quarta-feira, 30 de junho de 2010

A Descida de Jesus ao Inferno: Outra leitura de 1 Pedro 3, 19-22.




A descida de Jesus ao inferno, ou aos infernos, até hoje é alvo de discussões entre os leitores da Bíblia. Desde a expressão descendit ad inferos inserida no Credo de Atanásio encontramos alhures reflexões sobre o assunto: Será que Jesus realmente desceu até as regiões infernais? Ou melhor, será que 1 Pedro 3, 19-22 pode servir de base para existência desse tipo de crença no imaginário do (s) Cristianismo (s) da (s) Origem (ns)? Quem eram os espíritos citados no texto? Seriam eles os demônios ou espíritos humanos?

No texto pretrino supracitado, nos primeiros versos da perícope (v. 13-18), o redator consola os destinatários da carta aproximando os sofrimentos da comunidade ao sofrimento de Cristo. Segundo J. Elliott, em uma análise sociológica dos destinatários – os paroikoi e parapidemoi (peregrinos residentes e peregrinos transeuntes) –, as perseguições limitavam-se a difamações e calúnias por parte dos seus concidadãos na Ásia Menor (1) . Não podemos entrar em detalhes sobre isso, basta-nos saber que a missiva desejava fortalecer e consolar um grupo de peregrinos convertidos ao Cristianismo.

O texto diz ser melhor antes sofrer injustamente por causa do bom procedimento em Cristo, do que justamente por ações dignas de condenação (3,16). E mais, ele fortalece sua argumentação usando como paradigma o sacrifício de Cristo, que representa um justo sofrendo consequências injustas, com um único propósito: “para conduzir-vos a Deus” (v.18), ou seja, se o caminho de salvação dos destinatários construiu-se exatamente na lógica do sofrimento injusto do justo, no programa da vontade de Deus, o que impediria os dependentes desse processo não passarem pela mesma experiência de injustiça? É tanto, que no verso 17 o texto evoca a vontade de Deus para falar do sofrimento da comunidade. Essa experiência de dor, por mais confusa que fosse, indicava uma participação na mesma vivida por Jesus. Contudo, esse que morreu em carne foi vivificado em/no espírito (v.18).

Neste exato contexto aparece a desconcertante afirmação: “no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão...” (v.19). Quem seriam os espíritos? Na continuidade do texto somos informados que esses foram, em outro tempo, desobedientes a Deus (v.20). Em que ocasião ocorreu essa desobediência? O texto informa: nos dias de Noé, na ocasião do dilúvio. Pronto, o texto diz que os espíritos aprisionados no contexto do dilúvio receberam algum tipo de proclamação de Jesus. Até pouco tempo tinha-se a ideia de uma possível pregação do evangelho aos mortos no dilúvio, porque o texto usa o verbo kerysso (anúncio), mas isso é muito improvável, como veremos.

A respeito de que o texto está falando? Esses espíritos receptores da proclamação de Jesus seriam espíritos humanos? Agostinho diria que sim, mas as pesquisas atuais afirmam definitivamente que não (2) .

Para entendermos melhor o texto e colocarmos um pouco de luz nas questões levantadas, podemos ler a passagem utilizando o conceito “dialogismo” de Bakhtin, o qual pressupõe que o enunciador para constituir um discurso leva em conta o (s) discurso (s) de outrem presente no seu. E como disse José Fiorin, interpretando esse conceito bakhtiniano, “todo discurso inevitavelmente é atravessado pelo discurso alheio” (3) . Assim, “dialogismo” são as relações de sentido estabelecidas entre dois enunciados. Segundo esse teórico, o dialogismo é o modo real de funcionamento da linguagem. Um enunciado, que pode ter como suporte um texto escrito, sempre estará em relações contratuais ou polemicas, de divergência ou convergência, de aceitação ou recusa, de acordo ou desacordo com outros enunciados. E mais, o diálogo com outros discursos é bem criativo e dinâmico, como percebemos nos trabalhos realizados na Historia da Leitura de Roger Chartier. Por isso, a pergunta que devemos fazer ao texto de 1 Pedro 3, 19 é a seguinte: com quais enunciados, ou com quais discursos, esse texto está dialogando? Isso nos ajudará na descoberta da identidade dos espíritos no texto.

