segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Começando as reflexões a partir da Carta aos Gálatas...



Rembrandt Harmenszoon van Rijn
Apóstolo Paulo (1635)


Começo neste post algumas reflexões a partir da Carta aos Gálatas. Mas, antes de qualquer coisa, precisamos acessar algumas informações previas que nos ajudarão na sua leitura.

Destinatários

Como afirma Vielhauer no início de sua introdução à Carta aos Gálatas, para a biografia de Paulo (cap. 1-2), a história do (s) Cristianismo (s) primitivo (s), para as tensões intraeclesiáticas daquele tempo e para a teologia do apóstolo – pois é inquestionavelmente paulina, diferente das demais cartas supostamente de sua autoria (Ef, Fl, I e II Tm, Tt e Cl) – a Carta aos Gálatas é o documento mais informativo. Lutero encontrou nela bases profundas para suas ideias, mais tarde presentes no que chamamos de protestantismo. O grande teólogo F.C Baur, com pressupostos hegelianos, tentou reconstruir a história do Cristianismo – em especial com base nas informações dessa carta – como conflito entre o judeu-cristianismo petrino e o gentílico-cristianismo paulino. A mesma certeza de sua importância para a exegese bíblica e história da pesquisa bíblica não se consta, por exemplo, na questão dos destinatários. Sabemos unicamente que Paulo a escreveu, do próprio punho (Gl 6, 11), taîs ekklesíais tês Galatías (para as igrejas da Galácia). Para iniciarmos uma introdução a essa carta, acho acertado começarmos por essa questão, pois marcará duas informações necessárias para sua leitura: a data da produção e o local onde estavam os destinatários.

A discussão a respeito dos destinatários, ou melhor, da região alvo da missiva, sempre deu “pano para manga” exegética. Existem duas hipóteses que se digladiam: a hipótese da Galácia do Sul (província) e da Galácia do Norte (região). O problema está na questão terminológica da Galácia, de Augusto, pois há a possibilidade de chamarmos de Galácia tanto a província que abrangia Licaônia e Psídia, onde estavam Antioquia, Listra, Derbe e Icônio, que eram colônias onde o imperador instalou legionários veteranos, como também uma região do centro-norte da Ásia menor, um distrito onde estavam Ancira, Pessino e Távio. A maioria dos pesquisadores aposta na região norte, por questões internas da própria carta , como também pela maneira como Paulo se refere ao local de destino da carta, pois não generalizaria como “gálatas” grupos étnico das regiões da Licaônia e Psídia. Então, é possível que a carta não tenha sido enviada para a parte sul da província gálata, onde Paula estivera já na sua primeira viagem missionária, mas especificamente para região da Galácia (com origem celta) depois de passar por lá em duas ocasiões, em 49 d.C após o concílio dos apóstolos (At 15), na segunda viagem missionária (At 16,6), e na terceira, quando saíra de Antioquia da Síria em direção a Éfeso (18,23). Provavelmente, Paulo tenha escrito de Éfeso ou na volta de Corinto, na mesma terceira viagem.

Adversários

A maneira dura como Paulo escreve, seu rigor nas palavras, suas exortações diretas e ríspidas, a ponto de chamá-los de insensatos, demonstra a insatisfação com os destinatários e o caráter polêmico da carta. Segundo o texto, a comunidade estava sendo influenciada por alguns “missionários judeu-cristãos”, vindos de fora (1,7; 5,10), os quais perturbavam e anunciavam outro tipo de evangelho (1,6). Eles tentavam minar a autoridade de Paulo para dar mais força aos seus argumentos (cf. as defesas do apostolado paulino – 1-2), e parece-me que conseguiram certo sucesso, pois alguns já estavam mudando a postura diante da fé (1,6); estavam guardando dias e festas rituais (4,19). É difícil descobrir o conteúdo dos ensinamentos desses intrusos, porque os acessamos intermediados por Paulo. No entanto, algumas coisas podem ser observadas, por intermédio do texto, sobre isso. Os intrujões exigiam a observação da Lei de Moisés, Paulo chama-as de obras da lei (3,2.5). Os adversários acreditavam na necessidade da observação da lei mosaica para justificação (5,4), ao lado da fé em Cristo, ou melhor, a necessidade de submissão a preceitos legais da Torah (4,21), como circuncisão (5, 1-12), prescrições rituais festivas, sábado e exigências alimentares (4, 10; 4,11-20).

