quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O Conteúdo do Discurso dos Profetas Clássicos: Injustiça x Palavra de Javeh.



Profeta Amós
Os doze Profetas (1795-1805) - Congonhas do Campo, MG

Antonio Francisco Lisboa (Alejadinho)


Na denominação onde estou membro, neste semestre estamos estudando o profetismo. Mesmo tratando do fenômeno, em alguns momentos, no Novo Testamento, as lições centram-se no ministério profético testemunhado na Bíblia Hebraica. Depois de cinco domingos de reflexões, algumas coisas “me levaram a pensar”, como diria Paul Ricouer.

Para começar, é nítido que o profeta veterotestamentário é um homem da palavra: “assim diz o Senhor...”. Na concatenação das ideias, carregadas de princípios javistas, eram construídos seus discursos. Em se tratando do âmbito discursivo, na perspectiva da linguística nos é revelado algo de profundo valor sobre o ministério profético.

No populacho, tornou-se comum tratar a expressão discurso como algo não prático, para muitos quase que pueril: “ele só fica no discurso”. Dessa forma, a fala profética é desqualificada por alguns, porque simplesmente pertence ao mundo das ideias. Sim, quando pensamos o discurso nessa perspectiva acabamos desvalorizando sua função histórica e substancial. No entanto, o conceito, na maneira como a análise do discurso o lê, pode se revelar como algo muito mais engajado do que se pensa. Para Luiz Fiorin, por exemplo, o discurso materializa as formações ideológicas, como uma espécie de suporte ideológico. E como toda comunicação tem em vista um agir no mundo, porque deseja que os receptores creiam no que se diz, façam ou deixem de fazer algo, mudem de ideia ou de comportamento, o discurso é um levar a fazer, ou fazer-fazer [1] . Por isso, um enunciador é capaz de no seu discurso tanto reforçar a ideologia dominante legitimando as estruturas que a alimenta como valer-se de outras formações discursivas, negando as redes de poder. Por isso, o discurso pode ser de transformação ou de conservação. Logo, ele também é ação de grande influxo nas estruturas sócio-culturais. Para entendermos e apreendermos a formação discursiva que os profetas sevem de suporte, precisamos nos perguntar pelos interesses visíveis no conteúdo dos seus anúncios. Para isso, deixaremos os profetas extáticos, grupo de homens que profetizavam ao som de instrumentos musicais e danças em êxtase (1 Sm 10, 5-13) [2] , para prendermos nossa atenção nos profetas clássicos do período monárquico.

Numa leitura rápida aos profetas, encontramos no bojo dos seus pronunciamentos críticas à má distribuição de terra (Is 5,8); preocupação com os direitos dos pobres (Is 10,1-2) e outras questões sociais. Os profetas denunciavam, também, a idolatria, que nada mais era do que uma escolha por divindades legitimadoras da opressão. Javeh na Biblia hebraica é o Deus dos oprimidos e Baal, do opressor. Isso fica claro no episódio da vinha de Nabot (1 Rs 21), no qual Acab rouba, seguindo a lei cananéia e de seu deus Baal, enquanto Javeh protege o direito de Nabot, proibindo a tomada da herança do pobre; aqui Elias é a voz de Javeh. Como bem explicou o exegeta Airton José: “Se Iahweh (sic) é um Deus tão exigente, o Estado favorece o culto a outros deuses, menos rigorosos. Prolifera a idolatria. (...) Os cultos aos deuses cananeus da fertilidade e a celebração dos ciclos da natureza influenciam profundamente a religiosidade camponesa. Para os que se apropriam do produto do trabalho dos outros é uma maravilha: quanto mais o camponês cultuar os deuses protetores da natureza e da terra cultivada, tentando garantir e aumentar sua produção, tanto mais o tributo cresce” [3] . No jogo dos interesses, a escolha por uma divindade estava relacionada a questões muito mais profundas e estruturais. Não era simplesmente a aceitação piedosa de outras práticas religiosas por serem mais críveis, mas significava aceitar um discurso religioso que favorecia interesses particulares. Por isso encontramos ferrenhas críticas dos profetas à idolatria (Os 4, 12-13).

