Nestas últimas semanas,
as mídias sociais foram bombardeadas por uma enxurrada de respostas ao artigo
“Essa gente incômoda”, publicado pela revista Veja e assinado por J.R Guzzo. Ao
lê-lo e, ao mesmo tempo, acessar as críticas, inclusive de instituições
denominacionais (A CGADB publicou uma nota oficial a respeito), fiquei me
perguntando se estavam falando do mesmo texto. Pensei: nossos irmãos não leram
o texto inteiro ou temos sérios problemas de interpretação morfossintática! A
primeira opção não deve ser descartada, pois o artigo só foi disponibilizado
para assinantes, e é possível que isso tenha gerado manifestações apologéticas
precipitadas. Se a segunda for a melhor opção, infelizmente, necessitamos dar a
mão à palmatória e avaliarmos o nosso nível de leitura, compreensão de texto
ou, até mesmo, enrijecimento destemperado, típico de “gato escaldado com medo
de água” – e não sem motivos, porque, como o próprio texto mostra, por vezes há
generalizações rasas em relação ao multifacetado movimento evangélico
brasileiro. Independentemente das possíveis razões para esse frenesi, desejo
interpretar o tal artigo rapidamente (para não ser, também, mal compreendido,
porque quem fala muito acaba não sendo lido integralmente).
Antes de qualquer
coisa, precisamos entender que o autor do artigo usa a ironia, a
interdiscursividade (ecoa os discursos dos quais critica) e aplica uma
linguagem ambígua, para tornar o texto mais atrativo, polêmico e vendável (não
se esqueçam de que a revista, mesmo online, é paga!). Fazendo isso, correu o
risco de ser interpretado precipitadamente, especialmente ao usar (entre aspas)
as falas dos preconceituosos que ele mesmo satiriza, abrindo portas para
confundirem o discurso dos interlocutores com o dele – aqui está o principal
ponto de tensão com os evangélicos ofendidos. Sem mais delongas, vamos ao
conteúdo da reportagem.
O artigo é dividido
nitidamente em duas partes. Os dois primeiros parágrafos são introduzidos por
uma afirmação cujo desenvolvimento acontece logo em seguida. Guzzo vaticina,
mesmo que sem muitas bases acadêmicas, que os evangélicos brasileiros são alvo
de preconceito e isso revela a fragilização da liberdade religiosa brasileira.
Para um país democrático e laico, confessar esse tipo de postura é vergonhoso,
mesmo porque os por ele denunciados dessa ardil perspectiva se acham o mainstream da
intelectualidade nacional. Em suma, quem são esses contrários à liberdade
religiosa? Guzzo os chama de “classes mais altas” e “consideradas as mais
civilizadas”. Perceba, quando ele diz “consideradas” não está confirmando tal
afirmação, mas indica o que pensam sobre si mesmos. A partir daí ele começa uma
série de ironias zombando da arrogância desses paladinos da intelectualidade
brasileira. Guzzo apresenta como essa classe trata os evangélicos: desprezo, irritação e antipatia. Por favor, entenda, o
autor não está dizendo que os evangélicos sejam isso, mas refere-se aos
supostos intelectuais como portadores dessa percepção. O artigo, mesmo sendo
mal interpretado, denuncia esses supostos “civilizados” como ignorantes e preconceituosos.
Basta continuar a leitura para compreendermos sua ironia. Essa classe arrota
que são “mais ricos, mais instruídos,
mais viajados, mais capacitados a discutir política, cultura e temas nacionais”.
Por isso, ele usa ironicamente as expressões “sabe-se” e “são geralmente
descritos assim”. Leia com cuidado, porque a imagem descrita dos intolerantes é
uma caricatura arrogante deles mesmos e quando se refere aos evangélicos o
texto usa a mesma estratégia literária: apresentar caricaturas. Ou seja, quando
ele fala desse “povo, em grande parte do
‘tipo moreno’, ou ‘brasileiro’, vem sendo visto com horror crescente pela gente
de bem do Brasil”, e coloca entre aspas “moreno” e “brasileiro”, está ecoando
a maneira como essa suposta elite interpreta os evangélicos. Aqui, mostra-se o
racismo desse grupo preconceituoso, o qual descredencia os evangélicos não
somente por serem vistos como retrógrados, mas, também, por serem identificados
como pobres e negros. Além disso, o texto revela esse preconceito como um
sintoma de ódio ao próprio Brasil, porque o país é multicultural e mestiço. Essa
elite é, consequentemente, à luz da argumentação do texto, negadora da própria
brasilidade, cujo desejo é uma nação inexistente, a imagem e semelhança deles
mesmos. Primeiramente, o autor com essa fala não diz concordar com essa imagem,
mas é a elite preconceituosa que assim o faz. E mesmo que seja, no fundo, a sua
opinião, o autor esconde discretamente e é hipócrita o bastante para criticar os
preconceituosos por ele apontados. Por isso, não é possível, com justiça, acusá-lo
disso. Segundo, os evangélicos serem em sua maioria pobres e negros não é um
demérito na perspectiva do autor, mas para a elite preconceituosa. A canção As Caravanas (2017) de Chico Buarque faz
o mesmo, descreve criticamente usando a linguagem dos preconceituosos, a
caricatura das elites cariocas em relação às comunidades que descem dos morros
para partilharem os espaços nas praias da cidade maravilhosa. Guzzo afirma que
“nada é tão fácil de perceber quanto um
preconceito que se pretende bem disfarçado”. Ele chega a denunciar a
própria mídia como parte desse grupo: “Os
meios de comunicação, por exemplo, raramente conseguem escrever ou dizer a
palavra ‘evangélico’ sem colocar por perto alguma coisa que signifique
‘ameaça’, ‘medo’ ou ‘perigo’”.