Até pouco tempo esses adversários eram conhecidos como “judaizantes”. No entanto, esse tipo de conceito ideal sustenta-se em bases já ruídas pela pesquisa. Por exemplo, não se aceita hoje em dia entre os exegetas a ideia de um “judaísmo comum”, igual o defendido por Sanders (Cf. SANDERS, E. P. Paul and Palestinian judaism: A comparison of Patterns of Religion. Philadelphia: Fortress Press, 1987.), como se houvesse no tempo de Paulo um judaísmo monolítico, com preceitos essenciais que o identificava claramente, tornando possível observá-lo separadamente do Cristianismo, por sua vez também bem delineado. Esse conceito “judaísmo comum” acaba travestindo a realidade multifacetada e plural das práticas e experiências religiosas do judaísmo no tempo de Paulo (basta-nos ler os manuscritos do Mar Morto que logo veremos essa diversidade). Por isso, falamos em “judaísmos”, no plural. Assim, como bem identificou Pedro Lima Vasconcellos, tanto Paulo como os seus adversários eram judeus que liam de maneira diferente sua herança judaica à luz do evento Jesus. Problema parecido Paulo tivera em Antioquia, antes do concílio de Jerusalém, quando tratou, juntamente com a liderança de lá, da liberdade em relação a submissão à Lei mosaica para os novos cristão vindos do paganismo (At 14-15). Segundo Koester, para os adversários de Paulo as Escrituras eram compreendidas como “a Lei”, isto é, um livro de prescrições rituais (circuncisão, exigências alimentares, observância do sábado, festas religiosas), a observância a esses preceitos assegurava ao verdadeiro povo de Deus proteção frente aos poderes do universo. Paulo, pelo contrário, relativizava a importância da Lei, colocando-a dentro da história da salvação como um momento já ultrapassado, para sobressair-se a figura do Cristo sacrificado. Por isso, concordo com Koester quando diz que para Paulo a Bíblia era um livro de antigas promessas que haviam se tornado realidade através da vinda de Cristo, de sua morte e ressurreição, da pregação do evangelho e da fé das igrejas. Desta forma, o luta não era de um cristão liberal contra "judaizantes", mas entre interpretações judaicas diferentes diante da importância da Lei na experiência do Cristo. Podemos chamar de luta hermenêutica.

Blocos de leitura

instrumentalizados com essas informações, em especial a respeito das ideias com as quais Paulo está dialogando polemicamente, faremos a leitura exegética da carta. Com algumas modificações, a obra está bem próxima da forma epistolar usada na Antiguidade e nas outras obras paulinas. Ela inicia com a identificação dos destinatários e remetente e com uma saudação inicial. Depois, entra-se no conteúdo da carta, terminando com uma saudação final. Como aconselha a exegese, é indispensável ler a carta em blocos e suas sub-divisões argumentativas. Por isso, lê-la-ei dentro desta estrutura:

I. 1,1-10: Introdução e Proêmio

1. 1, 1-5: introdução
2. 1, 6-10: exortação crítica [ao invés de ação de graças]

II. 1, 11 – 2,21: Chamado de Paulo, Concílio de Jerusalém e Discussão com Pedro

1. 1, 11-24: história do chamado profético paulino

2. 2,1-21: sucesso no concílio de Jerusalém e contenda com Pedro
a) 2,1-10: o concílio de Jerusalém
b) 2,11-16: contenda com Pedro
c) 2,17-21: bloco de transição (obediência a lei x valorização do sacrifício de Cristo)