O enunciado profético era contra políticas injustas, que acrescentavam a impunidade e a exploração alheia (Am 8,4-6; Mq 2,1-2). Como sinalizei acima, outra preocupação dos profetas era a questão da terra. Num oráculo de denuncia do gênero “ai”, Isaías expressa toda a indignação contra a sua má distribuição: “... dos que acrescentam campo até que não haja mais espaço disponível, até serem eles os únicos moradores da terra” (Is 5,8). No mundo idealizado pelo profeta – e por que não por Deus – a terra é dividida justamente, onde cada um tem sua moradia para se cobrir do sol e fugir da chuva. E como percebeu Isaías, alguns em Judá eram possuidores de grandes pedaços de terra, e cada vez mais expandiam seu poder a ponto de serem os únicos moradores. Isaías nesse ponto está muito próximo do artigo XXV da Declaração Mundial dos Direitos, da ONU, redigida em 1948: “Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle”.

Vejamos as críticas de Amós contra os crimes de Israel na época do reinado de Jeroboão II, que liderava um estado em crescente poder e expansão: “... porque oprimis o fraco e tomais dele o imposto de trigo (...). Eles hostilizam o justo, aceitam suborno, e reprimem os indigentes à porta” (Am 5, 11-12). A opressão, a injustiça e o descaso dos detentores do poder foram alvos de severas críticas do camponês de Técua. Por isso, Deus o impulsionou a exigir com toda coragem “que o direito corra como a água e a justiça como um rio caudaloso” (Am 5,24). Interessante são os versículos anteriores a este, que falam do culto. As práticas religiosas só teriam sentido se os seus representantes estivessem de acordo e a favor da justiça, sem isso era somente barulho ou ruídos vazios. Quem são especificamente esses que recebem as duras críticas de Amós? Novamente Airton José nos serve como citação: “são os que vivem em palácios (3,10) e acumulam (3,10), são as senhoras da alta sociedade (4,1), são os que constroem boas casas e plantam excelentes vinhas (5,11), são os que aceitam suborno na administração da justiça (5,12), são os que vivem no luxo e na boa vida (6,4-6), são os que controlam o comercio (8,4-6)”.

Em suma, os profetas instauravam sobre a realidade, através do mundo discursivo, uma prática de justiça e misericórdia. O “assim diz o Senhor” não servia de suporte para reforçar mundos ideológicos do poder, pelo contrário, era reverberação dura da formação ideológica contrária. Por isso, os profetas não tiveram boa vida, não foram rodeados de celebridades da época, nem ostentaram regalias do Estado ou serviram de receptáculos dos favores dos dominantes da sociedade. Essas regalias jamais teriam, porque elas representavam tudo o que seus anúncios criticavam.

E o Cristianismo, pergunto, tem no decorrer da história (construções teológicas medievais, colonização, histórias das missões, período da ditadura militar, Igrejas empresas etc.) alimentado quais formações ideológicas? Em nome de quem e do que constrói seus discursos teológicos?

Estamos em ano eleitoral, muitos aparecerão dizendo, por exemplo, que “crente” vota em “crente”. Será? Um discurso como esse é reprodução ou suporte para que tipo de ideologia?

Indo um pouco mais além, será que o discurso dos representantes do Cristianismo tem carregado as mesmas preocupações dos profetas da Bíblia Hebraica? Ou eles preferem gastar tempo com questões periféricas – porque sabem das benesses pessoais que estão em jogo – nos seus sermões/discurso? E os irmãos recompensados com qualquer cargo público, alcançado por intermédio de favores (não através da capacidade profissional) no mundo da política, serão ou são capazes de escolherem pela justiça, como verdadeiros representantes do “assim diz o Senhor”? Quando o lindo sorriso do favorecimento mostrar sua verdadeira face corrupta, como se portarão? Ou, de forma mais simples, quando o sistema que lhes favorecem exigir barganhas éticas, terão coragem de sustentar o mesmo discurso dos profetas?

