segunda-feira, 8 de julho de 2019

Vai tristeza e diz para ele...



Hieorofania é irrupção, sacralidade teimosa e invasora do mundo da vida e sua cotidianidade. Na voz e violão do imortal João Gilberto, “Chega de saudade” pode ser colocada nessa categoria, pois é evento epifânico. Depois dele, nunca mais nossos ouvidos brasileiros seriam os mesmos. A primeira vez dessa canção, nos lábios de Elizabeth Cardoso, o violão no fundo do disco “Canção do Amor Demais” indicava os relampejos do incomum, um totalmente outro cuja melodia apontava recriação; era a arte "gilbertiana" despontando. Pouco depois, violão posto, sentado tipo leitor medieval, peito em riste e alma ungida de beleza, no final dos anos cinquenta, surge entre nós a voz-mansa, dedilhado-perfeição e melodia-síntese. Eis aqui a Bossa Nova, era o João do Brasil mudando a estética. Não me importa (como diz um texto bonito que li por aí) seu claustro, conflitos relacionais ou esquisitices pessoais, vale-me o orgulho de ser da mesma Terra Brasilis de tantos outros “joãos” e “marias”.

Na capa do antigo vinil, mão em rosto e olhar fito, João Gilberto parece confessar, extasiado e cansado, o acabara de provocar. De agora em diante, diversas nações seriam obrigadas a ouvir a língua mais poética do mundo e curvarem-se diante de sua potencialidade. Ele é brasileiro! A genialidade agora carrega a memória indígena, o sotaque melódico africano, a batida em cordas do tamborim e a conjugação de verbos polissêmicos do terceiro mundo.

Certa vez, o poeta Carlos Nejar – esse também é acostumado com hierofanias – disse-me que o homem é menos do que o poeta. Não estaria o escritor de "Os Viventes" desconsiderando a grandeza do artista. Pelo contrário, sua fala eterniza o autor em sua criação e eleva-o à condição insuperável de canal, fonte e caminho para o fulguro da transcendência. Por isso, a tristeza não é maior porque a arte de João Gilberto perenizou-se na cultura poética da história humana e todos poderão, ao revisitá-la, sem que o tempo ou a morte ocultem-na, estupefatos suspirar: sagrado, belo!

Sim, vai saudade e diz para ele que sua obra fica (!) e animará a vida e alma de tantos quantos ouvirem seus acordes, voz, violão e paixão.

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