Um boa hipótese para a leitura de 1 Pedro é aproxima-lo à tradição apocalíptica do Judaísmo do Segundo Templo. Refiro-me, expecificamente, ao Livro dos Vigilantes, que por sua vez está preservado na obra conhecida como I Enoque (esta obra é composta por cinco livros). A data deste conjunto de cinco livros perpassa o terceiro séc. a.C e o segundo d.C. A coleção começa com o já citado Livro dos Vigilantes, que cobre os 36 primeiros capítulos de I Enoque. Dentro do Livro dos Vigilantes encontramos o Mito dos Vigilantes – este em duas versões: cap. 6-11 e cap. 12-16. O mito narra a ocasião quando alguns anjos atraídos pela beleza das mulheres desceram à Terra e escolheram algumas entre elas. Esses anjos são chamados de Vigilantes, por isso o epíteto Mito dos Vigilantes. Da relação dos anjos e mulheres nasceram os gigantes, gerando muitas mortes e caos. A narrativa enoquita diz, também, que no contato com as mulheres, os Vigilantes as ensinaram segredos como manipulação do ferro para construção de armas, uso de adornos e magia. Com o sangue derramado na terra, por causa dos gigantes e dos ensinos celestiais, Deus manda um dilúvio e prende os Vigilantes. Na segunda versão do mito, nos capítulos 12-16, aparece Enoque indo até esses espíritos aprisionados (os Vigilantes) para levar-lhes um anúncio de condenação, por causa da desobediência geradora de consequências catastróficas, narrada nos versos 6-11.

Talvez você me pergunte: O que isso tem haver com o Novo Testamento? Eu respondo: Tudo! O livro de I Enoque foi muito importante para o Judaísmo – a ponto de aparecer em várias outras obras judaicas do Segundo Templo –e também para o Cristianismo (s) Originário (s). Um exemplo bem claro está no livro de Judas, onde é citada uma profecia de Enoque. Pergunto: onde, no Antigo Testamento, Enoque profetiza? Respondo: em lugar nenhum! Mas observando, mesmo que superficialmente, os versos 14-15 dessa pequena carta neotestamentária percebemos a citação literal de I Enoque 1,9. Ou seja, para que Judas citasse esse texto como uma profecia era necessária alguma influência dessa literatura no período do Novo Testamento. E mais, a ideia de anjos aprisionados do verso 6 pode lembrar a mesma história preservada no livro de I Enoque. Esses são exemplos gritantes, mas outros mais implícitos poderiam ser expostos aqui (inclusive, a igreja Cristã etíope tinha o livro de I Enoque em seu cânon).

Voltemos agora para o texto de 1 Pedro. É muito provável uma relação dialógica entre esse texto e o Livro dos Vigilantes. No entanto, aquele faz uma mudança de papéis ao apropriar-se deste. De Enoque, como dizia a tradição judaica, I Pedro transporta para Jesus a ação de ir aos espíritos que estão aprisionados desde a época do dilúvio. Então, provavelmente os espíritos citados em 1 Pedro 3,19 são os Vigilantes, que por terem desobedecido às ordens de Deus, causando muitos malefícios a humanidade, foram aprisionados.
Outra questão nessa discussão é se realmente o texto fala sobre "descida", que rapidamente alguns interpretam como ao inferno. O particípio aoristo do verbo poreúomai (tendo ido), do verso 19, não tem sentido necessariamente de “descer”. Este verbo é utilizado na literatura do Novo Testamento, fora do texto petrino, para falar da “ascensão” de Jesus (At 1,10-11; Jo 14, 16). E, em I Pedro 3,22 é usado no sentido de “subir" e não “descer”. O próprio livro de II Enoque (Enoque Eslavo, pseudepígrafo do Séc. II d.C), que tem dependência de I Enoque, e o Testamento de Levi (pseudepígrafo do século I a.C), afirmam que os Vigilantes decaídos foram colocados no segundo céu. Por isso, é mais provável pelo contexto de 1 Pedro e da literatura antiga, a presença da ideia de que Jesus "subiu" (até o céu?) e anunciou algo aos “espíritos em prisão”. Como diz Elliott: "A descrição de Jesus Cristo e sua atividade pós-morte em 1 Pd 3,18- 22, eu sustento, que faz claro uso dos temas e linguagem contidas em 1 Enoque 6-16, descrevendo Cristo como uma figura de Enoque ascendendo ao céu e anunciando a condenação para os angélicos espíritos punidos e aprisionados dos tempos de Noé" (4) .

No texto de I Enoque o conteúdo do anúncio aos espíritos é condenatório e escatológico. Provavelmente, a perícope petrina carregue a mesma ideia, e assim o conteúdo da mensagem de Jesus não é o kerigma de salvação, como mensagem básica cristã, mas anúncio de condenação à luz da tradição enoquita. Os espíritos presos que se refere o texto é uma lembrança dos Vigilantes da narrativa do Mito dos Vigilantes, os quais além de serem aprisionados estavam esperando para o fim dos tempos a condenação escatológica (que em I Enoque seria o dilúvio).

