Neste e nos próximos posts, publicarei na íntegra uma comunicação apresentada no último congresso da ABIB (Associação Brasileira de Interpretação Bíblica) sobre a questão da mulher na literatura judaico-cristã.
Vamos ao texto...
Introdução
Mesmo que encontremos na literatura
bíblica muitos discursos que protejam as mulheres e que representem, em algum
nível, sua dignificação, há muito tem se percebido como o mesmo conjunto de
tradições judaico-cristãs revela violência(s) simbólica (s) contra a figura
feminina. Como produtos de seu tempo, que percebia os papeis sociais dos
homens e mulheres como estabelecidos pela própria natureza ou por Deus, as
obras que compõem a literatura bíblica relegam às mulheres limitadas
atuações. Além disso, tanto estes textos canônicos como a tradição judaica do
segundo templo em geral e as obras cristãs posteriores mostram que a mulher foi
alvo de gratuito preconceito, chegando, em alguns momentos, a ser vista como
uma aliada das forças malignas.
Um fenômeno percebido nas tradições judaico-cristãs (com suas devidas
reservas para não incidirmos em anacronismos) é o que as ciências sociais
chamam de misoginia, que significa ódio contra a mulher ou contra o
que tenha relação com o feminino. Esta é uma ideologia ou sistema de crença que
acompanhou as culturas patriarcais para subordinar as mulheres e limitar-lhes o
poder e autonomia[1]. O ódio contra o feminino está
intimamente relacionado à tradição do medo que rodei a imagem da mulher, que
perpassou a antiguidade, esteve bem presente no mundo medievo e até hoje
permeia o imaginário de diversas culturas. E, como alguns pesquisadores
já nos advertiram, o principal problema para as sociedades patriarcais é
o corpo feminino, visto como apavorante, pois carrega um perigo indomesticável.
Uma das muitas razões de se temer a
mulher e sua corporeidade na tradição judaico-cristã é a acusação de que a
beleza da mulher serviu de desestabilização da ordem cósmica. Encontramos este
tipo de ideia em alguns dos seus textos, nos quais a mulher aparece como agente
de destruição de ordens celestiais e de cosmologias
estabelecidas.
Para percebemos a presença deste
medo causado pela mulher no mundo judaico-cristão, reportaremo-nos às tradições
judaicas de pelo menos três séculos antes de Cristo, as quais formam lidas e
relidas na história israelita ganhando novos contornos, “malignificando” ainda
mais a figura da mulher.
Um texto considerado quase que
originário para a tradição apocalíptica e que pode nos ajudar nesta questão é o
chamado Mito dos Vigilantes[2], o qual está
preservado no Livro dos Vigilantes, que por sua vez pertence a uma
obra maior conhecida como 1 Enoque. Este texto foi totalmente preservado apenas
na versão etíope (em Ge’ez) e tem aproximadamente 49 manuscritos[3]. Ele pertence ao grupo que, diferente da aristocracia
judaica do século II a.C, não aceitava a helenização passivamente[4]. Nesta narrativa, os anjos são tentados, por causa da
beleza das mulheres, a tomá-las como esposas, o que causa catástrofes
imensuráveis e irremediáveis.
No próximo post continuaremos o texto...
[1] FLOOD, Michael (ed.). International Encyclopedia of Men
and Masculinities. New York: Routledge, 2007.
[2] REED, Annette Yoshiko . Fallen Angels and the History of
Judaism and Christianity. The Reception of Enochic Literature. New York:
Cambrigde University Press, 2005, p.3.
[3] COLLINS, J.J. The Apocalyptic Imagination: an Introduction
to the Jewish Matrix of Christianity. New York: CROSSROAD, 1989, p.
33.
[4] Sobre esse assunto, ver. NICKELSBURG, G. W.E., Apocalyptic and
Myth in 1 Enoch 6-11. In: Journal of
Biblical Literature 96, n. 3 (1977): 383-405. COLLINS, J. J. The
Apocalyptic Technique: Setting and Function in the Book of Watchers. In: Catholic
Biblical Quarterly 44, n. 1 (1982): 91-111.
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