III. 3, 1 – 5,12: Justificação Pela Fé e Relativização da Torah

1. 3,1-25: Carne x espírito (Lei x fé) preponderância da fé
a) 3,1-5: experiência da comunidade
b) 3,6-18: exemplo de Abraão e o AT
c) 3,19-25: importância da lei na história da salvação

2. 3,26 – 4,11: Liberdade de filhos
a) 3, 26 - 4,7: como herdeiros e filhos
b) 4, 8-11: advertência para não caírem

3. 4, 12-31: Apelo e exemplo pessoal de liberdade e prova bíblica
a) 4, 12-20: apelo pessoal e falsidade dos intrusos
b) 4,21-31: prova bíblica: midrashi de Agar e Sara (liberdade e escravidão)

4. 5, 1-12: Reafirmação da liberdade em Cristo: a relativização da circuncisão.

IV. 5,13 – 6,10: Parênese com Conselhos Práticos para Vivência na Liberdade da Graça

1. 5,13-25: liberdade limitada pelo amor
2. 5, 26-6,10: exortações individuais

V. 6, 11-18: Conclusão de Próprio Punho


A partir dessa divisão da carta podemos fazer uma leitura expositiva. Talvez alguns questionem a relevância de uma carta como essa para atual vivência da fé, limitando-se a perceber sua importância unicamente para o tempo quando as discussões do valor dos preceitos legais mosaicos estavam em voga. Ao contrário dessa posição, acredito na contextualidade dessa carta, pois ainda encontramos muitos grupos cristãos alhures se prendendo a legalismos, não levando a sério alguns pilares da Reforma – Sola Gratia, Sola Fide, Solus Christus – bem expostos nesse texto paulino. A epístola proporciona uma radical liberdade, e ensina o equilíbrio diante dela. Destrói concepções aterrorizantes e desmedidas sobre a participação do homem no projeto de salvação e o coloca em seu devido lugar, esvaindo-o de qualquer vaidade ou pretensões de autojustificação.

6 comentários:

  1. "Só a fé"... sempre me deparo com esse problema. Se sou salvo só pela fé mediante a graça de Deus, a minha dúvida agora paira sobre: o que é viver a fé? sua materialização em nossas vidas? como seria esse viver/agir/comportar do homem de fé?

    É uma fé tipo a de Abraão que representa obediência? se devemos obedecer... então temos de agir... se temos de agir é uma fé de atos/obras... Bom, não sei... deve haver mais de um tipo de fé... o problema é esse plural de fé...rsrsrsrs

    mano sei que seu texto trata de mais coisas, mas foi o que me veio a mente no momento, Blz.

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    1. A Fé é algo verdadeiramente individual, é necessário os nossos olhos ver uma porta se abrir a onde só há parede de concreto.

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  2. Olá Fernando,
    valeu pela leitura.

    Suas questões são bem pertinentes. Paulo, no decorrer da mesma carta, responde a essas perguntas. A fé é exatamente a aceitação de Jesus como meio de justificação. Ele é radical nesse ponto. Na carta não se preocupa em definir esse conceito, mas com a liberdade em relação a submissão à Lei mosaica, em especial à circuncisão. No cap. 5 ele diz que essa liberdade precisa ser limitada pelo amor, ou seja, somo livres para amar, que também está presente entre os mandamentos da lei. Justificação é pela graça, que respondemos com fé. Agora, essa fé nos conduz a uma vida de acordo com os princípios do evangelho do Cristo, que se resume àquilo dito por Paulo no cap. 5.

    Abraço

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  3. Querido irmão Terra, que o Senhor continue te dando forças para nos brindar com textos tão claros e edificantes. Acompanharemos suas leituras desta "carta" tão instrutiva. Um abraço.
    www.vosbi.blogspot.com

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  4. Olá Francikley,
    obrigado pelo comentário. Será um prazer expor as leituras. Espero que leiam junto comigo e façam suas reações, pois assim cresceremos e aprenderemos juntos.

    grande abraço

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  5. Olá Kenner, realmente Paulo nos ensina valiosas lições nessa carta!
    Parabéns pelo seu blog.
    Marcos.
    Visite o meu blog:
    marcostedesco.blogspot.com

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