservadas e a mulher é ainda mais demonizada.



[1] NICKELSBURG, George W. E. Apocalyptic and Myth , p.384.
[2] NICKELSBURG, George W. E.; VANDERKAM, James C. 1 Enoch: A new translation. Minneapolis, Fortress, 2004.
[3] COLLINS, John Joseph. The Apocalyptic Technique, p. 91-100.

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