O
texto mostrará, ainda, as outras razões do preconceito enraizado na leitura
desses que se acham “povo de bem”. Novamente, entenda, Guzzo não diz que ele e/ou
esse grupo seja/am o povo de bem. Isso é uma ironia! Como às vezes dizemos para
um amigo arrogante: “diga ai sabichão“. Quando usamos essa estratégia
discursiva não estamos afirmando que ele seja sábio (“sabichão”), mas o
contrário. Se esse grupo preconceituoso trata os evangélicos como minoria
conservadora, o autor deixa claro que hoje em dia eles são uma grande parcela
do povo brasileiro. Por isso, a bancada evangélica, alvo das duras críticas
desses intelectuais citados no artigo, não representa uma minoria fora de lugar,
como querem os satirizados pelo autor na revista. O artigo fala duas coisas
sobre isso. Primeira, os parlamentares são tratados como um corpo estranho e
unitário. Quando se afirma “São tratados
como uma coisa só — e ruim”, critica-se a pouca informação dos acusadores
preconceituosos, porque pensam que os políticos evangélicos são todos iguais e
ruins. Segunda coisa, para o autor o Brasil de primeiro mundo, e ele coloca entre
aspas, progressista e bem avançado nas pautas citadas (“matéria de família, sexo, crime, polícia, drogas, educação, moral,
propriedade privada e mais umas trezentas outras coisas”) é uma ilusão de
ótica desses grupos preconceituosos. Em suma, o conservadorismo evangélico –
para o autor nem todos são assim e tratar de maneira generalizada é um dos
erros dessa elite –, não é coisa de evangélico, porque em geral a nação é
conservadora em relação a esses temas. Para tais intelectuais progressistas, segundo
o autor, os evangélicos são inconvenientes, porque atrapalham o bom andamento
do Brasil por eles idealizado. Contudo, Guzzo coloca-os na realidade e diz: o
brasileiro é assim, pensa dessa forma, vota dessa maneira. Consequentemente, o
próprio Brasil, então, é inconveniente. Como o texto diz, “[...]. Ou seja: o problema dos evangélicos está nas suas convicções
como cidadãos. No fundo, é a mesma história de sempre. O que atrapalha o
Brasil, na visão das pessoas que se consideram capacitadas a pensar, são os
brasileiros. O povo brasileiro, de fato, é muitas vezes inconveniente —
principalmente quando vota. Os intelectuais, preocupados, lamentam o
crescimento da bancada evangélica — mas raramente se lembram de que ela só
cresce porque cresce o número de eleitores evangélicos”. Esses evangélicos,
na verdade, diria o autor, compõem o Brasil, querendo eles ou não. Quando usa a
expressão “pode ser uma pena”, está
mais uma vez jogando com a maneira desses supostos intelectuais tratarem as
coisas. Como se dissesse: sendo bom ou não, os evangélicos representam uma grande
parcela do Brasil. Desta forma, para o autor, o Brasil é isso também, ou mais
isso do que qualquer outra coisa. Não dá para saber se Guzzo se sente
incomodado com essa força evangélica. Isso é ir muito além do texto. A única
coisa deixada para nossa leitura é a afirmação da necessidade de aceitação da
realidade do crescimento evangélico, dado incômodo não para ele, mas para esses
criticados no artigo. É como se os intelectuais indicados esperassem
ingenuamente outra realidade. Aqui podemos fazer uma pequena crítica. O autor se
esqueceu de dizer com mais exatidão a respeito da presença de políticos e pastores
progressistas. Contudo, entendo que ele deseja gastar tempo mostrando a pouca habilidade
democrática desses preconceituosos. E, se querem um país plural precisam
aceitar a presença de grupos com posturas não progressistas. Aqui, pelo
histórico da revista Veja, essa parte do mundo evangélico se adequa mais à
pauta editorial do que as elites criticadas na postagem.