Será que nosso discurso tem exigido novas práticas ou legitimado sistemas injustos nos quais circulamos? Em nossas prioridades e escolhas sociais, o belo, mas frio, status quo tem tido mais importância do que a feia e ranzinza, mas sensível, Justiça?

Caro leitor, depois da exposição dos reais interesses dos profetas e dessas perguntas, tenho outra questão bem mais pontual: Há, talvez, a necessidade de outras preocupações hermenêuticas (menos obscurecidas pelos interesses das denominações, das empresas ou esquemas nos quais estamos inseridos) na leitura dos textos bíblicos, em especial os proféticos?

Em outros posts me entretive com repostas. Acho que neste momento, ao contrário, o melhor é deixar as perguntas serem autorrespondidas no ato da leitura. Entre elas, quase todas tenho as respostas, mas não vale muito – repito: muito, porque no fundo no fundo estou doidinho para fazê-lo com força e coragem – respondê-las aqui.


[1] FIORIN, José L. Linguagem e Ideologia. 8 ed. (ver. e atualizada), São Paulo, Ática, 2007.
[2] SILVA, Airton José. A Voz necessária. Encontro com os profetas do século VIII a.C. São Paulo, Paulus, 1998.
[3] SILVA, Airton José. A Voz necessária... p.27

2 comentários:

  1. A verdade e a justiça quando postas as claras ofuscam olhos corruptos...rsrsrs, se bem que falar a verdade sobre aquilo que se compreende, em matéria de religião e política, sempre custou caro para o Justo falador. Ex. João Batista.

    Se Deus é Justo, pressuponho que sua Palavra também o seja, logo a injustiça pode residir nos atos contrários a essa justa palavra ou até na negação de mesma.

    O discurso dos falsos profetas, na defesa de seus $deuses$, então era só uma forma de aprisionar os camponeses (trabalhadores) em uma ideologia falseadora da realidade, com o único propósito, extrair deles o fruto do seu trabalho... Bom Kenner, se é assim mesmo o que entendi, acho que isso ainda se repeti em muitos lugares... rsrsrs, e não falo só instituições pseudo-cristãs, mas de sistemas político-econômicos também. Mas isso não estaria soando meio “teoria da conspiração” da parte dessas lideranças (Rei Acab) e seus profetas sob encomenda?

    A escolha da divindade não fundamentava-se, por parte dos representantes (autoridades), por razões de fé, mas só por questões de interesse próprio (privado) um tipo de "como tirar proveito da fé pública", me corrija por favor, se eu estiver confundindo as coisas, afinal sou loiro, rsrsrs...

    Então eu poderia dizer, que se um profeta Javista passa a trabalhar/profetizar por interesse pessoal ou para grupos dominantes, ele estaria se tornando um profeta/protituto... Do tipo que profetisa ao sabor do cliente? Claro mediante bom pagamento... rsrsrs, se for isso mesmo meu irmão, então acho que já vi muito desse filme. Mas será ki não uma fezinha no ídolo, da parte dos falsos profetas, alguns pelo menos...

    Mano, gostei muito desse texto também... estou lendo o outro sobre o Tio Melk.

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  2. Olá Fernando,
    obrigado pelo comentário. Sim, segundo a exegese, em especial dos exegetas latino-americanos, a escolha por certas divindades tinha um fundo social, ou seja, estas favoreciam certas ideologias. Javeh se caracterizava por certa austeridade nas questões da distribuição dos bens, da escolha pelo pobre e pela justiça (vários textos do AT revelam essas particularidades). Por isso, para os detentores do poder e seus favorecidos não era uma boa opção esse tipo de divindade. Desta forma, a troca seria, então, a chamada idolatria que os profetas tanto criticavam, ou melhor, uma das coisas que tanto criticavam. Claro que essa leitura sócioeconômica da idolatria é uma faceta do fenômeno, a questão da fé e também das experiências religiosas contribuíram. Contudo, os interesses citados no post foram fundamentais, e por isso fiz aquela citação do texto de Airton José. Viste bem, o profeta poderia, sim, render-se aos interesses do sistema que o beneficiava; tu se lembras dos profetas mentirosos do grupo de Zedequias (1 Rs 22)?

    Abração

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