Assim, em 1 Pedro 3,19 não encontramos base para a tão conhecida "descida de Jesus ao inferno", mas um indício de como I Enoque pode nos ajudar a compreender alguns textos complicados da literatura cristã, porque ecoam imagens, ideias e imaginário da literatuda enoquita.


(1) Ver: ELLIOTT, J. H. Um Lar Para Quem Não Tem Casa: Introdução sociológica a primeira carta de Pedro. São Paulo, Paulinas, 1985.

(2) ELLIOTT, J. H. 1 Peter: A New Translation with Introduction and Commentary. Vol. 37b. The Anchor Bible. New York, Doubleday, 2008. p. 697. Para uma crítica à interpretação feita por Agostinho, e aceita na Idade Média, ver: HIEBERT, D. Edmond. The Suffering and Triumphant Christ: An Exposition of 1 Peter 3:18-22. In: Bibliotheca Sacra (1982): 146-158.

(3) FIORIN, José Luiz. Introdução ao Pensamento de Bakhtin. São Paulo, Ática, 2008. p. 19.

(4) ELLIOTT, J. H. 1 Enoch, 1 Peter, and Social Scientific Criticism. A Review Article on a Major 1 Enoch Commentary. In: Biblical Theology Bulletin 39 (2009): 39-43. p. 41.

11 comentários:

  1. Parabéns pelo seu texto, pra mim ficou claro sua exposição de quem possivelmente seriam os tais "espíritos aprisionados"...

    Então eu poderia dizer que o escritor de I Pedro apenas menciona ou toca no assunto, mas não dá detalhes sobre os tais "prisioneiros" e para uma melhor compreensão desse enunciado de I Pedro, seria necessário um diálogo com o texto (s) de I Enoque??? o que talvez para o escritor de I Pedro fosse algo comum e de conhecimento popular; para nós já é meio distante e desconhecido, ficando difícil para um leitor de nosso tempo ter a compreensão de quem são, afinal de contas, os delinquentes em detenção celestial...

    Sou da opinião de que há certos pontos no texto Bíblico que se faz necessária a leitura de outros textos (não bíblicos) antigos ou conhecimento da história para uma melhor leitura e compreensão...

    Tchau e até o seu próximo texto...

    Fernando Córdova

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  2. Kharis kai eirene

    Kenner, meus parabéns pela reflexão. Essa leitura subsidiada pelos textos apocalípticos são esclarecedoras. As questões pertinentes parecem ser: qual a identidade e natureza desses espíritos? Trata-se de seres angélicos? Trata-se de humanos? Se se trata de seres angélicos da época do dilúvio, temos que aceitar a hipótese de que os "filhos de Deus" de Gn 6 são seres sobrenaturais? Se for, como conciliar a aparição desses filhos sobrenaturais após o dilúvio? Dake, chega ao absurdo de afirmar que houve mesmo uma segunda queda de anjos....É possível saber a natureza desse kerygma? Trata-se da obra salvífica de Cristo? Do que se trata então a referida pregação? A prisão da referida perícope é o inferno, o abismo?

    Esdras Bentho

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  3. Olá Fernando,
    obrigado pelo comentário.

    Sim, sem essas tradições e literatura é quase impossível compreender alguns textos neotestamentários. Felizmente já temos boas edições em inglês e espanhol dessas obras pseudepígrafas.

    abração

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  4. Mas uma vez você foi muito feliz em suas conclusões.

    Alguém já disse que "para sedimentar nossas convicções em bases sólidas, é necessário aprofundar o conhecimento penetrando até as entrelinhas dos versículos da Sagrada Escritura, com a intenção de entrar no pensamento do escritor inspirado, buscando entender com clareza os ensinamentos Divinos, a fim de que acompanhando a seqüência do raciocínio, tenhamos o mais profundo conhecimento de DEUS."

    Isso me traz a memória o texto de Oseias 4:6
    "O meu povo está sendo destruído, porque lhe falta o conhecimento..."

    Com certeza ficaríamos espantados se conhecêssemos o número de pessoas/almas que tem se perdido por falta de conhecimento da palavra de Deus. Presumindo que por estarem seguindo “pseudo-s lideres iluminados” irão para os céus, quando somente através de uma busca pessoal pelo conhecimento da palavra é que estaremos capacitados a enteder o tão grande amor de Deus.