Na
segundo parte do artigo, para dar ar de imparcialidade, Guzzo expõem alguns problemas
públicos do mundo evangélico. Com exemplos, ele indicará como, por vezes, as
igrejas evangélicas se portam de maneira estranha e repreensível. Para isso, cita
algumas fraudes: “Pastores, bispos e
outros peixes graúdos tomam dinheiro dos fiéis, sob a forma de donativos, em
troca de ofertas a que obviamente não podem atender: desaparecimento de
dívidas, expulsão de demônios, cura de doenças, enriquecimento rápido,
eliminação do alcoolismo, dependência de drogas e outros vícios — enfim,
qualquer milagre que possa ser negociado. Diversas igrejas se transformaram em
organizações milionárias, e muitos dos seus líderes são charlatães notórios —
alguns deles, aliás, já chegaram a ser presos por delitos variados em viagens
ao exterior. Estão acima do Código Penal e da Lei das Contravenções em matéria
de fraude, trapaça e quaisquer outras formas de estelionato”. Como pastor e
inserido entre os evangélicos, sei que todas essas acusações, em vários casos,
são verdadeiras; ou você nunca leu no jornal ou presenciou alguma ação
desonesta em ambiente eclesiástico? Mas isso é afirmar que todas as igrejas são
assim? NÃO, claro que não! É exatamente esse cuidado que o texto tem. Guzzo
indica alguns vacilos históricos midiaticamente conhecidos de líderes e
instituições, mas afirma que “[...]. São
o joio no meio do trigo”. E, ainda, querendo ou não, os privilégios
jurídicos das instituições religiosas facilitam essas manobras. No entanto, ele,
novamente, discreto o bastante para não mostrar-se contra tais conquistas
jurídicas, somente afirma, por ser um assunto complexo, que “ninguém realmente sabe o que fazer de
prático a respeito disso”. Talvez, você se incomode com a frase “há tanto joio nas igrejas evangélicas que
fica difícil, muitas vezes, achar o trigo”. Avalie, ele não é evangélico e
nos conhece superficialmente. Seja por preconceito ou por precipitação, alguém
de fora chegar a essa conclusão deveria gerar em nós reflexão e
descontentamento em relação a alguns erros cometidos. Infelizmente, e digo com
consternação, a imagem criada publicamente por nós evangélicos não é muito
oportuna. E ele, mesmo vivendo para além dos muros do arraial evangélico,
conclui ser uma escolha pessoal ir ou não a igreja, dar ou não dinheiro,
aceitar ou não as promessas por vezes mirabolantes de pregadores apoteóticos
etc. Achei isso democrático e responsável. Os que são “trigo” e não podem ser
contados entre essa lista de ações desonrosas não se sentirão caluniados. Pelo
contrário, farão coro e denunciarão tais mazelas.
Por
fim, Guzzo novamente ironiza essa classe preconceituosa. Mesmo supostamente progressista
e democrática, seus componentes são capazes de desejarem o sumiço daqueles que
desagradam. Para ser ainda mais duro, ele deixa de lado as meias palavras e faz
uma amarga crítica: “É duro, mas o fato é
que, num momento em que apoiar a diversidade passou a ser a maior virtude que
um cidadão pode ter, fica complicado sustentar que no caso dos evangélicos a
diversidade não se aplica”. Assim, o artigo joga na cara dos
preconceituosos sua hipocrisia, porque desejam ser aceitos em suas expressões
por vezes vistas com incômodas, e chamam de conservadores seus antagonistas,
mas quando é a vez desses serem tolerantes e democráticos, mostram sua face nitidamente
intolerante. E, para terminar como começou, zomba com a paciência desses grupos
preconceituosos: “Em todo caso, para quem
não gosta dessas realidades, é bom saber que os evangélicos, muito
provavelmente, são um problema sem solução”. Esses são um problema para
quem? Para o autor? Claro que não! Eles são incômodos para essa elite intelectual
citada pelo artigo.
Ao
contrário da interpretação rápida de alguns, o texto está zombando não dos
evangélicos, mas da elite supostamente intelectualizada. Para os evangélicos
conservadores, essas palavras não são desrespeitosas, porque garantem a eles o
direito de pensarem, defenderem e votarem do jeito que desejarem. Por outro
lado, os evangélicos mais progressistas poderiam se ofender por pelo menos duas
razões. Não serem lembrados no texto e, talvez, colocados entre as elitistas
intolerantes. Na verdade, o grande problema nesse rebuliço todo foi a má
interpretação do gênero ironia, uma
estratégia literária muito difícil de ser discernida e cheia de labirintos
semânticos, os quais se tornam insuperáveis quando estamos com pressa ou
complexados.
Ainda,
é preciso destacar que a publicação não está falando dos progressistas abertos
ao diálogo ou até mesmo dos evangélicos filiados às pautas não conservadoras; nem
sei bem se ele conhece esse outro lado da moeda. Além disso, com um olhar mais
acurado, é possível perceber que os progressistas são os mais atacados no
texto. Ainda, é possível encontrar indícios no artigo que denunciam, inclusive,
sua filiação conservadora e não o contrário. No entanto, essa é outra
discussão...
Belo texto Kenner Terra.
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