    Oséias mostra que devemos prosseguir em conhecer pois o conhecimento de Deus é inesgotável, e cada dia que conhecemos mais de Deus, descobrimos que nada sabemos, e que mais dependemos do seu amor..

    "antes crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. A ele seja dada a glória, assim agora, como até o dia da eternidade." 2 Pe 3.18.

    Edmar Bastos Oliveira

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  5. ...traigo
    sangre
    de
    la
    tarde
    herida
    en
    la
    mano
    y
    una
    vela
    de
    mi
    corazón
    para
    invitarte
    y
    darte
    este
    alma
    que
    viene
    para
    compartir
    contigo
    tu
    bello
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    un
    ramillete
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    y
    claveles
    dentro...


    desde mis
    HORAS ROTAS
    Y AULA DE PAZ


    TE SIGO TU BLOG




    CON saludos de la luna al
    reflejarse en el mar de la
    poesía...


    AFECTUOSAMENTE
    KENNER TERRA

    ESPERO SEAN DE VUESTRO AGRADO EL POST POETIZADO DEL FANTASMA DE LA OPERA, BLADE RUUNER Y CHOCOLATE.

    José
    Ramón...

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  6. Olá Pr. Esdras,
    obrigado pelo comentário.
    Como mostrei no texto, 1 Pedro está dialogando com ideias judaicas que se
    desenvolveram a partir do Mito dos Vigilantes, o qual apresenta Enoque em viagem celestial para anunciar uma condenação aos Vigilantes. Esses foram aprisionados, como narra 1 Enoque, no período do dilúvio. Na verdade, a pergunta deve ser: "1 Pedro acreditava nessa história?" Sim, pois estava no imaginário religiosos Judaico (não esqueça: 1 Enoque foi muito importante para o Judaísmo (s) e também para o Cristianismo (s), inclusive é citado na epístola de Judas). No entanto, o texto petrino troca os personagens colocando Jesus, em vez de Enoque, como
    aquele que anunciou algo para os espíritos. À luz de 1 Enoque, o kerigma, ou anúncio,
    pode ser lido como condenatório com indícios escatológicos, como está na tradição
    enoquita. E, também, no texto não aparece a expressão “inferno”, simplesmente diz que "foi", e
    como mostrei no texto, o verbo não tem ideia de "descer", mas "subir".
    Outra questão, 1 Enoque interpreta Gn 6,1-4, mas 1 Pedro está ecoando não os temas
    deste texto, mas daquele. Agora, sobre os "filhos de Deus/deuses" de Gn, devemos
    levar em consideração o mundo religioso da Antiguidade, pois assim entenderemos do
    que Gn está falando.
    abraço

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  7. Olá Edmarbo,
    obrigado pelo comentário.
    Você tem toda razão em relação à necessidade da busca constante por aperfeiçoamento intelectual, especialmente para leitura bíblica.

    um grande abraço

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  8. jesus nunca desceu ao inferno, ele é o princípe da luz e aluz não se mistura e trevas.

    pode a luz se misturar com as trevas? A Bíblia ensina que não. Na primeira carta de João, no capítulo primeiro e versículo cinco, encontramos a afirmação de que Deus é luz e nEle não há treva alguma. O apóstolo Paulo, escrevendo aos efésios, instrui aos salvos que não se comuniquem com as obras das trevas, antes que as condenem (Ef. 5:11). O mesmo Paulo, escrevendo aos coríntios, admoesta a que não nos prendamos a um jugo desigual com os infiéis, pois, pergunta ele, "que comunhão tem a luz com as trevas?" (2Co. 6:14).

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  9. olá Leonardo,
    você leu o texto? Então, como expliquei, 1 Pd 3 NÃO pode servir de base para afirmar que Jesus desceu ao inferne e nem que pregou a espíritos humanos. Pareceu-me, quando li o teu comentário, que tu não perceberas que faço no post exatamente a mesma negação do teu comentário.

    um grande abraço

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  10. O trabalho do homem como filho de Deus, não é anunciar o evangelho ainda em vida? É possível um homem depois de morto, anunciar o evangelho a espíritos? Respondo: NÃO. Os homens sempre tentam tirar a obra que Jesus fez, e colocá-la como feita pelo próprio homem. Não há como concordar com esse pensamento, uma vez que a própria Bíblia explica esse acontecimento (1a regra da hermeneutica).

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  11. Olá Marcos Reis,

    obrigado pelo comentário.

    Permita-me perguntar:leste o texto? Pelo comentário que fizeste, acho que não. "1a regra da hermeneutica"? Primeira lei do comentário: ler o texto.
    abraço.

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